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O que é real ou ficção em 'O Mistério do Farol', o novo filme da Netflix
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Logo na sua apresentação, o novo filme da Netflix "O Mistério do Farol" deixa claro que se trata de uma história "inspirada em um caso real".
E foi mesmo, como bem sabem todos os velhos moradores da costa noroeste da Escócia, onde fica a ilha Flannan, dona de um solitário farol, palco do episódio que inspirou o filme.
Mas só inspirou, porque de 100% verdadeira a história contada no filme nada tem.
A única coisa que corresponde a realidade no filme é que, em dezembro de 1900, três faroleiros que ocupavam a ilha sumiram, como, aliás, o próprio título original do filme ("The Vanishing" — "O Desaparecimento") já entrega desde o princípio — nisso o título criado pela distribuidora brasileira é mais feliz e prudente, coisa rara por aqui.
A mais infantil das teorias
Mas, a história contada pelo diretor filme, Kristoffer Nyholm, não passa de pura fantasia infantil: o surgimento de um náufrago com um tesouro, que despertou a ganância e minou a relação entre aqueles homens isolados do resto do mundo.
Na vida real, entre todas as teses até hoje levantadas para explicar o misterioso desaparecimento daqueles três faroleiros escoceses, a de que um valioso tesouro que teria fomentado os piores sentimentos humanos é a única que jamais foi aventada — um enredo enganosamente fantasioso e desnecessário, porque a história real foi ainda mais intrigante do que a ficção inventada pelo filme.
Só o início é real
Como o filme corretamente mostra nos seus primeiros minutos, tudo começou quando uma equipe de três faroleiros (James Ducat, Thomas Marshall and Donald MacArthur, papéis desempenhados, respectivamente, pelos atores Gerard Butler, Peter Mullan e Connor Swindells) foi enviada para um turno habitual de seis semanas na deserta Ilha Flannan, a cerca de 40 quilômetros da costa escocesa. E nunca mais foram vistos.
Daí em diante, convém não acreditar em mais nada da história contada no filme — embora, por outro lado, seja impossível afirmar o que aconteceu com aqueles três infelizes.
Sumiram todos
O que se sabe de real é que eles desembarcaram na ilha no dia 7 de dezembro, e que, em seguida, começou uma forte tempestade na região, que durou dias.
Aparentemente, porém, estava tudo bem com os três homens isolados naquela ilha, onde só havia um atracadouro, a casa onde se abrigavam e o farol que, dadas as dificuldades da navegação na região, tinha que ser monitorado 24 horas por dia.
Mas, dias depois, em 15 de dezembro, ao passar pelas imediações da ilha, o comandante do vapor Archtor estranhou não ver as luzes do farol da ilha Flannan acesas, e comunicou o fato às autoridades.
O superintendente dos faróis da região estranhou aquela informação e despachou um barco para a ilha Flannan, para checar se estava tudo bem com os três faroleiros.
Mas sequer os achou na ilha
A tese mais provável
Tudo o que a equipe de resgate encontrou foram partes danificadas no atracadouro (corrimão retorcido, caixa de equipamentos rompida, tufos de grama arrancados ao redor do trapiche e uma enorme pedra que rolara sobre ele — claros sinais de que o mar havia massacrado a costeira da ilha durante a tempestade), um dos três macacões que os faroleiros tinham para se proteger do mau tempo (dois deles teriam sido vestidos por parte dos homens que sumiram) e uma intrigante refeição intacta, ainda sobre a mesa, bem como uma cadeira caída — prova inequívoca de que alguém precisou sair às pressas da casa.
Como as regras vigentes proibiam que os três faroleiros saíssem da ilha ao mesmo tempo (um deles tinha sempre que ficar de prontidão, para cuidar do farol), a conclusão óbvia da equipe foi a de que aqueles homens haviam sido vítimas da tempestade que atingiu a ilha — dois deles teriam saído para inspecionar os equipamentos no atracadouro e foram tragados pelas ondas, e o terceiro, ao ouvir um eventual pedido de socorro, teria saído às pressas da casa (daí não ter sequer vestido a roupa de abrigo) e encontrado o mesmo fatídico destino.
O caso parecia esclarecido. Mas não.
Teses estapafúrdias
Logo, começaram a surgir rumores e teorias conspiratórias sobre o desaparecimento misterioso daqueles três homens, cujos corpos jamais foram encontrados — um deles, James Ducat, bastante conhecido pelo seu temperamento forte e instável, características incompatíveis com a vida isolada e quase psicótica dos faroleiros.
