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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Bravura, fracasso e glória: 100 anos da morte do maior herói da Antártica

O explorador Ernest Shackleton - Getty Images
O explorador Ernest Shackleton Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

05/01/2022 04h00

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No dia de hoje, exatos 100 anos atrás, morria um dos mais bravos e heroicos homens do século 20: o explorador irlandês Ernest Shackleton, autor de uma façanha quase inacreditável.

No início do século passado, após ter seu barco trancado pelo gelo da Antártica — e determinado a salvar sua tripulação de 27 homens a qualquer custo —, Shackleton empreendeu uma das mais extraordinárias travessias da história, ao cruzar mais de 1.400 quilômetros de um dos mares mais perigosos do mundo, com um simples barquinho de pouco mais de seis metros de comprimento, a fim de resgatá-los — feito que ficou eternizado como um dos mais eloquentes exemplos de heroísmo no mar que se tem notícia.

Entre os membros reconhecidos pela importância em expedições históricas estão Shackleton (foto), explorador polar que tentou cruzar a Antártica a pé, e o brasileiro Cândido Rondon, pelas viagens na Amazônia. - Ernest Shackleton/Royal Geographical Society via Getty Images - Ernest Shackleton/Royal Geographical Society via Getty Images
Imagem: Ernest Shackleton/Royal Geographical Society via Getty Images

Mas, meia dúzia de anos depois, ao retornar com uma nova expedição ao mesmo local para onde rumou naquela ocasião, Shackleton morreu de um prosaico ataque cardíaco, quando descansava em seu barco.

Era 5 de janeiro de 1922 — exato um século atrás.

Data em que historiadores e aventureiros do mundo inteiro hoje prestam homenagens a Ernest Shackleton.

Herói por um fracasso

O lado irônico da vida de Shackleton é que ele só se tornou herói por conta de um fracasso: o aprisionamento do seu barco, o Endurance, pelo gelo antártico, em 1914, quando pretendia desembarcar para realizar a primeira travessia a pé do Continente Gelado.

Com o barco irremediavelmente atado ao gelo do Mar de Weddell, consequência de uma falha no planejamento da viagem, Shackleton ordenou que todos os seus acompanhantes abandonassem o Endurance, que não resistiu ao inverno antártico e afundou dez meses depois.

Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

Já Shackleton e seus homens sobreviveram não só ao inclemente inverno da Antártica, quando as temperaturas despencam abaixo dos 30 graus negativos e os dias são tão escuros quanto as noites, como, após mais de um ano em um acampamento improvisado, montado sobre placas de gelo, partiram em uma longa caminhada em busca de ajuda, arrastando os três botes salva-vidas do Endurance.

Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

Partiu em busca de ajuda

Quando, porém, ficou claro que não chegariam a lugar algum naquela imensidão gelada e desabitada, Shackleton tomou uma decisão tão corajosa quanto desesperada: colocou um dos barquinhos na água e, na companhia de apenas cinco tripulantes, partiu em busca de ajuda na distante Ilha Geórgia do Sul, um minúsculo povoado frequentado apenas por caçadores de baleias, pelo qual ele havia passado — e onde, seis anos depois, ele próprio morreria, mas não por causa daquela travessia.

Os demais homens da tripulação de Shackleton ficaram em um acampamento improvisado na Antártica, sob a promessa de que ele voltaria para buscá-los.

Endurance: a lendária expedição de Shackleton à Antártida - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

E foi o que Shackleton fez, após amargar o pão que o Diabo amassou no mar que banha a Antártica, na companhia daqueles cinco também bravos marinheiros.

Uma travessia insana

A travessia, guiada apenas por um precário sextante, antigo instrumento de navegação, transcorreu debaixo de temperaturas sempre negativas, ondas de 20 metros de altura e ventos, geralmente, acima dos 100 km/h.

Shackleton e seus homens passaram dias e noites encharcados, tentando evitar que o pequeno barco afundasse e torcendo para acertarem o rumo da ilha, caso contrário teriam o mesmo fim que os demais tripulantes deixados na Antártica.

