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Velejador encontrado à deriva no RN morreu de fome e sede, revela necropsia
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Na manhã do último 7 de maio, três humildes pescadores de Natal, no Rio Grande de Norte, pescavam a cerca de 25 quilômetros da costa, quando viram, ao longe, um barco à deriva.
Era um veleiro, mas em péssimo estado e sem o mastro, sinal de que estava no mar há bastante e de que havia enfrentado algum problema realmente sério.
Intrigados, eles resolveram se aproximar, para averiguar.
Como não enxergou ninguém a bordo, um dos pescadores decidiu entrar no barco abandonado.
Mas o que ele viu o deixou tão apavorado que saiu correndo e se atirou no mar, nadando em disparada na direção dos companheiros — que, em seguida, acionaram, pelo rádio, a Marinha.
Um corpo no barco
O que deixou o pescador tão assustado foi um corpo humano, já em avançado estado de decomposição, que havia dentro do barco — sinal de que, o que quer que tenha acontecido, acontecera muito tempo antes.
Mas, o quê?
O que teria causado a morte daquela pessoa, que jazia, reduzida a pelo e osso, no assoalho da cabine do barco avariado?
Começava ali um mistério que, mesmo hoje, mais de 20 dias depois, ainda não tem uma total explicação.
O que sabe sobre o caso
Acionada, a Marinha pediu a ajuda de um outro pescador local, Geraldo Alves, o Geraldinho, para rebocar o barco até Natal, onde a Polícia Federal e o Itep (Instituto Técnico-Científico de Perícia) da capital potiguar entraram em ação e iniciaram a investigação.
Que, no entanto, ainda não avançou tanto, a ponto de desvendar todo o mistério.
Desnutrição e desidratação extremas
Até agora, o máximo que se conseguiu saber é que a vítima morreu de "desnutrição e desidratação extrema", como atestou o laudo da necropsia emitido pelo Itep, na manhã de hoje, segunda-feira (30).
E que a vítima, muito possivelmente, é o italiano Stefano Magnani, de 52 anos, morador da pequena cidade italiana de Bellaria-Igea Marina — dedução fácil, já que, dentro do barco, havia diversos documentos com o nome dele, inclusive um passaporte (já vencido) e uma carteira de identidade.
Sem rosto nem digitais
No entanto, como o corpo da vítima já não tinha mais rosto para ser confrontado com as fotos nos documentos, nem impressões digitais que pudessem ser colhidas, a única forma de comprovar sua identidade é através de um exame comparativo de DNA com os familiares de Magnani, na Itália, o que foi pedido através do Consulado Italiano, em Recife.
Mas o consulado não informa se recebeu confirmação positiva da família, nem se as amostras já foram colhidas, embora afirme que "os familiares não pretendem fazer declarações e desejam vivenciar esses dias de dor intensa de maneira reservada", o que permite pressupor a comprovação da identidade da vítima.
Depende do teste de DNA
Apesar de a confirmação oficial da identidade da vítima depender da comparação dos exames de DNA (que o Itep não sabe afirmar quando acontecerá, porque ainda não recebeu nenhum laudo vindo da Itália), é pouco provável que a vítima não seja, de fato, o italiano retratado nos documentos.
Faltava o mastro
Também da mesma forma, é fácil deduzir o que levou o velejador à morte.
Quando o seu barco, um velho veleiro de 12 metros de comprimento, batizado com o nome Mona-Mi F.S e registrado na cidade sueca de Falkenberg (fato reforçado pela esfarrapada bandeira da Suécia pendurada na popa) foi encontrado, faltava-lhe o mastro — item fundamental em qualquer barco à vela, já que ele é o responsável pela sustentação das velas, que dão movimento à embarcação.
Sem o mastro, um veleiro fica tão impossibilitado de avançar quanto um automóvel sem motor.
E a queda do mastro sobre o próprio barco causara diversas avarias nas grades laterais do convés, piorando ainda mais o estado da embarcação.
Morte por fome e sede
Com o resultado da necropsia, divulgado hoje, também já se sabe, oficialmente, o que vitimou o velejador: a fome e a sede, o que já era esperado.
Quando barco foi vistoriado pela Polícia Federal, não foi encontrado um grão de alimento a bordo.
Até a ração de sobrevivência da balsa salva-vidas, equipamento que todo barco oceânico possui, havia sido extraída e consumida.
Havia ou não água?
Segundo duas testemunhas, havia, no entanto, ainda um pouco de água doce nos tanques do barco, embora já devidamente apodrecida, pelo tempo que ficara estocada.
A princípio, aquele resto de água, eliminaria a hipótese de morte por desidratação, a mais comum nesse tipo de situação, já que o ser humano sucumbe dez vezes mais rápido à falta de água do que de alimento no organismo.
Mas o laudo da necropsia também apontou a falta de água como uma das causas da morte do velejador, que deve ter sido bem lenta, sofrida e dolorida.
Talvez, nunca se saiba
Ou seja, já sabe o que gerou a tragédia (a queda do mastro do barco), a identidade da vítima (que a comparação dos exames de DNA deve apenas confirmar) e a causa da morte do velejador (a fome e a sede).
