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A areia movediça que engole até navios no mar da Inglaterra
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É um fenômeno que acontece duas vezes por dia, todos os dias, com maior ou menor intensidade, dependendo da fase da lua.
Quando a maré começar a baixar na parte mais estreita do Canal da Mancha, que separa a Inglaterra do continente europeu, a velocidade do escoamento da água é tão intensa na região do condado inglês de Kent que, a cerca de dez quilômetros da costa, em frente à cidade de Deal, logo o fundo arenoso do canal fica à mostra.
E a água vai secando cada vez mais até que, um par de horas depois, o que era o fundo do mar vira uma longa ilha arenosa, com cerca de 15 quilômetros de extensão e piso tão fofo quanto perigoso.
É o famigerado banco de areia de Goodwin, o mais traiçoeiro obstáculo a navegação de uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo, responsável por mais de 2 mil naufrágios e milhares de mortes no passado — quando a tecnologia ainda não existia para impedir que os barcos ficassem encalhados naquela porção de areia que sobe e desce de maneira impressionante, em uma das margens do Canal da Mancha.
Mas o que torna as areias de Goodwin tão tragicamente famosas não é o fato de surgirem abruptamente no meio da água.
É a sua textura encharcada e pastosa, capaz de engolir navios inteiros, feito areia movediça.
Pântano no meio do mar
Quando as marés atingem o ponto mais baixo na faixa costeira diante de Deal, cidade vizinha ao movimentado porto inglês de Dover, as areias de Goodwin, que antes estavam a mais de dez metros de profundidade, afloram com rapidez impressionante, mas tão encharcadas quanto antes. E se transformam em uma espécie de pântano no meio do mar.
Areias pegajosas
No passado, navegantes menos avisados costumavam ser surpreendidos pela súbita aparição de uma ilha onde antes só havia água e, quase sempre, encalhavam na areia pegajosa de Goodwin.
Seria apenas um contratempo — e bastaria esperar pela volta da maré para se livrar daquela armadilha —, não fosse as características perversas das areias de Goodwin: permanentemente encharcadas e sem sustentação, elas fazem com que a embarcação logo comece a afundar na areia, pelo seu próprio peso — como um automóvel atolado na beira da praia.
No passado, os ocupantes dos barcos julgavam estar a salvo, uma vez que podiam desembarcar e caminhar pela areia. Mas aquela impressão só durava até a subida da maré. Quando, então, o pior acontecia.
Navios partidos ao meio
Com a mesma rapidez e intensidade que com que seca, o banco de areia de Goodwin é tomado velozmente de volta pela água, quando a maré começa a subir.
Quando isso acontece, a força da água faz com que barcos que eventualmente tenham encalhado na areia pegajosa afundem ainda mais ou, nos casos mais extremos, sejam partidos ao meio, como aconteceu com inúmeros deles, no passado — muitos, já grandes navios de aço.
Barcos e tripulantes eram engolfados pelo mar e levados para o fundo, junto com o movimento do traiçoeiro banco de areia levadiço.
Em 2006, uma equipe de televisão que filmava um documentário sobre o infame banco de areia teve que ser resgatada às pressas pela Guarda Costeira inglesa, ao ser surpreendida pela subida da maré. Não houve vítimas. Mas todos os equipamentos foram perdidos.
"Engolidor" de navios
Com o tempo, os próprios naufrágios ocorridos em Goodwin desaparecem por completo, tragados de vez pelas areias, uma vez que a parte que aflora representa apenas cerca de um décimo do que existe debaixo dela.
Recentemente, o arqueólogo marinho Dan Pascoe.disse ao jornal inglês Express:
Goodwin sempre foi um engolidor de navios. É impossível imaginar o que aquelas areias escondem".
Vira e mexe, o estudioso é surpreendido com o afloramento espontâneo de restos de antigos barcos, porque outra característica daquele peculiar banco de areia é a permanente mobilidade.
Areia muda de lugar
Eternamente sacudido pelas violentas marés do Canal da Mancha, o banco de areia de Goodwin vive em constante movimento — inclusive de localização, o que representa uma séria armadilha para os barcos, até hoje.
Quando as areias se movimentam com maior intensidade, o que está soterrado, eventualmente, volta a aparecer na superfície.
As areias de Goodwin são como um ser vivo, vomitando o que engoliu no passado.
