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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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50 anos depois, família recorda como sobreviveu no mar, sem água nem comida

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Colunista do UOL

11/06/2022 04h00

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A próxima quarta-feira, 15 junho, será uma data especial para a família inglesa Robertson.

Tanto que um de seus membros, Douglas Robertson, de 67 anos, fará uma palestra no Museu Marítimo de Cornwall, na Inglaterra, justamente para recordar o fato que tornou sua família igualmente excepcional.

Nesta quarta, completam-se exatos 50 anos do naufrágio do barco no qual os Robertson (pai, mãe, três filhos pequenos e um jovem mochileiro) viajavam, em uma travessia do Oceano Pacífico, em junho de 1972, quando foram atacados por um grupo de orcas, gerando uma das mais extraordinárias histórias de sobrevivência no mar que se tem notícia.

38 dias no mar

Durante 38 dias, a família Robertson (dois adultos, duas crianças e dois adolescentes — um deles, o próprio Douglas, na época com 17 anos de idade), lutaram pela vida no mar aberto, sem água nem comida, a bordo de um simples bote de madeira de 3 metros de comprimento, hoje permanentemente exposto no mesmo museu onde, na próxima semana, o representante da família recordará o calvário que eles viveram até serem resgatados por um barco de pesca japonês, cinco semanas e meia depois.

Um raro caso de final feliz

Histórias do Mar :: Família Robertson - Reprodução - Reprodução
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Na época, o drama dos Robertson foi notícia no mundo inteiro.

Até porque não é sempre que uma história como essa tem um final feliz.

Mas, a dos Robertson, sim.

Todos foram salvos, graças, em boa parte, às sábias decisões que os pais das crianças tomaram, durante aquele longo calvário no mar.

Trocaram a fazenda pelo mar

O escocês Dougal Robertson, patriarca da família, era um ex-marinheiro, que, após ter perdido sua primeira mulher e filho em um ataque japonês ao navio no qual viajavam, na Segunda Guerra Mundial, vivia pacatamente, com sua segunda esposa e quatro filhos pequenos, em uma pequena área rural do interior da Inglaterra, quando decidiu vender tudo o que tinha e voltar para o mar — levando a família junto.

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Com o dinheiro arrecadado, Dougal, na época com 47 anos de idade, comprou um velho veleiro de madeira, de 13 metros de comprimento, o Lucette, construído em 1922, colocou a mulher e os quatro filhos a bordo (Douglas, Anne, Neil e Sandy — os dois últimos, gêmeos, com apenas 12 anos de idade), e, em janeiro de 1971, partiu da Inglaterra, com o objetivo de dar a volta ao mundo navegando — para o seu próprio prazer e para que as crianças aprendessem na "universidade da vida", como gostava de dizer.

Uma das filhas desistiu

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Durante um ano e meio, os Robertson curtiram os prazeres de navegar pelas ilhas do Caribe, embora com pouquíssimos recursos — tanto que, após uma parada nas Bahamas, a filha Anne, então com 17 anos, decidiu abandonar a viagem e voltar a viver em terra firme, após conseguir um emprego.

No lugar dela, embarcou um jovem inglês, chamado Robin Williams, também adolescente, que buscava uma carona até as Ilhas do Pacífico Sul, para onde os Robertson partiriam em seguida.

E assim eles fizeram.

E veio o desastre...

A primeira parte da travessia do maior oceano do mundo, o Pacífico, do Panamá até as Ilhas Galápagos, transcorreu sem nenhum problema — embora numerosa, a família, há muito, já havia se habituado a viver no espaço limitado de um barco.

Mas, no trecho seguinte, veio o desastre.

Quando estavam na parte mais isolada da travessia, a cerca de 400 quilômetros de Galápagos, um grupo de três orcas investiu contra o veleiro dos Robertson, aparentemente sem nenhum motivo, arrancando a quilha do barco e gerando enormes rombos no casco.

Naufrágio instantâneo

A causa do ataque jamais foi sabida.

Talvez as orcas tenham confundido o fundo do barco com a barriga de uma baleia, umas das presas preferidas desse tipo de animal.

O naufrágio foi imediato.

Não deu tempo nem de pedir socorro pelo rádio — só de recolher uma bolsa de emergência, juntar as crianças e colocá-las à salvo no bote e na balsa salva-vidas do veleiro — que se tornariam a "nova casa" dos Robertson pelos próximos longos dias.

Não poderia haver situação mais aflitiva.

Quatro crianças a bordo

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Quando o veleiro dos ingleses sumiu da paisagem, engolido pelas águas do Pacífico, Dougal e a mulher Lyn fizeram um balanço da situação.

Eles estavam a centenas de quilômetros da ilha mais próxima, ninguém sabia do ocorrido, tinham apenas meia dúzia de latas de água e comida da bolsa de emergência, e — pior que tudo — quatro crianças espremidas em um bote e uma balsa inflável, que ameaçava murchar a todo instante.