Uma das teorias pregava que o próprio James (papel de Gerard Butler) poderia ter começado uma briga e, na confusão, os três teriam despencado no mar, do alto dos despenhadeiros que cercam a ilha Flannan.
Outra, que o próprio James poderia ter atirado os dois companheiros ao mar e, depois, vítima de remorso, se suicidado da mesma forma.
Vítimas do mar
Apesar de outras tantas teses mirabolantes (ataques de pirataria, sequestro por espiões, fuga dos três da ilha a fim de escaparem de dívidas contraídas e outras teorias estapafúrdias), prevaleceu o bom senso.
E a conclusão mais aceita foi a de que os três faroleiros teriam sido vítimas do mar inclemente e da própria imprudência, ao abandonar a segurança da casa para inspecionar os equipamentos no atradacouro durante a tormenta — a grama arrancada e a pedra rolada não deixavam dúvidas de que grandes ondas haviam varrido a ilha.
Dois livros sobre o caso
Mais tarde, isso foi reforçado pelo autor de um livro sobre o caso, John Love, que defendeu a tese de que dois dos três faroleiros haviam saído da segurança do abrigo porque temiam ser multados pelo administrador do farol caso algo acontecesse com os equipamentos no atracadouro — o que já havia ocorrido no passado, com eles próprios.
"Não houve mistério algum na Ilha Flannan, e sim uma tragédia", defendeu o autor, no livro.
Já outro autor, o ex-faroleiro Archie MacEachern, em um livro póstumo publicado por sua esposa após sua morte, em 2005, defendeu outra teoria: a de que os três faroleiros foram vítimas do próprio heroísmo, ao tentar salvar as vítimas do naufrágio de um barco norueguês que teria sucumbido na tormenta, e cujos restos foram dar nas praias da região nos dias subsequentes.
Para tentar salvar as vidas de outras pessoas, aqueles três faroleiros perderam as deles", resumiu o autor, no livro, dando aos desaparecidos a honra de terem morrido como heróis, já que nunca ninguém soube — nem jamais saberá — como isso, de fato, ocorreu.
Lendas e mais lendas sobre o caso
Como os corpos dos faroleiros da Ilha Flannan jamais foram encontrados, surgiram lendas e mais lendas sobre o caso, entre as quais a mais fantasiosa é justamente a que o filme de Kristoffer Nyholm ingenuamente abraça: a de que um náufrago com um baú cheio de ouro teria provocado o conflito e gerado o fim dos três envolvidos.
É algo ingênuo demais para um filme que visa os adultos, até por conta da violência incômoda e exagerada de algumas cenas — únicos momentos em que, por sinal, "O Mistério do Farol" rompe a sonolenta lentidão que o domina.
Embora esteja entre os filmes mais assistidos da Netflix nos últimos dias — justamente por ter um tema instigante para muitas pessoas e se inspirar em um caso real —, "O Mistério do Farol" está tão longe de ser um grande filme quanto o facho de um farol de verdade — e, com certeza, gera mais decepções do que aplausos dos seus espectadores.
Bem melhor teria sido se o diretor Nyholm tivesse optado por fazer um documentário, uma vez que a realidade do caso é bem mais interessante do que a história que ele inventou.
A rigor, o único mérito de "O Mistério do Farol" é trazer à tona o mais famoso e perturbador quebra-cabeças da história marítima escocesa, um caso que jamais será totalmente explicado.
Faroleiras heroínas
Por suas próprias características (isolamento, privações, atos de heroísmo, etc), faróis e faroleiros sempre geraram boas histórias.
Sobretudo as verídicas, como o filme recém-lançado na Netflix pretensamente mostra.
Mas nem sempre envolvendo apenas homens.
Ao longo dos tempos, diversas mulheres também desempenharam o papel de faroleiras, em ilhas remotas.
Duas delas até entraram para a História, como heroínas em uma atividade eminentemente masculina.
Uma foi a inglesa Grace Darling, que, embora jovem, ajudou a salvar cinco náufragos, na ilha cujo farol sua família era responsável.
Outra, ainda mais festejada, foi a americana Ida Lewis, que viveu mais de meio século sozinha em uma ilha deserta, cuidado de um farol que salvava vidas na costa dos Estados Unidos — e ela própria salvou várias, com um simples bote a remo, sem temer o oceano (clique aqui para conhecer estas duas interessantes histórias).
Tanto quanto os faroleiros escoceses desaparecidos, a vida de Grace e Ida Lewis renderiam bons filmes. E nem seria preciso inventar história alguma.
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