Muitas vítimas no passado
Atualmente, graças a modernos equipamentos de navegação, é fácil evitar o terrível banco de areia inglês.
Mas, no passado, não era assim. Nem havia recursos para sinalizar um banco de areia mutante.
Uma das soluções foi transformar embarcações em faróis móveis, movendo-as sempre que as areias mudassem de lugar. Mas, ironicamente, foi justamente um destes barcos sinalizadores uma das últimas grandes vítimas de Goodwin.
Engoliu até o navio sinalizador
Em 1954, o navio farol que deveria sinalizar o perigo para as demais embarcações foi engolido pelas próprias areias de Goodwin e desapareceu rapidamente, levando junto seus seis tripulantes.
De lá para cá, os encalhes acidentais se tornaram cada vez mais raros. Mas, eventualmente, ainda acontecem.
Nos dias de mar tranquilo e marés menos altas, alguns ingleses até fazem excursões ao infame banco de areia que, durante algumas horas, se transforma em uma espécie de pacífica ilha. Mas não é bem assim.
Mais de 2 mil mortes em uma noite
Até onde a história registra, a pior tragédia ocorrida nas areias de Goodwin aconteceu em 1703, quando uma gigantesca tempestade de inverno causou, numa só noite, o naufrágio de 53 barcos e a morte de 2.168 pessoas.
Em 1909, o navio inglês de transporte de passageiros SS Mahratta encalhou em Goodwin e, 24 horas depois, partiu-se ao meio — felizmente só após todos os passageiros terem sido resgatados por outros barcos.
Mas, 30 anos depois, outro navio da mesma empresa — e com o mesmo nome, SS Mahratta — encalhou no mesmo local e também foi destroçado pelo mar, desta vez deixando algumas vítimas fatais.
Até submarino
Os naufrágios em Goodwin foram particularmente frequentes durante a Segunda Guerra Mundial, quando a navegação no canal se tornou ainda mais intensa e as precauções de guerra exigiram o fim das sinalizações na região.
Diversos navios de combate, como os ingleses HMS Northumberland, HMS Restoration e HMS Stirling Castle (este, descoberto em surpreendente bom estado, semi soterrado na areia, em 1979), acabaram seus dias cravados nas armadilhas letais de Goodwin.
Há até um submarino alemão, também da Segunda Guerra Mundial, que, de tempos em tempos, reaparece, aos pedaços. Ele ficou preso na armadilha movediça quando recarregava as baterias, flutuando na superfície. Para não serem tragados junto com o submarino, seus tripulantes se renderem aos ingleses. Era melhor a prisão do que a morte certa.
Letal, mas protegido
Por essas e outras, o notório banco de areia inglês passou a ser protegido por entidades históricas que, agora, lutam para preservá-lo.
O maior risco é a ampliação prevista do porto de Dover, que prevê a escavação do fundo do mar de boa parte da região — e isso põe em risco os restos de naufrágios que jazem soterrados nas areias de Goodwin.
Fiona Punter, responsável pelo Fundo de Conservação de Goodwin Sands, diz:
Vamos lutar para preservar esta parte da nossa história. Há muita coisa enterrada lá que ainda desconhecemos".
Um navio-bomba
Como se não bastasse os habituais fortes ventos, as violentas correntezas e a densa neblina que costuma assolar o Canal da Mancha, o banco de areia de Goodwin ainda fica exatamente no estuário do Rio Tâmisa, local de tráfego de navios ainda mais intenso, a caminho da capital inglesa.
Foi também ali que aconteceu um fato que, até hoje, aterroriza os ingleses.
Em agosto de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, o navio cargueiro americano SS Richard Montgomery encalhou no fundo arenoso da região, mas, ao contrário das vítimas de Goodwin, não afundou nem desapareceu.
Ao contrário, permaneceu visível na superfície, cravado no fundo raso, e assim está até hoje, 77 anos depois.
Mas com um problemão nos seus porões: nada menos que 1.400 toneladas de bombas que seriam usadas nos combates permanecem dentro dos escombros do navio, porque o risco de retirá-las é bem maior do que mantê-las (clique aqui para conhecer esta incrível história, que há décadas tira o sono dos moradores da região, tanto quanto, no passado, as areias de Goodwin infernizaram os navegantes do Canal da Mancha).
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