A balsa murchou

A agonia durou dias, até que a balsa esvaziou de vez e todos tiveram que passar a dividir o acanhado espaço do bote, onde tudo vivia molhado, e uma improvisada vela, suportada por um remo, à título de mastro, tentava dar algum rumo ao avanço errante dos náufragos — para onde ir, se não havia nada por perto, só mar por todos os lados?

Ideia salvadora

Foi quando Dougal teve a ideia que, muito provavelmente, salvou a vida de todos eles: avançar na direção da Linha do Equador, onde, além de haver uma rota marítima mais intensa, o mar sempre costuma ser mais quente e tranquilo, porque os ventos minguam e a temperatura da água aumenta, diminuindo assim o risco de hipotermia, ou morte pelo frio.

Além disso, ele sabia que próximo à Linha do Equador havia uma corrente marítima que avançava na direção da América Central.

Aquela corrente contrária era a única esperança que a família tinha de alcançar terra firme.

Dougal Robertson estimou que, naquelas condições, levariam cerca de 70 dias para chegar lá. Mas era a única chance que tinham.

Busca desesperada por água

Além disso, por conta da maior incidência do sol e temperaturas sempre mais elevadas, Dougal sabia que costumava chover com mais frequência na região da Linha do Equador — e chuva era a única possibilidade que eles tinham de conseguir água para beber, já que o precioso líquido que havia nas latas do kit de sobrevivência durou apenas os primeiros dias.

Para amenizar a sede, os Robertson passaram a mascar pedaços de lona da balsa murcha, a fim de gerar saliva. Mas havia outro inimigo: a fome.

Surge um navio. Mas não pára

No sexto dia de sofrimento, surgiu uma esperança: um navio no horizonte.

Dougal pegou dois dos três foguetes sinalizadores que havia na balsa salva-vidas e os disparou.

Em vão. O navio seguiu em frente, sem vê-los.

O escocês preferiu não gastar o terceiro e último foguete que tinha, porque deduziu que seria inútil, e porque, talvez, precisasse dele depois.

O que, de fato, aconteceria mais tarde.

Sobrevivendo de tartarugas

Naquelas alturas, os Robertson já haviam aprendido a capturar pequenos peixes, que vinham nadar rente ao bote, e sobretudo tartarugas, que acabariam por se tornar o principal alimento da família e responsáveis diretas pela sobrevivência do grupo.

Quando uma tartaruga de pequeno porte subia à superfície para respirar, Dougal se atirava na água e a agarrava, enquanto o restante do grupo tentava trazer o animal para o barco — onde era imediatamente devorado.

A carne do animal que sobrava era deixada exposta ao sol, para secar e não estragar, garantindo assim algum alimento também para os dias subsequentes.

Sangue para beber

Além de saciar a fome, as tartarugas traziam outro benefício para o organismo: seu sangue, rico em nutrientes, amenizava a sede e diminuía o risco de desidratação, especialmente das crianças.

No dia em que capturaram a primeira tartaruga, os Robertson levaram quase uma hora para dar cabo do animal.

Depois, no entanto, desenvolveram uma habilidade excepcional.

Tubarões com as próprias mãos

Ao serem resgatados, eles já haviam capturado uma dúzia de tartarugas, além de pequenos filhotes de tubarão, que Dougal puxava para dentro do barco, com as próprias mãos.

Certa vez, de dentro da barriga de um pequeno tubarão, brotou um peixe inteiro, que foi igualmente dividido em partes iguais entre as crianças.

Em momento algum daquele martírio, pai e mãe deixaram de proteger os filhos. Mesmo quando tudo parecia perdido.

Chupando olhos de peixe

No mar, na medida em que o bote dos ingleses — com a ajuda de um único remo e uma pequena vela adaptada em outro — foi se aproximando da Linha do Equador, as chuvas começaram a surgir. Mas nem sempre com a constância que eles necessitavam.

Para amenizar a sede, eles sugavam, até a última gota, as vértebras e olhos dos pequenos peixes que eventualmente capturavam — além de beber o sangue das tartarugas, que eram avidamente procuradas na superfície.

Mas isso não era o bastante para deixar Dougal e esposa tranquilos quanto à saúde das crianças.

Especialmente quanto ao risco de desidratação, já que a procura por chuvas os levou justamente para a área mais quente da região.

Água pelo ânus

O risco atormentava sobretudo Lyn, que, no passado, havia trabalhado como enfermeira, e sabia bem a gravidade da situação para as crianças.

Ela, então, tratou de achar uma solução.

Um dia, observando uma poça de água suja que se formara no fundo do bote — uma mistura de água de chuva com respingos do mar, restos de peixes e sangue de tartarugas -, Lyn teve uma ideia.

Aquela água fétida e salobra não podia ser bebida.

