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Por que dois países brigam por causa deste velho navio encalhado?
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Um velho navio da Segunda Guerra Mundial, enferrujado e encalhado há 22 anos em um remoto banco de corais no Mar da China está no epicentro de uma disputa que já dura décadas, entre a China e as Filipinas.
Os chineses querem que o navio seja retirado de lá de qualquer maneira, mas os filipinos não só se recusam a fazer isso como mantém uma guarnição militar a bordo do decrépito navio, que há muito não tem mais condições de navegar, justamente para impedir que ele seja removido.
Esta semana, aconteceu mais um capítulo desta insólita pendenga.
Barcos da Guarda Costeira chinesa usaram canhões de água para impedir que duas embarcações filipinas se aproximassem do navio imobilizado, a fim de suprir os militares ali instalados com água e comida.
A ação forçou as duas embarcações filipinas a regressar ao porto, para indignação do governo das Filipinas, que voltou a bater boca com os chineses, por causa daquele velho navio encalhado.
Mas, por que tudo isso?
Para entender este caso é preciso voltar um pouco no tempo.
Encalhe proposital
Em 1999, como retaliação à ocupação chinesa de um banco de corais chamado Mischief, no sul do Mar da China (que, apesar do nome, os filipinos dizem pertencer ao seu país, já que está dentro dos limites da sua Zona Econômica Exclusiva, área de mar cujos recursos naturais só podem ser explorados pelo país detentor), o governo das Filipinas tomou uma decisão inédita: pegou um velho navio, o ex-transportador de carros de combate BRP Sierra Madre, que fora usado pelos americanos na Guerra do Vietnã e na longínqua Segunda Guerra Mundial, colocou alguns militares a bordo e propositalmente o encalhou no vizinho recife Ayungin, também conhecido como Second Thomas Reff.
E não retirou os militares do navio.
Posto Militar avançado
Com isso, o precário navio virou uma espécie de posto militar filipino avançado, em uma região onde não existe nada por perto - a não ser centenas de ilhotas e bancos de corais desabitados.
Desde então, pequenas guarnições militares filipinas se revezam a cada cinco meses a bordo do navio imobilizado (atualmente, são nove militares, que passam os dias pescando, mergulhando ou assistindo filmes em DVDs, já que não há muito o que fazer a bordo de um navio condenado e enferrujado há mais de duas décadas), apenas para garantir a presença filipina (e a bandeira do país hasteada no navio deixa isso claro) naquele esquecido recife de coral, que passa metade do tempo debaixo d´água.
Mas — de novo — por que tudo isso?
A resposta está nos interesses comerciais, tanto da China quanto das Filipinas.
Pendenga jurídica
A região onde o navio foi encalhado é estratégica, porque fica bem no acesso a uma área comprovadamente rica em gás e petróleo, cobiçada pelos dois países - e também pelo Vietnã, Taiwan, Malásia e Sultanato de Brunei, que igualmente alegam ter direitos sobre a região, o que torna o imbróglio ainda mais difícil de resolver.
Mas, embora ela fique dentro da área abrangida pela Zona Econômica Exclusiva das Filipinas, nem os filipinos podem explorá-la, porque as cortes mundiais ainda não chegaram a um consenso sobre a quem pertence, afinal, aquelas águas.
As Filipinas tiveram a sua Zona Econômica Exclusiva definida no início dos anos 2010, após defender que aquela área de mar fazia parte da sua plataforma continental.
Mas, em 2016, pressionando pela China, o Tribunal Permanente de Arbitragem decidiu que Zona Econômica Exclusiva não transformaria a região em mar territorial filipino.
E este conflito de interpretações gera confusões até hoje.
Ajuda humanitária
Antes disso, tal qual voltou a acontecer esta semana, a China já havia investido contra os barcos que levam suprimentos aos militares filipinos confinados dentro do enferrujado navio - cuja corrosão já abriu até buracos no casco.
Em 2014, após exigir que o governo das Filipinas removesse o navio, alegando que ele estava dentro dos limites da "área de exclusão" que a própria China decretara unilateralmente, após ocupar o vizinho banco de corais Mischief, a Guarda Costeira chinesa atacou um barco de suprimentos que se dirigia ao navio, e o caso quase acabou em conflito armado.
Na ocasião, o barco filipino, mesmo alegando "razões humanitárias", só conseguiu chegar até o navio, onde uma guarnição aguardava ansiosamente a chegada de suprimentos, porque passou a navegar apenas nas rasas lagoas que se formam nos recifes de coral, onde os navios chineses não conseguiam penetrar.
Decrépito navio
Depois, disso, os suprimentos passaram a ser entregues de helicópteros, mas com severas limitações de operação, porque era impossível pousar no decrépito navio.
Mas, como de lá para cá, sem nenhuma manutenção, o velho navio só fez deteriorar ainda mais, tornou-se praticamente impossível o abastecimento pelo ar.
Daí o envio dos dois barcos filipinos esta semana, que, de novo, foram interceptados pelos navios chineses, que patrulham intensamente os arredores do navio encalhado, numa tentativa de sufocar os militares que ali se encontram e assim forçar o governo Filipino a abrir mão da região.
Um conflito tão bizarro quanto de difícil solução.
Outro caso, pior ainda
Apesar de esdrúxulo, o navio filipino transformado em peça de resistência no meio do mar não é o único caso do gênero no mundo, neste momento.
Longe dali, na costa do Iêmen, outro velho navio ancorado no mar, o petroleiro FSO Safer, abarrotado com mais de 150 000 toneladas de óleo bruto nos seus porões, causa ainda mais preocupação, porque, desde 2015, é ocupado por rebeldes da etnia Houthi, que brigam pelo poder no país, e usam o navio para intimidar os inimigos e quem dele se aproximar.
Entre outras intimidações, os houthis ameaçam explodir o navio ou deixar que a sua carga vaze para o mar, o que, segundo os ambientalistas, geraria um desastre ambiental quatro vezes maior que o maior do gênero até hoje, o do petroleiro Exxon Valdez, no Alasca, em 1989 (clique aqui para ler esta revoltante história de terrorismo marítimo).
O único consolo é que o navio-tanque em poder dos rebeldes iemenitas ainda está em razoável bom estado, o que diminui o risco de vazamentos acidentais.
Já o velho navio filipino, com mais de 80 anos de vida, só permanece visível na superfície porque jaz encalhado sobre o recife de corais, que ele pateticamente tenta proteger.
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