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25 anos depois, Legos que caíram no mar ainda chegam a praias da Inglaterra
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Exatos 25 anos atrás, no dia 13 de fevereiro de 1997, uma onda especialmente alta de uma tempestade perto da costa da Inglaterra atingiu a lateral do navio cargueiro Tokyo Express, que vinha da Holanda com destino a Nova York, repleto de contêineres.
Com o impacto, o navio inclinou apavorantes 60 graus para um lado e, na volta, 40 graus para o outro, afrouxando as pilhas de contêineres e arremessando 62 deles ao mar.
Seria apenas mais um corriqueiro acidente desse tipo (estima-se que cerca de 10 mil contêineres caiam no mar todos os anos), não fosse o que começou a acontecer em seguida, na costa do condado de Devon, na Inglaterra, a cerca de 40 quilômetros do local do incidente: milhares de pecinhas plásticas de Lego, aqueles brinquedos de montar que dez em cada dez crianças adoram, passaram a chegar às praias da região.
E continuam chegando até hoje, 25 anos depois...
4,8 milhões de peças
Desde o começo, era óbvia a relação entre o incidente com o cargueiro e surgimento das pecinhas plásticas nas praias inglesas.
Um dos contêineres que caiu no mar naquele dia tempestuoso transportava 4,8 milhões de Legos, ironicamente a maioria deles bonequinhos de seres marinhos: golfinhos, polvos, baleias, tubarões, piratas, marinheiros etc.
Na ocasião, a inglesa Tracey Williams morava à beira-mar, em Devon, e tal qual centenas de moradores da região, passou a recolher diariamente as pecinhas que chegavam aos montes à praia.
Isso se tornou um hábito, até que, anos depois, ele se mudou para outra cidade e esqueceu o assunto.
13 anos depois...
Mas, em 2010, Tracey voltou a morar no mesmo local, e, para sua surpresa, constatou que mais pecinhas continuavam a chegar à praia, embora 13 anos já tivessem passado desde o incidente com o cargueiro.
Desde então, ela segue coletando pecinhas na praia, quase que diariamente.
"Acho que os Legos continuam chegando porque estão sendo liberados aos poucos de dentro do contêiner, no fundo do mar", analisa Tracey.
Ou porque ainda seguem boiando por aí, aos milhares"
"Caçadores de Legos"
O fenômeno dos Legos que não param de chegar do mar levou Tracey Williams a criar páginas na internet e nas redes sociais, que logo foram ganhando muitos seguidores — boa parte deles, também transformados em "caçadores" das pecinhas plásticas que o navio transportava.
Com isso, surgiu também uma legião de colecionadores, que passaram a atribuir "valores" aos diferentes tipos de figuras, de acordo com a sua "raridade" — ou seja, a quantidade de pecinhas daquele tipo que o navio transportava e a frequência com elas chegam às praias.
Polvos valiosos
Hoje, um dos bonequinhos mais valiosos para os colecionadores dos Legos oriundos do acidente com o Tokyo Express são os dragões verdes (Tracey tem um deles), porque só havia 514 exemplares desta cor no contêiner extraviado — contra mais de 33 mil dragões negros, por exemplo, que, por isso mesmo, "valem bem menos".
Mesmo assim, as pecinhas consideradas mais preciosas pelos colecionadores são os polvos negros, porque, por conta dos tentáculos, eles grudam e se misturam às algas que chegam às praias, tornando bem mais difícil a sua visualização.
Tracey achou um polvo negro logo após o incidente, em 1997. Mas levou 18 anos para encontrar outro. "São bem raros", brinca.
Polvos valiosos
Atualmente, a comunidade criada involuntariamente por Tracey Williams na internet já soma 50 mil membros, quase todos ingleses, da mesma região que ela, mas muitos também de outros países vizinhos, como Bélgica, França e Holanda.
Até da distante Austrália, do outro lado do mundo, Tracey já recebeu informações sobre o aparecimento de pecinhas originárias do contêiner extraviado, por obra das correntes marítimas (oceanógrafos estimam que uma pecinha daquelas leve cerca de 3 anos para cruzar o Atlântico, por exemplo).
