Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Por que localizar barco Endurance foi tão importante quanto achar o Titanic
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
No sábado passado, uma bem-equipada equipe de buscas anunciou, eufórica, a descoberta, no fundo do Mar de Weddell, na Antártica, do barco Endurance, usado pelo explorador irlandês Ernest Shackleton na sua malfada expedição ao continente gelado, 107 anos atrás.
O barco ficara preso ao gelo em janeiro de 1915, fora esmagado meses depois e afundou, levando Shackleton a empreender aquela que é considerada uma das mais extraordinárias sagas oceânicas de todos os tempos — daí a relevância do achado, que, em termos históricos recentes, só se compara à descoberta do Titanic, pelo oceanógrafo americano Robert Ballard, em 1985.
Nas últimas décadas, o Endurance era o naufrágio mais procurado do mundo e sua descoberta foi comemorada como um feito histórico, só possível graças à tecnologia — como, aliás, também aconteceu com o Titanic, que todos igualmente sabiam onde havia afundado, mas só com tecnologia seria poderia encontrá-lo.
Mas, por que a descoberta do barco de Schackleton é tão relevante assim para a história?
Estes são alguns motivos.
Porque o barco continua inteiro, mais de um século depois
O fundo do mar, a grandes profundidades, é um ambiente inóspito, tanto para homens quanto máquinas — a pressão é brutal e a corrosão e incrustação marinha logo se encarregam de desfigurar os barcos que afundam.
Mas, surpreendentemente, não foi o que aconteceu com o Endurance, o valente barco de madeira, de 44 metros de comprimento, de Schackleton.
Ao contrário, ele foi encontrado praticamente intacto, apenas com os danos que havia sofrido quando foi tragado pelo gelo, motivo do seu naufrágio.
Mastros, timão, escotilhas, amuradas, até o nome do barco claramente visível na popa — tudo estava em perfeito estado, como se o Endurance tivesse afundado no mês passado, e não exatos 107 anos atrás.
Além disso, ele chegou ao fundo em "posição de navegação", algo igualmente raro de acontecer.
Ou seja, não virou nem capotou durante a longa descida de 3.008 metros até o fundo do Mar do Weddell, o que favoreceu a visualização de detalhes da embarcação e a consequente análise que os especialistas agora farão das imagens, em busca de mais informações sobre como eram os barcos de um século atrás.
Os pesquisadores da equipe de buscas já esperavam que o barco estivesse em "razoável bom estado", dada a grande profundidade, o que limita a quantidade de vida marinha.
Mas não esperavam encontrar o Endurance tão bem conservado.
É o mais bem preservado naufrágio de um barco de madeira que eu já vi", garantiu o chefe da expedição, Mensun Bound.
E ele não estava exagerando. O Endurance sobreviveu ao tempo.
Isso é histórico e espantoso, ao mesmo tempo.
Porque comprova a evolução da tecnologia
A expedição que encontrou o barco de Schackleton, no sábado passado, não foi a primeira a tentar encontrá-lo.
Três anos atrás, outra expedição com o mesmo navio de pesquisas, o quebra-gelo sul-africano Agulhas II, também tentou localizar o Endurance no fundo do Mar de Weddell, mas teve que ser interrompida quando o submergível não tripulado que era usado para vasculhar o leito marinho desapareceu sob os blocos de gelo.
Na ocasião, decepcionado, o então chefe da expedição, John Shears, disse: "Talvez, o nosso robô submarino até tenha encontrado o Endurance, mas jamais saberemos isso".
Para não correr o mesmo risco de perder o principal equipamento de buscas, a nova expedição, batizada de Endurance22, usou um submergível altamente tecnológico, capaz de ser operado remotamente pelos técnicos a bordo do navio, caso enfrentasse algum problema, como aconteceu na primeira vez, quanto operar como veículo autônomo, ou seja, com capacidade de achar o próprio caminho sob os blocos de gelo.
Além disso, a equipe usou imagens em tempo real de um satélite da agência espacial alemã para traçar o caminho que o navio faria entre os blocos de gelo, até alcançar a região a ser explorada, já que o acesso àquela região da Península Antártica sempre um grande obstáculo à navegação — o próprio Schackleton que o diga.
O local do naufrágio era sabido — porque o navegador da expedição de Schackleton teve o cuidado de deixar anotadas as suas coordenadas.
Mas o ponto exato onde os restos do barco estariam, não, porque o Endurance ficou atado a um bloco de gelo flutuante, que seguiu empurrado pelos ventos por mais três dias, alterando assim a precisão das marcações — e também porque, na sua lenta descida de três quilômetros até o fundo do mar, a correnteza certamente teria se encarregado de empurrar o barco ainda mais para longe, o que, de fato, aconteceu.
No total, a nova expedição vasculhou, em permanentes ziguezagues, durante duas semanas e meia, uma gigantesca área de 241 km2, até localizar, graças à tecnologia, o que tanto os pesquisadores procuravam: o naufrágio mais famoso do mundo, desde o do Titanic.
Sem a ajuda da tecnologia, o Endurance jamais seria encontrado, porque estava há seis quilômetros de distância do ponto que havia registrado pela história - que, agora, também será reescrita.
Porque o barco poderá ser "visto" por qualquer pessoa
Desde os primeiros estudos sobre a busca do Endurance, ficou determinado que nada seria retirado do barco, caso ele fosse encontrado — já que, mesmo não localizado, ele já havia sido declarado como "monumento histórico" pelo Tratado Antártico.
