Topo

Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Estas ilhas são vizinhas, mas vivem em dias diferentes do calendário

Reprodução
Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

30/10/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Apenas pouco mais de três quilômetros de mar separam estas duas ilhas, no Estreito de Bering, entre a Sibéria, na Rússia, e o Alasca, nos Estados Unidos.

Mas quem se dispuser a atravessar de uma para a outra, não só mudará de país — e de continente — como viverá a curiosa experiência de voltar (ou avançar) um dia no tempo — algo que só ali é possível vivenciar entre dois nacos de terra tão próximos.

A ilha maior chama-se Grande Diomede (ou Ratmanov, em russo, já que pertence à Rússia), e a menor, Little Diomede (Pequena Diomede), em inglês, uma vez que faz parte dos Estados Unidos — dois países historicamente antagônicos, mas que ali fazem uma improvável fronteira quase terrestre, e totalmente bizarra no calendário, já que, embora uma ilha fique colada à outra, são separadas por nada menos que 24 horas nos relógios.

Vizinhas, mas em dias diferentes

O motivo do curioso fenômeno entre o que diz o calendário em uma e outra ilha das Diomedes foi a necessidade que os cientistas do século 19 tiveram ao criar uma maneira para que os dias e as noites acontecessem sempre no mesmo horário, nas diferentes partes do planeta.

Ou seja, o fuso horário.

Para isso, foi preciso que, em determinado ponto do globo terrestre, após esgotado o ciclo máximo de 24 horas nos fusos horários, fosse traçada uma linha imaginária onde o calendário simplesmente mudasse de data, avançando ou recuando um dia, a fim de compensar esta diferença — a chamada Linha Internacional de Data, que, desde então, divide verticalmente o globo terrestre em dias diferentes: o hoje e o ontem (ou amanhã, dependendo de onde você estiver).

Ilha de hoje e de ontem

Por um capricho da natureza — e dos cartógrafos da época — a tal Linha Internacional de Data foi traçada exatamente entre as duas ilhas Diomedes, que, assim sendo, embora a míseros minutos de distância, passaram a ficar separadas por nada menos que 24 horas no fuso horário.

Ou seja, em dias diferentes no calendário.

ilhas diomedes - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Enquanto na pequena Diomede ainda é hoje, na vizinha Grande Diomede já é amanhã. Embora elas fiquem coladas uma na outra.

Onde é possível voltar no tempo

Quem atravessar da ilha americana (onde há apenas uma pequena comunidade de esquimós) para a russa (onde hoje não vive ninguém) desembarcará no dia seguinte — embora aquela travessia não dure mais que dez minutos de barco.

Já, quem fizer o caminho inverso, realizará o sonho de muita gente de voltar um dia no tempo — partirá hoje e chegará ontem.

Serviu de inspiração para livro

Esta excentricidade geográfica — que não existe em nenhum outro ponto ao longo da tal linha imaginária com tamanha proximidade — serviu de inspiração para o escritor italiano Umberto Eco escrever o romance "A Ilha do Dia Anterior", um de seus maiores sucessos literários.

O livro ajudou a propagar a peculiaridade das duas ilhas vizinhas na geografia, mas separadas pela maior distância possível nos relógios.

Também rendeu apelidos eternos às duas ilhas: a Grande Diomede virou a "Ilha do Amanhã"; e sua irmã menor, a "Ilha de Ontem" — uma esquisitice geográfica capaz de confundir a cabeça de qualquer pessoa.

Ilhas Diomede - NASA/GSFC/METI/Japan Space Systems - NASA/GSFC/METI/Japan Space Systems
Imagem: NASA/GSFC/METI/Japan Space Systems

Rota dos primeiros americanos

Embora sejam ilhas, é possível fazer a travessia entre as duas Diomedes até a pé.

No inverno, boa parte do mar do Estreito de Behring congela e a travessia entre as duas ilhas pode ser feita caminhando sobre as placas de gelo — característica que explicaria a chegada dos primeiros humanos ao continente americano, possivelmente vindos da Ásia, após cruzarem a pé o atual Estreito de Bering.

Pela teoria vigente, os primeiros habitantes das Américas teriam passado pelas ilhas Diomedes, o que daria uma relevância também antropológica a estas duas exóticas ilhas, que ficam em dias diferentes.

A verdadeira Cortina de Gelo

Outra particularidade das Diomedes é que, nos tempos da Guerra Fria, entre Rússia e Estados Unidos, a partir da década de 1950, elas viraram a principal fronteira física entre o comunismo e o capitalismo — e, por isso, também foram apelidadas de "Cortina de Gelo", numa alusão ao clima inclemente da região, onde, no inverno, as temperaturas podem chegar a 40 graus negativos.

Ilhas Diomede - Ed Gold/BBC - Ed Gold/BBC
Imagem: Ed Gold/BBC

O curioso é que a ilha menor havia sido vendida pelos próprios russos aos americanos, quase 100 anos antes, em 1867, passando a fazer parte do Alasca.

Mas a ilha maior continuou em poder da Rússia.

Uma habitada, outra não

Quando a tensão entre os dois países aumentou, a Rússia tratou de retirar os esquimós que viviam na sua Diomede por temer que eles pudessem ser usados como espiões pelos vizinhos americanos.

E, até hoje, só a ilha menor é habitada.

Ainda assim por não mais que uma centena de pessoas, que ainda vivem basicamente da pesca e da caça de focas, ursos e raposas.

Apesar de estarem em dias diferentes, as duas Diomedes parecem ter parado no tempo.

Travessia a nado

Praticamente ninguém visita estas duas isoladas e inóspitas ilhas.

Mas, em 1987, uma americana teve a ideia de atravessar a nado o canal que separa as Diomedes, como uma ação pela paz entre os dois países.

Lynne Cox - nadadora - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Lynne Cox entrou no mar da ilha americana e nadou até a russa, em pouco mais de duras horas de travessia — embora, pelo calendário, tenha chegado no dia seguinte, quase 20 horas depois de sua partida.

Pelo feito, foi saudada tanto pelo então presidente americano, Ronald Reegan, quanto pelo premier russo, Mikhail Gorbachev.

Mas não conseguiu "quebrar o gelo" entre as duas superpotências.

Naquela outra ilha, é outro país, outro continente e outro dia", diz um morador da Pequena Diomede, resumindo bem as principais características destas duas peculiares ilhas.

A ilha que nunca existiu

Por serem pedaços de terra cercados de água por todos os lados, ilhas, por si só, costumam ser mais suscetíveis a curiosidades geográficas.

Como acontece nas Diomedes.

Mas, mesmo quando a geografia não gera motivos, às vezes, os próprios homens tratam de torná-las interessantes, instigantes ou polêmicas.

Um dos casos recentes mais famosos envolvendo ilhas peculiares foi a de certa ilha chamada "Sandy", que, embora nunca tenha existido, constou durante muito tempo nos mapas do Almirantado Britânico, uma espécie de atlas oficial do mundo no passado, e até nas imagens do Google Earth — antes de ser constrangedoramente removida (clique aqui para conhecer este quase escandaloso caso, até hoje praticamente inexplicado).

Nunca houve uma explicação convincente para a inclusão nos mapas de uma ilha que nunca existiu, como a "Sandy" — embora, neste caso, a explicação pudesse estar em um simples equívoco cometido pelos seus descobridores.

Já no caso das ilhas Diomedes, a principal excentricidade fica por conta do que diz o calendário. São vizinhas e praticamente unidas pela geografia. Mas separadas por 24 horas nos relógios.