Mas resta saber o que provocou tudo isso.
E isso, muito provavelmente, jamais se saberá.
Uma hipótese para a tragédia
Casos de barcos encontrados à deriva, e sem testemunhas, são sempre difíceis de decifrar.
Mas algumas evidências podem dar pistas sobre o ocorrido.
No caso do veleiro encontrado no litoral potiguar, o mais provável é que ele tenha perdido o mastro durante uma tempestade ou vento mais forte, como sugerem os cortes propositais feitos nos cabos de aço que sustentavam a peça.
Ferramentas a bordo
Quando o mastro de um veleiro desaba, a primeira providência de qualquer velejador experiente (como parecia ser o caso daquele suposto italiano, a julgar pela quantidade de ferramentas que havia a bordo — inclusive uma morsa de tamanho profissional) é justamente cortar os cabos de aço, para que o peso na peça tombada não afunde o próprio barco.
E isso foi feito.
Sistema para captar água da chuva
Experiente e habilidoso, ele, aparentemente, também improvisou um sistema de captação de água da chuva para beber, a julgar pela quantidade de garrafas pets amontoadas no convés, quando o barco foi encontrado.
Contudo, estranhamente, não havia nenhum sinal de que um sistema improvisado de sustentação das velas tivesse sido montado, como também é comum nesses casos,
Ao contrário, a vela principal do barco, embora rasgada, continuava enrolada no que restara da retranca do mastro, caída sobre o convés.
Leme também quebrado
A explicação para isso pode estar em outro equipamento fundamental — e igualmente danificado — que havia no barco: o leme, que dá direção ao movimento da embarcação.
No veleiro sinistrado, o lema estava igualmente quebrado, o que pode ter tornado limitada, ou mesmo inútil, a eventual ação de uma vela de emergência.
Mas a quebra do leme pode ter ocorrido só após a queda do mastro, quando o barco ficou à mercê das movimentações nem sempre tranquilas do oceano.
Certo é que, sem mastro nem leme, não havia como gerar movimentação nem dar rumo ao barco, para infelicidade do dono do corpo que nele foi encontrado.
Não havia mais combustível
Quando o barco foi encontrado, também não havia mais combustível no tanque, embora o motor estivesse em perfeito estado — sinal de que a vítima tentou avançar a motor, até que o combustível acabou.
Sem o motor para carregar as baterias do barco, o velejador também ficou sem nenhum meio de comunicação com o mundo exterior — caso isso já não tivesse ocorrido quando do desabamento do próprio mastro, onde costumam ficar as antenas de transmissão dos equipamentos de navegação e rádio.
O resultado deste somatório de infortúnios, muito possivelmente, resultou em uma agonizante morte, uma vez que a necropsia não identificou nenhuma lesão causada por acidente no corpo.
Meses e meses no mar
Contudo, entre as dúvidas que ainda pairam sobre este caso, tampouco se sabe de onde partiu aquele barco — nem mesmo se havia outras pessoas a bordo, o que, no entanto, a julgar pelos documentos de uma só pessoa encontrados a bordo, é pouco provável.
Certo é que o veleiro Mona-Mi F.S estava fazendo a travessia do Atlântico, talvez rumo ao Brasil ou de volta à Europa, já que o ponto onde foi encontrado faz parte de uma poderosa corrente marítima que vem desde a costa da África, ponto mais provável de partida do barco.
Mas tampouco se sabe quando isso teria começado, embora também seja possível afirmar que foi um bom tempo atrás.
Morto há dois meses
Pelo estado geral do casco do barco e quantidade de manchas e cracas nele grudadas, é certo que aquele barco jazia à deriva no mar, com seu ocupante a bordo — vivo ou já morto —, por meses à fio.
Os técnicos do Itep estimaram que a morte ocorreu "cerca de dois meses antes de o cadáver ser encontrado", embora o martírio do velejador deva ter começado bem antes disso, quando acabou a água e a comida.
"Ele estava quase mumificado", confirmou o pescador que resgatou o barco, ao repórter Paulo Nascimento, do portal TAB, do UOL, o primeiro a noticiar o fato, no dia seguinte ao achado.
O cheiro dentro do barco era insuportável", disse também o homem que fez o resgate do barco, cuja história segue sendo um mistério ainda não totalmente explicado.
Virou múmia
Processos de quase auto-mumificações por conta da desidratação extrema do corpo humano no mar são raros, mas não inéditos.
O fato mais famoso do gênero aconteceu seis anos atrás, com um também velejador, o alemão Manfred Fritz Bajorat, cujo corpo foi encontrado dentro de seu barco, no mar das Filipinas, em perfeitíssimo estado — até com os cabelos penteados —, embora tivesse morrido muitos meses antes — clique aqui para conhecer este impressionante caso.
Só que, no caso do velejador alemão, a causa da morte foi um fulminante ataque cardíaco, que ao menos o poupou do agonizante sofrimento de uma morte por inanição e desidratação, como aconteceu com o infeliz navegador que foi dar no Rio Grande do Norte, 23 dias atrás.
Para ele, o destino parece ter sido ainda mais cruel.
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