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Como a colisão de dois navios destruiu uma cidade inteira, um século atrás
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A história da cidade de Halifax, na costa nordeste do Canadá, se divide em antes e depois das primeiras horas da manhã do dia 6 de dezembro de 1917.
Naquela data, 104 anos atrás, uma explosão com intensidade até então inimaginável transformou em uma pilha de escombros incandescentes a capital da província de Nova Escócia, deixando um impressionante saldo de destruição, mortos e feridos — uma das maiores tragédias da história do Canadá.
Era o auge da Primeira Guerra Mundial.
Mas a explosão nada teve a ver diretamente com os combates, que ocorriam apenas na Europa.
O que causou aquela catástrofe foi a simples colisão de dois navios, diante do porto da cidade.
Até hoje, nunca se viu nada igual.
Encontro bombástico
Apesar do habitual rigor do inverno canadense, a manhã daquele 6 de dezembro tinha tempo bom e mar tranquilo, no acesso ao porto de Halifax — então, um dos mais movimentados da América do Norte, porque era dali que partiam muitos navios que levavam suprimentos e armamentos para os combatentes nos campos de batalha, na Europa.
Era o caso de dois navios que, naquela manhã, se avizinhavam ao porto de Halifax: o navio de suprimentos belga Imo e o cargueiro francês Mont-Blanc.
O primeiro partia, vazio, rumo à Nova York, onde seria carregado com alimentos para as tropas que combatiam na Bélgica; o outro, a serviço da Real Marinha Britânica, chegava justamente de Nova York, abarrotado de dinamites e materiais altamente inflamáveis, como o ácido pícrico, que seriam igualmente usados nos combates.
No meio do canal de acesso ao porto de Halifax, os dois navios se encontraram.
O resultado foi - literalmente - bombástico.
Mal-entendido nos apitos
No início do século passado, ainda não havia meios eficientes de comunicação entre embarcações.
As informações eram passadas através de apitos, que - curtos ou longos, solitários ou repetitivos — tentavam avisar as outras embarcações sobre as intenções de cada comandante.
Mas, nem sempre, eram claramente compreendidas pelo outro lado.
Foi o que aconteceu na troca de mensagens entre os capitães do Imo e do Mont-Blanc naquela se tornaria a mais trágica manhã da história do Canadá.
Enquanto um sinalizava que passaria por um lado do canal, o outro alertava que já estava naquela posição.
O mal-entendido — acrescido de uma boa dose de arrogância dos dois comandantes, um não querendo obedecer ao outro — fez com que os dois navios se chocassem e ficassem com seus cascos engatados, no estreito canal.
Como começou a tragédia
Como os dois navios navegavam a baixa velocidade, já que estavam bem diante do porto da cidade, o acidente não teria maiores consequências, não fosse um fatídico detalhe: ao dar ré, a fim de desengatar os cascos, o do Imo gerou fagulhas, que deram início a um incêndio no Mont-Blanc — que logo se tornou incontrolável, dado a belicosidade da sua carga.
Assim que conseguiu se livrar daquela bomba prestes a explodir, a tripulação do Imo tratou de procurar abrigo na margem do canal, enquanto os ocupantes do Mont-Blanc também abandonavam o navio às pressas, em botes, em busca da segurança da mata que havia do lado oposto à cidade.
Eram 8h50 da manhã e começava ali o pior dia da história de Halifax.
Cidade voou pelos ares
Quinze minutos depois, enquanto famílias tomavam café da manhã em suas casas e crianças chegavam à escola, o Mont-Blanc simplesmente se desintegrou por completo, bem diante do porto da cidade, após lançar uma série de tambores com explosivos no ar, feito fogos de artifício — fato que contribuiu para que muitas pessoas se aproximassem da margem, para ver o que estava acontecendo.
Elas não tiveram a menor chance de escapar da morte fulminante.
Tampouco a imensa maioria dos moradores da então pequena cidade.
Halifax voou pelos ares, junto com o navio.