Foi uma travessia insana. Mas necessária.

Depois do mar, montanhas

Até que, no 17º dia de purgatório, o pequeno barco de Shackleton tocou o solo vulcânico da Ilha Geórgia do Sul.

Mas no lado oposto ao do povoado, o que obrigou Shackleton e mais dois companheiros a passarem dias escalando as geladas montanhas da ilha, já que era impossível contorná-la com aquele barquinho.

Depois de tanto sofrimento no mar, ainda foi preciso subir e descer montanhas cobertas de neve e gelo.

Ernest Shackleton (right) and Frank Wild (left) scouting for a path to the land through the hummocks - Royal Geographical Society via Getty Images - Royal Geographical Society via Getty Images
Imagem: Royal Geographical Society via Getty Images

Resgate extraordinário

Quando os três finalmente chegaram, famintos e exaustos, à estação pesqueira de Grytviken — a mesma onde o corpo do explorador seria enterrado, anos depois (veja abaixo) —, Shackleton tratou de conseguir um barco para resgatar os seus homens, tanto os que estavam do outro lado da ilha, quanto na distante Antártica, o que aconteceu em seguida.

Foi graças a isso que, contrariando todos os prognósticos, a tripulação inteira de Shackleton retornou sã e salva à Inglaterra, onde o explorador, apesar do fracasso da expedição, anunciou em seguida uma nova investida no Continente Gelado, com outro barco, o Quest — "Busca", em português, uma demonstração da sua obstinação.

Última viagem

O objetivo da nova expedição era realizar pesquisas e mapeamentos da costa antártica, que ajudassem a pagar as despesas e dívidas contraídas pelo explorador na malograda investida anterior.

Mas Shackleton não chegou à Antártica.

Durante a escala da Ilha Geórgia do Sul, nos primeiros dias de janeiro de 1922, um infarto fulminou o explorador, quando ele descansava na cabine do seu barco — a mesma que, décadas depois, seria retirada do Quest e transportada para um pequeno museu em Athy, no condado de Kildare, na Irlanda, onde Shackleton nasceu, e que pode ser visitada pelos seus admiradores até hoje.

Shackleton tinha, então, 48 anos de idade. Mas um histórico extraordinário.

Já o barquinho usado naquela inimaginável jornada hoje ocupa lugar de destaque na escola onde ele estudou, em Dulwich, nos arredores de Londres, onde também pode ser visitado.

Enterrado na ilha

A épica travessia de Shackleton em busca da salvação dos seus comandados, é considerada, até hoje, um dos maiores exemplos de liderança e heroísmo no Reino Unido, e uma das grandes histórias de superação humana do século 20.

Por isso, no dia de hoje, acontecerão duas singelas homenagens ao explorador, na esquecida Ilha Geórgia do Sul, a mais de 1.500 quilômetros da costa argentina, onde a população não passa de uma centena de pessoas: uma no minúsculo museu de Grytviken, que recentemente criou uma exposição virtual sobre Shackleton (clique aqui para visitá-la), outra no cemitério local, onde ele foi enterrado, a pedido de sua mulher e dos três filhos.

Túmulo de Ernest Shackleton, em Grytviken, na Georgia do Sul - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Outro lado seria pior ainda

Se Shackleton não tivesse visitado a solitária Ilha Geórgia do Sul, quando estava a caminho da Antártica, naquela expedição que o tornaria mundialmente famoso, ele certamente teria optado por outro rumo naquela travessia em busca de ajuda.

E o destino dele e de seus homens poderia ter sido o pior possível, pois para chegar a terra firme mais próxima do continente antártico é preciso, primeiro, vencer um desafio da natureza: o temido Cabo Horn, no extremo sul da América do Sul, considerado o pior pedaço de mar do planeta — clique aqui para saber por que.

"Já estive no inferno, mas trouxe de volta todos os meus homens", disse Shackleton, confiante, ao embarcar para aquela que se tornaria a sua última travessia. Aquela que hoje completa um século e na qual só ele não voltou para casa.