Mas não haveria maiores consequências se fosse injetada diretamente no intestino, como forma a garantir alguma hidratação ao organismo — procedimento conhecido no meio médico como enema.

Com um pedacinho de metal extraído do bote, Lyn moldou uma espécie de tubinho, através do qual passou a injetar pequenas doses daquela água que parecia imprestável no ânus de cada criança.

O recurso ajudou os pequenos a suportar relativamente bem a severa escassez de líquidos, sob o sol inclemente dos trópicos.

Até que, no 38º dia de martírio, outro barco surgiu no mar. E, com ele, uma nova esperança de salvação.

Finalmente salvos

O barco era o pesqueiro japonês Toka Maru II, que retornava de uma temporada de pesca na América Central.

Ao avistar a embarcação, Dougal pegou o último foguete sinalizador e disparou.

Ficou segurando o petardo incandescente em sua mão, até quase queimar a ponta dos dedos.

Era a última chance que tinha de chamar a atenção.

Mas, desta vez, deu certo.

Ao avistar a mancha vermelha traçada pelo foguete no céu, o barco japonês mudou de direção e veio de encontro aos náufragos.

Eles estavam salvos.

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Ainda sem comidas

Ironicamente, o mesmo povo que havia causado a morte da primeira mulher e primeiro filho de Dougal — razão pela qual ele passara a nutrir sentimentos ruins contra todos os japoneses — tinha, agora, salvado sua segunda família.

Os seis ingleses foram recolhidos, mas não alimentados imediatamente, porque isso, após tantos dias de privações, poderia ser fatal para eles.

Ao embarcar no pesqueiro, Dougal pediu um café quente. Em troca, recebeu um copo com água de coco — era preciso readaptar, aos poucos, aqueles combalidos organismos.

Protegeram o que importava

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Dias depois, a família-náufraga desembarcou no mesmo Panamá de onde haviam partido para aquele trecho da travessia que nunca completaram.

De lá, retornaram à Inglaterra, mesmo não tendo mais onde morar, já que o veleiro afundado era, também, a casa deles.

Mas o mais importante, Lyn e Dougal haviam preservado: a vida das crianças.

Era só isso o que importava.

Virou filme e livros

Com o que aprendeu no purgatório que passou no mar, Dougal escreveu dois livros: "Survive the Savage Sea" ("Sobreviva ao Mar Selvagem" — que também virou filme, tendo o seu próprio filho, Douglas, como roteirista), e "Sea Survival" ("Sobrevivência no Mar"), uma espécie de manual para náufragos, cujos ensinamentos, nove anos depois, ajudariam o americano Steven Callahan a também escapar com vida de um naufrágio, após 76 dias à deriva.

Mais tarde, o próprio filho de Dougal, Douglas, escreveu outro livro sobre o naufrágio, em que narra com detalhes como sobreviveram àquela situação limite.

E é sobre isso que ele, uma vez mais, falará na próxima quarta-feira, quando palestrar no mesmo museu onde se encontra exposto o bote guiado por seu pai, para salvar toda a família — com transmissão ao vivo (mas paga) pela internet, através do site nmmc.co.uk.

Pais morreram. Filhos, não

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Os dois principais homenageados, no entanto, não estarão presentes.

Dougal Robertson morreu em 1991, de câncer, aos 67 anos (depois de, por um tempo, voltar a viver no mar, mas desta vez sozinho), e Lyn, sete anos depois.

Mas os demais sobreviventes, além de Douglas, que fez carreira na Marinha Inglesa, seguem vivos, meio século depois — inclusive o caronista que embarcou naquela dramática viagem.

"Objetivo era se manter vivo"

Seguindo os passos do pai, ainda que em rumos opostos, Neil virou fazendeiro na Inglaterra, e Sandy foi viver em um barco no Mediterrâneo, igualmente com a esposa e quatro filhos.

Antes de morrer, aos que perguntavam a Dougal Robertson como havia sido passar 38 dias com mulher e quatro crianças em um pequeno bote, no meio do oceano, ele apenas respondia:

Foi como deve ser a vida de todos os seres selvagens: o único objetivo é continuar vivo no dia seguinte"

Outro drama pior ainda

Embora especialmente tocante, por envolver quatro crianças, o drama dos Robertson não foi o único do gênero naquela época.

Apenas um ano depois — e na mesma região em que o barco da família Robertson foi atacado por orcas —, outro casal inglês, Maralyn e Maurice Bailey, viveu a mesma situação, quando o veleiro no qual viajavam foi abalroado por uma baleia e também afundou.

Só que, para eles, foi ainda pior.

118 dias no mar

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Maralyn e Maurice passaram inacreditáveis 118 dias à deriva no mar, também em um simples bote, e só sobreviveram graças à engenhosidade do casal, que usou os escassos recursos que tinham para se manterem vivos — clique aqui para conhecer esta outra impressionante história de superação no mar, que, tal qual a saga do Robertson, entrou igualmente para a história.