Âncora voou 4 quilômetros
A explosão do Mont-Blanc gerou uma bola de fogo que passou de um quilômetro e meio de altura (até então, bomba alguma havia causado algo parecido), e disparou um furacão de estilhaços incandescentes na direção da cidade — mais tarde, técnicos estimaram que a temperatura no convés do navio no momento da explosão beirou os 5 mil graus centígrados, a mesma da superfície solar.
Era como se milhares de canhões estivessem disparando ao mesmo tempo contra os indefesos moradores de Halifax, que sucumbiram às centenas, instantaneamente.
Tudo o que havia no navio foi arremessado longe. Bem longe.
A haste da âncora do Mont-Blanc foi parar em um parque, a quatro quilômetros de distância do porto, após varar a cidade inteira pelo ar - e ali está até hoje, como um monumento da tragédia.
Explosões em cadeia
A chuva mortal de detritos e a tempestade de fogo que seguiu ao desabamento das casas atingidas pelos pedaços em chamas que voaram do navio, fulminaram Halifax e destruíram tudo o que havia ao redor, em um raio de dois quilômetros.
As poucas construções que resistiram aos estilhaços incandescente sucumbiram, em seguida, ao fogo gerado pelo rompimento das tubulações de gás das casas, em uma apavorante sequência de explosões em cadeia.
Aterrorizados, os sobreviventes corriam pelas ruas devastadas, em estado catatônico.
Um horror.
O que eu vi foi dez vezes pior do que tudo o que testemunhei nas trincheiras da guerra", diria, depois, um oficial do exército canadense, que retornava da Europa no exato dia em que Halifax foi dizimada.
Derretidos até os ossos
O violento deslocamento de ar causado pela explosão do Mont-Blanc destruiu vidraças de casas que estavam há 50 quilômetros de distância, e sua detonação pode ser ouvida a mais de 100.
Nunca se soube o número exato de vítimas — até porque, naquela época, os registros eram precários, e, em muitas famílias, não restou sobrevivente algum para contar quantas pessoas havia na casa.
Mas os números que se tornaram mais aceitos indicaram 1.600 construções destruídas (além de outras 12 mil danificadas), perto de 2 mil mortos, 8 mil feridos e cerca de 300 pessoas desaparecidas para sempre, cujos corpos, muito possivelmente, foram derretidos pelo fogo até os ossos.
A mais letal explosão até então
O número de vítimas superou até o do abominável grande terremoto de San Francisco, ocorrido 11 anos antes.
Foi uma das piores catástrofes da história do Canadá, e, até então, a mais letal explosão produzida pelo homem, antes da bomba atômica.
Após aquele dia, Halifax nunca mais foi a mesma, e esse sentimento persiste até hoje.
Os cemitérios, na impossibilidade de dar conta de tantos cadáveres ao mesmo tempo, a solução foi criar um único monumento a todos os mortos daquele nefasto 6 de dezembro de 1917.
Foram tantas vítimas que elas viraram apenas números de uma calamidade até então inédita.
Acharam que eram os alemães
No dia da explosão, como a grande maioria dos moradores de Halifax não sabia o que havia gerado aquele inferno, a primeira dedução foi que a cidade fora bombardeada pelos alemães, embora a guerra estivesse a milhares de quilômetros de distância dali, do outro lado do oceano.
Por conta disso, a perseguição aos descendentes de alemães em terras canadenses durou meses, até que tudo fosse esclarecido.
Após o fogo, um tsunami
Como se não bastasse todas as desgraças geradas pelos pedaços do navio auto detonado, a explosão do Mont-Blanc provocou uma espécie de "buraco" no mar, que gerou uma sequência de grandes ondas, que inundaram a cidade — um tsunami, como hoje é conhecido esse tipo de fenômeno.
Muitos que não morreram nos desabamentos e incêndios, sucumbiram afogados pelas ondas, que também contribuíram para destruir as poucas casas que o fogo havia poupado.