E quase todos relatam a mesma coisa:
Apesar de tantos anos dentro d´agua, as pecinhas continuam em bom estado. E isso é uma péssima notícia para o meio ambiente.
Abriu os olhos para o problema
"No começo, eu fiquei impressionada com o fato de os Legos não só ainda chegarem à praia após tantos anos, como, ainda por cima, estarem em bom estado", disse recentemente Tracey Williams à rede inglesa de notícias Sky News.
"Mas, em seguida, refleti sobre o quanto isso era ruim, porque mostrava claramente que aquelas pecinhas plásticas ainda estavam poluindo o mar, porque não se desintegram. Os Legos abriram os meus olhos para a dramática questão dos plásticos nos oceanos", diz Tracey, que, também recentemente, publicou em sua rede social duas imagens do mesmo tipo de peça, uma coletada em 1997 e outra este ano, 25 anos depois.
Ambas estavam praticamente iguais. Ou seja, o lixo plástico dura muito mais do que se imagina.
Livro sobre o assunto
Tracey decidiu, então, também publicar um livro, chamado "Adrift The Curious Tale Of The Lego Lost At Sea" ("À deriva. A curiosa história do Lego perdido no mar"), recém-lançado na Inglaterra, que usa a saga dos Legos lançados ao mar pelo navio, um quarto de século atrás, para tratar do tema do lixo plástico nos oceanos.
"Os bonequinhos de Legos me permitiram abordar a questão do lixo plástico no mar de uma maneira não perturbadora, como aves sufocadas ou tartarugas engasgadas com sacos, que, às vezes, incomodam tanto as pessoas que elas nem querem ver as imagens. Mas, como as pecinhas são divertidas, a abordagem do problema não gera incômodos, embora passe a mesma mensagem: a de que lugar de plástico não é no mar", explica Tracey.
Lixo como arte
No livro, ela também mostra muitas imagens de outros artefatos plásticos que costuma recolher na praia onde vive, como escovas de dentes, cabides, cotonetes e, obviamente, garrafas pet — um tipo de lixo doméstico que aumentou ainda mais com a pandemia da covid-19, que também gerou uma explosão de máscaras que acabam indo parar no mar, por terem sido descartadas incorretamente.
Mas, ainda assim, no livro, Tracey procura mostrar esse tipo de lixo de uma maneira "agradável" aos olhos, "quase como um tipo de arte-provocativa", diz.
"Todos os dias, eu encho um saco só com coisas plásticas que encontro na areia da praia e as encaminho para a reciclagem. Mas só passei a fazer isso por causa dos Legos", diz a inglesa.
Graças ao Legos, eu sei que tudo o que foi parar no mar naquele dia, 25 anos atrás, ainda está lá. E isso é muito preocupante"
Um caso ainda mais famoso
As pecinhas de Lego que teimosamente continuam a dar nas praias inglesas em quase perfeito estado, após duas décadas e meia no mar, são um perfeito exemplo da capacidade do plástico de resistir ao tempo, mesmo em um ambiente hostil como a água salgada.
Mas, embora curioso, não é o caso mais famoso do gênero.
Em 1992, cinco anos antes de o Tokyo Express derrubar parte dos seus contêineres na costa inglesa, outro incidente do mesmo tipo lançou ao mar, no meio do Oceano Pacífico, uma carga ainda mais peculiar — e ironicamente, ainda mais perniciosa aos oceanos: patinhos de plástico, desses usados em banheiras, para entreter as crianças.
Como eram brinquedos feitos para flutuar, os patinhos logo se espalharam por uma gigantesca área, e, levados pelas correntezas, passaram a surgir nos mais diferentes pontos do planeta.
Mas isso acabou sendo útil para a ciência, que, pela primeira vez, pode estudar na prática como funcionam as correntes marítimas (clique aqui para conhecer esta interessante história).
O navio acabou, o plástico não
No caso dos Legos ingleses, o navio que derrubou os contêineres no mar já não existe mais. Foi desmanchado e reciclado no ano 2.000.
Mas, 25 anos depois, as pecinhas de plástico que ele jogou no mar continuam lá.
E a conclusão assustadora é que, pelo menos nesse caso, o plástico durou mais que o aço.
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