O projeto, então, consistiria apenas em filmar os restos do histórico barco com equipamentos de alta definição, e escaneá-lo inteiro com lasers, para a criação de um modelo 3D, em escala real e precisão milimétrica - uma forma de poder "exibir" o barco às pessoas sem que elas precisassem mergulhar, e exibi-lo em museus, sem remover o barco de onde ele está — sem contar que qualquer pesquisador poderia "passear" ao redor do barco e analisá-lo, através dos recursos da realidade virtual.
E assim foi feito.
As primeiras imagens divulgadas do barco deixam claro que o projeto foi plenamente bem-sucedido — sem contar o extraordinário êxito das buscas nos pontos onde o Endurance poderia estar, no fundo do mar congelado da Antártica.
Ainda assim, nem todos concordaram com o compromisso de não retirar absolutamente nada do barco — sequer uma lasca de madeira do casco, como testemunha tangível da sua existência.
O argumento dos críticos da severidade nas restrições é que, como não se trata de um túmulo submerso, já que ninguém morreu no naufrágio (ao contrário, todos os 27 membros da expedição foram resgatados e salvos por Shackleton), seria muito mais valioso para a história recuperar as imagens que o fotógrafo da expedição deixou para trás, quando Shackleton determinou o abandono do barco (naquela época, as fotos eram gravadas em chapas de vidro, portanto, resistentes a água) do que deixá-las para sempre onde estão, em local impossível aos olhos humanos.
Mas o chefe da expedição, Mensun Bound, resumiu assim a questão: "O Endurance é um ícone histórico e, como tal, não pode ser violado".
E assim será, embora ele esteja para a comunidade mundial assim como a caravela de Cabral para os brasileiros — um objeto histórico tentador.
Porque permitirá aos cientistas estudar até seres marinhos
Quando as primeiras imagens do Endurance foram divulgadas, um outro grupo de pesquisadores se ateve a detalhes que não diziam respeito ao barco — mas sim ao ambiente marinho onde ele estava.
Até então, biólogos jamais haviam tido acesso a imagens tão claras (até por conta da transparência da água, mesmo a 3 mil metros de profundidade) do fundo do Mar de Weddell, na Antártica.
A expectativa era que, dada a profundidade e temperatura da água, houvesse pouquíssima vida em torno do barco naufragado.
Mas, também neste caso, o resultado foi surpreendente.
Anêmonas, esponjas, estrelas do mar e até uma inesperada espécie de caranguejo foram registradas atadas ao barco, que, no entanto, como era de se esperar, estava livre de cracas e incrustações, o que permitiu visualizar ainda melhor tanto o próprio casco quantos os seres marinhos que hoje o habitam.
E que são bem mais numerosos do que se esperava encontrar em um ambiente tão inóspito.
Porque o Endurance simboliza a determinação de Schackleton
Não foi por acaso que a expedição que encontrou o barco de Schackleton tenha ocorrido no mesmo ano em que se homenageou os 100 anos da morte do famoso explorador, morto, de ataque cardíaco, quando seguia novamente para a Antártica, em 1922 — ela havia sido planejada para propositalmente coincidir com a data.
Ainda assim, a não coincidência gerou emoção entre os membros da equipe, que já davam a nova expedição também como fracassada, uma vez que eles só poderiam ficar na região por mais cinco dias.
A busca pelo barco foi como a personalidade do próprio Schackleton", resumiu o historiador e apresentador britânico de televisão Dan Snow, que fez parte da expedição.
"Schackleton era persistente, resistente e determinado. Basta ver como ele resgatou todos os seus homens, e transformou o fracasso da sua expedição em um ato heroico. Foi um líder na expressão máxima da palavra e uma prova de nunca se deve desistir de nada. Achar o seu barco foi uma forma adequada de terminar uma história extraordinária".
Quem foi Shackleton?
No início do século passado, o explorador irlandês Ernest Shackleton queria se tornar a primeira pessoa a cruzar a pé a Antártica — mas acabou se tornando um herói por conta justamente do fracasso da sua audaciosa expedição.
Por uma falha no planejamento da viagem, o Mar de Weddell, na Península Antártica, para onde Shackleton seguiu com o Endurance e uma tripulação de 27 homens, congelou bem mais cedo que o previsto, trancou o barco e a grande façanha do explorador acabou sendo a de tirar os seus comandados de lá, o que fez após uma façanha quase inacreditável: navegou, com um pequeno barco a remo e cinco homens, até a distante Ilha Geórgia do Sul, a 1.500 quilômetros de distâncias, em busca de ajuda, em um dos mares mais perigosos do mundo.
Pela bravura e determinação, Schackleton é considerado o maior nome da era das explorações antárticas e um exemplo de liderança, por ter resgatado todos os seus homens, além de ter sido eternizado como um dos mais eloquentes exemplos de heroísmo no mar que se tem notícia.
Daí a importância histórica de terem encontrado o seu barco, na semana passada.
Um clandestino a bordo
Schackleton morreu de um prosaico ataque cardíaco, quando se dirigia, uma vez mais, à Antártica, em janeiro de 1922.
Mas deixou um legado de bravura e liderança que transcende ao tempo.
Mesmo quando a situação era adversa e inesperada, ele sabia como conduzir seus homens para atingir o objetivo pretendido.
Como quando descobriu a presença de um infeliz tripulante clandestino na naquela fatídica viagem, algo totalmente improvável, e uma curiosa história que a descoberta do barco de Schackleton trouxe de volta à tona e pode ser conferida clicando aqui.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.