O purgatório parecia não ter fim.
Mas ainda havia coisa pior por vir.
Mortos também de frio
Na noite da daquele mesmo dia, quando praticamente nenhum sobrevivente tinha onde se abrigar do congelante inverno canadense, a costa da Nova Escócia foi assolada por uma nevasca de proporções igualmente catastróficas, que encheu as ruas com quase meio metro de neve.
E as mortes continuaram. Desta vez, de frio.
Foi o golpe de misericórdia da natureza contra os pobres habitantes de Halifax, que, naquele dia, não tiveram escapatória.
A cidade jamais esqueceu
Nos meses subsequentes, doações do mundo inteiro ajudaram a reerguer a cidade, e um inquérito investigou a atuação dos dois comandantes no caso.
Mas nenhum deles foi diretamente responsabilizado.
Até o fatídico cargueiro Imo, que causara involuntariamente aquela desgraça (e, mesmo assim, escapara milagrosamente da explosão, embora tenha sido erguido inteiro do mar e lançado quase em terra firme, provocando a morte de sete dos seus ocupantes — da tripulação do Mont-Blanc, só um morreu, vítima dos estilhaços), voltou a navegar, com outro nome, a fim de evitar referências diretas à tragédia, até naufragar, quatro anos depois, nas Ilhas Falklands (Malvinas).
Halifax jamais esqueceu aquele tenebroso dia, até hoje sem paralelo na História.
Serviu de referência para a bomba atômica
Mesmo assim, a humanidade não aprendeu a lição.
28 anos depois, bombas atômicas muito piores desabaram sobre Hiroshima e Nagasaki, selando, com mais de 200 mil mortes, o desfecho da Segunda Guerra Mundial.
Na época, o criador do engenho, o físico americano Robert Oppenheimer, disse ter se baseado na explosão do Mont-Blanc, em Halifax, para avaliar o poder do seu invento, já que, até então, nada havia sido tão destruidor.
O legado que a explosão do Mont-Blanc deixou foi ainda pior que a destruição de uma cidade inteira.
Um navio-bomba na Inglaterra
Navios e explosivos sempre foram uma combinação perigosa.
Na Inglaterra, os restos de um velho navio da Segunda Guerra Mundial, o Richard Montgomery, ainda repleto de bombas nos porões, aterroriza até hoje os moradores de Sheerness, cidade do estuário do Rio Tâmisa, que fica bem diante do local onde aconteceu o naufrágio.
Mesmo hoje, 78 anos depois, as autoridades inglesas relutam em remover os explosivos do navio, porque temem que isso, a exemplo do que aconteceu em Halifax, detone uma explosão com consequências imprevisíveis para a cidade — clique aqui para conhecer este caso, que não sai do noticiário dos jornais ingleses, há mais de sete décadas.
A trapalhada argentina
Usar bombas em um navio para explodir uma cidade, só que intencionalmente, foi também um recurso que os militares argentinos tentaram usar contra os ingleses, na Guerra das Malvinas.
Mas fracassaram, vítimas da própria incompetência.
Em abril de 1982, 40 anos atrás, uma atrapalhada equipe de agentes secretos argentinos foram enviados para a região de Gibraltar, na Europa, sede de uma grande base naval inglesa, com a missão de implantar explosivos em um navio militar inglês, no intuito de fazê-lo voar pelos ares, juntamente com a própria base.
Seria um inesperado contragolpe nos ingleses, no seu próprio território, capaz de diminuir a intensidade dos ataques britânicos nas ilhas.
Mas deu tudo errado e a chamada Operação Algeciras, nome da cidade espanhola onde os argentinos ficaram hospedados, disfarçados de turistas, até o dia do ataque, acabou se transformando em um completo fracasso, por uma patética sucessão de erros dos desastrados agentes secretos — clique aqui para conhecer também essa história, que, felizmente, ao contrário do que aconteceu em Halifax, nada teve de trágica.
Ao contrário, foi quase uma comédia
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