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Expedição tentará achar barco lendário que afundou na Antártica há 107 anos
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Na mesma semana em que se celebrou o centenário da morte do legendário explorador irlandês Ernest Shackleton, líder de uma expedição que, no início do século passado, pretendia se tornar a primeira a cruzar a pé a Antártica — mas que acabou se tornando um herói por conta do fracasso dela —, a entidade inglesa Falklands Maritime Heritage Trust, das Ilhas Falklands (também conhecidas como Malvinas, aquelas da guerra entre Argentina e Inglaterra), fez um comunicado.
A entidade confirmou para a primeira semana do mês que vem o início de uma nova expedição para tentar encontrar, no fundo do mar, os restos do icônico barco usado pelo explorador naquela malfadada viagem: o Endurance, que afundou após ser esmagado pelo gelo do Mar de Weddell, de onde Shackleton e seus 27 comandados partiram em busca da salvação, em um jornada que se tornou épica.
Será a segunda tentativa
Batizada de Endurance22, a expedição será a segunda tentativa de encontrar o barco de Schackleton (a primeira, em janeiro de 2019, teve que ser interrompida quando o submergível não tripulado que era usado para vasculhar o fundo do mar desapareceu sob o mar congelado da Antártica) e usará a mesma embarcação: o navio quebra-gelo Agulhas II, que pertence ao governo da África do Sul, de onde ele partirá a expedição, no próximo dia 5, mas com novos recursos e equipamentos a bordo.
Entre eles, um novo robô submarino, capaz de operar tanto como veículo autônomo (ou seja, com capacidade de achar o próprio caminho sob os blocos de gelo) quanto ser comandado remotamente por técnicos a bordo do navio, para o caso de apresentar algum defeito, como aconteceu na primeira vez.
Satélite para driblar o gelo
Além disso, a equipe usará imagens de um satélite da agência espacial alemã para traçar o caminho que o navio fará entre os blocos de gelo, até alcançar a região a ser explorada, no Mar de Weddell, onde o Endurance afundou, já que o acesso àquela região da Península Antártica sempre foi o segundo maior obstáculo para encontrar o famoso barco de Shackleton — o primeiro é saber onde, exatamente, ele está.
O local exato do naufrágio é desconhecido até hoje. Mas a área onde isso ocorreu, não.
Quais são as dificuldades?
Pouco antes de o barco de Shackleton ser esmagado pelo gelo e afundar, o navegador da expedição, Frank Worsley, registrou a posição do Endurance, com um sextante.
A medição, no entanto, foi feita três dias antes do naufrágio, quando o barco estava atado a um imenso bloco de gelo flutuante, o que certamente gerou variações, porque não se sabe o quanto ele se movimentou naqueles três dias, até o naufrágio.
Além disso, a grande profundidade no local — e o fato de o Mar de Weddell passar a maior parte do tempo coberto por uma espessa camada de gelo — dificultam ainda mais as buscas, como aconteceu na primeira tentativa.
Chegaram perto
"Na primeira expedição, tenho certeza que chegamos bem perto dos restos do Endurance e, talvez, o nosso robô, que desapareceu, até o tenha filmado. Mas agora estou bem mais confiante, apesar de ser impossível dizer que acharemos o barco", diz o líder da expedição, John Shears, que trabalhará com uma equipe de 50 pessoas.
"Como a expedição anterior já vasculhou uma parte da região, a área a ser pesquisada agora é um pouco menor, embora, ainda assim, gigantesca", diz Shears, um admirador confesso de Ernest Schackleton.
O que ele fez, ninguém faria", diz.
Esmagado pelo gelo
Apesar do nome Endurance ("Resistência", em português), o barco de Shackleton não resistiu à pressão do gelo ao qual ficou preso por dez meses, e afundou em novembro de 1915.
O naufrágio não gerou vítimas, já que Shackleton e seus homens já estavam vivendo fora do barco, acampados no gelo.
Mas gerou uma das mais incríveis façanhas de sobrevivência do século passado, quando Shackleton, a bordo de um pequeno barco a remo, empreendeu uma heroica travessia de quase 1.500 quilômetros no mar aberto, em busca de ajuda para os seus comandados, que foram todos salvos, meses depois — feito que é considerado o mais extraordinário da história da conquista da Antártica.
Quando, porém, Schackleton retornou para resgatar sua equipe, o Endurance não existia mais.
Engolido pelo gelo, o barco desapareceu da paisagem e nunca mais foi visto. E é isso que a nova expedição tentará fazer: filmar o barco naufragado, no fundo do mar da Antártica.
Pode estar inteiro
Estima-se que o Endurance esteja a cerca de 3 mil metros de profundidade, mas em razoável bom estado, já que a combinação de água muito fria, com baixa oxigenação e nenhuma luminosidade, são favoráveis a preservação da embarcação — que tinha casco de madeira e 44 metros de comprimento.
