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Descaso no São Francisco: canoa histórica segue debaixo d'água após um mês
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No final do mês passado, o elevamento abrupto do nível da água no Rio São Francisco, causado pela abertura de comportas na hidrelétrica de Xingó, gerou um drama que se arrasta até hoje: o afundamento parcial da mais histórica embarcação do Baixo São Francisco, a canoa de tolda Luzitânia, que tem cerca de 100 anos — e, por isso mesmo tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Histórico, dez anos atrás.
Desde então, apesar dos esforços da entidade que é dona da embarcação — e que existe apenas para preservá-la, a ONG Sociedade Canoa de Tolda —, o barco-símbolo do rio mais emblemático do Nordeste segue tombada, inundada, semi-submersa e já começando a dar sinais de encharcamento da madeira em certas partes, no município de Pão de Açúcar (AL), para desespero do carioca Carlos Eduardo Ribeiro Júnior, membro fundador da entidade, que, desde que isso aconteceu, exato um mês atrás, não tem feito outra coisa senão cobrar do Iphan o que determina a lei: que a canoa, por fazer parte do Patrimônio Histórico do país, seja retirada da situação dramática em que se encontra.
"Não temos dinheiro para isso"
"A Luzitânia precisa ser removida da água e levada para um estaleiro, para reparos. Mas nós não temos dinheiro para isso, e a Lei diz que é obrigação do Iphan impedir que um Patrimônio Histórico se deteriore", diz Carlos Eduardo, que é um apaixonado por aquela canoa, desde que a viu pela primeira vez, 25 anos atrás.
"Quando vi a Luzitânia navegando no São Francisco, em 1997, com suas grandes velas abertas, feito as asas de um pássaro, fiquei fascinado e decidi que iria comprá-la para preservá-la. Mas, agora, não tenho como arcar com as despesas de restaurar o barco inteiro", diz o principal responsável pela ONG Canoa de Tolda, que,garante que já vinha alertando o Iphan há tempos sobre a necessidade de remover o barco do local onde ele estava para um estaleiro de verdade — que fica a cerca de 190 quilômetros de distância, rio abaixo.
"Quando a água do rio começou a subir rapidamente, foi impossível evitar que a canoa inundasse, porque ela estava na margem, com o casco aberto, sendo reparado", explica Carlos Eduardo.
Foi angustiante ver a canoa encher de água e tombar no rio. A única coisa que deu para fazer foi amarrar os mastros nas árvores, para evitar que ela fosse levada pela correnteza"
Única que restou
Hoje, um mês depois, a única canoa de tolda original que restou (assim chamada por possuir uma espécie de cabine, a "tolda", onde eram transportadas as mercadorias no passado), continua na mesma situação, no mesmo local.
"Ela só não afundou porque ali o rio é raso e porque o casco da canoa de tolda tem flutuação positiva, ou seja, foi feito para boiar, mesmo se encher de água", explica Carlos Eduardo.
"Mas ela não pode ficar assim por muito tempo, porque, com o tempo, a madeira e os equipamentos começam a estragar", alerta, desconsolado.
Temos que salvar essa canoa, porque ela é histórica. Até Lampião navegou nela"
"Se a Luzitânia apodrecer no rio por falta de resgate será como se tivéssemos matado um rinoceronte branco, algo único e em extinção", compara o ambientalista, que completa:
"O desaparecimento da última canoa de tolda será como uma amputação cultural para o Brasil", avaliza outro especialista no assunto, o navegador Amyr Klink, que também é apaixonado pelas embarcações rudimentares do país.
"A questão é política"
Mas por que, um mês depois, nada foi feito para, ao menos, tirar a canoa de dentro d´água, já que ela está na margem do rio?
"Porque não há como fazer isso naquele local, e porque a principal questão é política", analisa Carlos Eduardo, que sempre teve boa relação com o Iphan — até que, recentemente, o órgão passou a ter outros dirigentes.
A lei obriga o Iphan a agir em casos assim, mas eles não estão nem aí para a situação da canoa, que é uma relíquia única, herança da colonização holandesa no Brasil", diz Carlos Eduardo
"Impossível e inviável"
Segundo Carlos Eduardo, a remoção da canoa, que tem 16 metros de comprimento, do local onde está por terra firme "é impossível" e "financeiramente inviável".
"O único jeito é tirar a água de dentro do casco, fazer um reparo de emergência e rebocar a canoa rio abaixo, até um estaleiro, em Penedo. Mas isso também custa dinheiro e nós não temos", garante.
"O que dava para retirar da canoa inundada, a fim de preservá-la, como equipamentos esculpidos à mão por mestres carpinteiros que já morreram, nós já tiramos. Mas, o barco em si, não temos como. Só mesmo com apoio financeiro do Iphan, que se recusa a fazer isso".
Justiça para salvar a canoa
Angustiado em ver a canoa coberta pela água, a ONG presidida por Carlos Eduardo recorreu à Justiça contra o Iphan.
Na última segunda-feira, terminou o prazo dado pela Justiça Federal em Sergipe para que o órgão se pronunciasse.
O Iphan apresentou, então, um relatório técnico de inspeção da embarcação, feito pela Capitania dos Portos, "visando a reflutuação e remoção da canoa", mas não especificou quando ou se isso irá acontecer.
Contatado, o órgão complementou que "a responsabilidade pela conservação, uso e gestão de bens tombados continua sendo dos proprietários", e que, no caso da canoa de tolda, "está convocando a Chesf - Companhia Hidrelétrica do São Francisco, para contribuir para a solução do problema, uma vez que ela é responsável pela barragem que gerou a inundação da canoa".
Por fim, o Iphan alegou que as empresas especializadas contatadas pelo órgão para fazer um "levantamento do estado da embarcação" vêm sofrendo "dificuldades em obter do proprietário do barco as informações necessárias".
Em comunicado enviado à reportagem, Carlos Eduardo afirma que as duas empresas que entraram em contato até o momento "tiveram absolutamente todas as informações solicitadas [...], inclusive com envio de fotografias do local etc".
Um mau exemplo
O que Carlos Eduardo e todos os ribeirinhos do Baixo São Francisco (que, ao longo de gerações, se habituaram a ver a grande canoa transportando mercadorias no rio) querem evitar é que a Luzitânia tenha o mesmo triste fim que outras tantas embarcações emblemáticas que o Brasil já teve — esquecidas e apodrecidas pelo tempo.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com o primeiro veleiro oceânico brasileiro, o Vendaval, construído em 1942 e protagonista de uma das mais empolgantes chegadas do esporte no país, quando um capricho da natureza, na entrada da Baía de Guanabara, o fez perder por míseros metros para um barco argentino uma competição que havia começado 11 dias antes, em Buenos Aires.
Acabou como sucata
Embora tenha sido o responsável pela criação das próprias regatas em mar aberto no Brasil — algo que até então também não existia por aqui —, o Vendaval (clique aqui para a ler a história deste veleiro icônico), acabou os seus dias transformado em uma pilha de escombros, esquecidos no fundo de um galpão.
O que o abnegado Carlos Eduardo quer evitar a todo custo é que o mesmo aconteça com a canoa de tolda que ele protege há um quarto de século.
Mas, coberta pela água, ela já está.
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