Também o fato de estar em um ponto tão profundo do Mar de Weddell possivelmente permitiu que os blocos flutuantes de gelo tenham passado por cima do barco naufragado, sem danificá-lo.
A combinação destes fatores permite supor que, apesar de estar submerso há 107 anos, o Endurance ainda esteja inteiro, o que facilitará a sua localização pelo robô submarino, que também é mais desenvolvido que o modelo anterior.
O problema que pode ajudar
Outro fator que tem deixado a equipe otimista é que, ao contrário do que aconteceu na época de Schackleton, a cobertura de gelo do Mar de Weddell vem diminuindo ano a ano — um perverso sinal do aquecimento global.
Embora isso signifique um seríssimo problema ambiental, camadas de gelo menos espessas serão benéficas para a expedição, porque facilitarão a penetração do navio no mar congelado onde ocorreu o naufrágio, hoje considerado um dos mais icônicos barcos afundados ainda não encontrados no mundo — e, também, um dos mais difíceis.
Além disso, quanto mais rápido a equipe chegar ao local, mais tempo terá para procurar o Endurance, antes que termine o verão antártico, única época do ano em que é possível fazer esta operação.
"Difícil é chegar lá"
Na primeira expedição, o navio Agulhas II foi detido pelo gelo em algumas ocasiões e precisou dar grandes voltas para contornar as áreas mais críticas.
"O maior problema não é achar o Endurance, no fundo do mar. É conseguir chegar até lá", brincou, na ocasião, o comandante do navio.
Por isso, desta vez, a equipe não descarta a possibilidade de lançar e operar o robô submarino a partir de buracos feitos no gelo, em acampamentos avançados, caso o navio não consiga avançar até o local desejado.
Se isso acontecer, eles irão, de certa forma, reconstituir parte da experiência de Schackleton, que precisou acampar no gelo, quando o seu barco foi dado como condenado.
Só que Schackleton fez muito mais que isso
Fracasso fez dele um herói
Após a conquista do Polo Sul pelo norueguês Roald Amundsen, em 1911, feito que Schackleton queria para si, o explorador irlandês concluiu que a única façanha que restara na Antártica era a travessia a pé do continente gelado.
Era o que ele pretendia fazer, assim que atingisse um ponto da península Antártica onde pudesse ancorar o Endurance e iniciar a longa jornada.
Mas, por uma falha no planejamento da viagem, o mar congelou bem mais que o previsto, trancou o Endurance no gelo e a grande façanha de Schackleton acabou sendo a de tirar os seus homens daquele inferno branco, o que ele fez após uma epopeia histórica, ao navegar com um pequeno barco até a distante Ilha Geórgia do Sul.
Apesar do fracasso da expedição, Schackleton é tido como o maior nome da era das explorações polares e um exemplo de liderança, porque resgatou e salvou todos os tripulantes do Endurance, que hoje é considerado um barco histórico — daí o interesse em encontrá-lo.
Será apenas filmado
Mas, mesmo que isso aconteça, é certo que nada será feito nem retirado do barco afundado - porque ele será apenas filmado.
Pelo seu valor histórico, o Endurance já foi declarado como um monumento pelo Tratado Antártico", diz o chefe da expedição, John Shears.
"Por isso, iremos apenas filmá-lo e escaneá-lo a criação de um modelo em 3D, que, este sim, poderá ser visto pelas pessoas em um museu. Nunca pensamos em resgatar o barco, que deve ser deixado onde está, até porque seria inviável removê-lo do mar", diz Shears.
Por que não resgatar o barco?
Além das inimagináveis dificuldades em resgatar uma embarcação que supostamente está na mesma profundidade do Titanic — e num mar coberto por uma espessa camada de gelo —, haveria o risco de destruir o próprio barco na operação de resgate.
Ou que ele venha a se autodestruir depois, após tanto tempo debaixo d´água.
Casos semelhantes já aconteceram no passado e ensinaram historiadores e arqueólogos a resistirem à tentação de trazer de volta à superfície velhos barcos naufragados, porque eles podem não resistir a simples mudança de ambiente.
Um dos casos mais emblemáticos do gênero aconteceu em 1969, quando, após anos de esforço, um mergulhador americano conseguiu resgatar do fundo dos Grandes Lagos Americanos uma histórica escuna, a Alvin Clark, do século 19, com o objetivo de expô-la ao público e ganhar dinheiro com a venda de ingressos.
Mas deu tudo errado e o barco acabou sendo corroído pelo simples contato com o ar, e o que restou dele foi destruído pelos tratores de uma empresa imobiliária, interessada no terreno onde o barco estava — clique aqui para conhecer este caso, que, de tão escabroso, gerou a criação de uma legislação para a preservação de naufrágios nos Estados Unidos, o que não existia até então.
Foi um triste aprendizado.
Mas benéfico para o que pode acontecer com o lendário barco de Schackleton, quando começarem as buscas por ele, daqui a menos de um mês.
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