Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Acidente ou golpe? Mistérios no 'naufrágio' do cartão-postal de Hong Kong
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Dez dias após um curto comunicado, de poucas linhas, ter informado que, "devido a condições adversas encontradas durante o transporte, no Mar da China", o icônico restaurante flutuante Jumbo Kingdom, um dos cartões-postais da cidade de Hong Kong, havia "tombado no mar" (o que foi interpretado pelo mundo inteiro como sendo um "naufrágio"), o estranho caso do restaurante que "afundou" tem bem mais interrogações do que respostas.
A começar pela mais elementar das dúvidas: capotamento ou naufrágio? O que, afinal, aconteceu com o famoso restaurante flutuante, que, durante quase meio século, foi um dos símbolos de Hong Kong, mas, nos últimos 10 anos, estava mergulhado em pesadas dívidas?
Virou ou afundou?
Bem mais do que um simples detalhe técnico — se tombou ou afundou? — o que, de fato, aconteceu nesse estranho caso (até porque não é todo dia que um, restaurante naufraga...) é crucial para entender esta história e analisar as ações que a empresa proprietária do negócio agora, eventualmente, pretenda tomar.
Caso tenha afundado, praticamente nada poderá ser feito para recuperar o gigantesco flutuante, dada a profundidade no local do acidente — que, felizmente, não gerou vítimas, já que ele estava sendo rebocado sem ninguém a bordo.
Mas, caso tenha apenas tombado no mar e ainda esteja flutuando, sua eventual recuperação se torna bem mais fácil.
Só que isso, talvez, não seja o que os seus proprietários desejam.
E é nesta dúvida que reside a polêmica, que vem intrigando os habitantes de Hong Kong desde o último dia 14 de junho, quando o que quer que tenha acontecido transformou o emblemático restaurante chinês em notícia no mundo inteiro: desastre ou o velho golpe do seguro?
O que vitimou o grandioso restaurante flutuante?
Como começaram as dúvidas
As dúvidas sobre o que teria acontecido no mar naquele dia foram fomentadas pelo próprio lacônico comunicado da empresa dona do restaurante, a Aberdeen Enterprises, no dia seguinte ao "acidente".
Embora tenha usado um termo que designa "capotamento" ("capsized", em inglês, idioma ainda largamente praticado na ex-colonia britânica na China), e não fizesse menção a "naufrágio", outra informação, no próprio comunicado, de que "no local, a profundidade passava dos 1.000 metros", o que "tornava inviável realizar qualquer trabalho de resgate", gerou confusão e levou todo mundo a deduzir que o flutuante havia afundado, já que não faria sentido indicar a profundidade caso ele ainda flutuasse.
Jornais do mundo inteiro noticiaram o peculiar "naufrágio", mas a verdade é que, até agora, não se sabe se isso, literalmente, aconteceu.
Informações nebulosas
Contribuiu — e segue contribuindo — para o mal-entendido generalizado, a precariedade de detalhes fornecidos pela empresa e a habitual nebulosidade das informações que provém dos órgãos oficiais chineses.
O Departamento Marítimo de Hong Kong disse que só ficou sabendo do incidente através da imprensa, e que solicitou aos responsáveis um "relatório sobre o ocorrido", para dar início a uma investigação — embora o caso tenha ocorrido há centenas de quilômetros de distância de Hong Kong, próximo às ilhas Paracel, em águas fora da jurisdição da instituição, o que, inclusive, seria um facilitador, caso o ocorrido tenha sido proposital.
Novo comunicado
Pressionada a fornecer mais detalhes sobre o caso, a empresa dona do restaurante soltou um novo comunicado neste domingo, dizendo que o rebocador que transportava o flutuante "continua na área", para "garantir a segurança da navegação", sem, contudo, dar maiores informações — muito menos esclarecer se o restaurante afundou ou não.
Mas a empresa reafirmou que em seu primeiro comunicado usou a palavra "capsized", em vez de "sink" ("afundar", em inglês), e que só citou a profundidade "porque isso faz parte das formalidades exigidas pelas autoridades" - também sem dar maiores detalhes.
Alimentando ainda mais o mistério, o porta-voz da empresa se negou a dizer claramente se o flutuante havia afundado ou se ainda flutuava, o que parece ser o mais provável.
Ninguém foi verificar
Mas, como até agora ninguém foi até o local averiguar, a dúvida permanece: o emblemático flutuante-restaurante teria apenas tombado e inundado, ou afundado de verdade até as profundezas do Mar da China, o que seria providencial para que seus proprietários se livrassem do custo de resgatá-lo?
Prejuízos milionários
Para fomentar ainda mais as especulações, a empresa dona do restaurante, que estava fechado de 2020, por conta da pandemia, mas vinha acumulando prejuízos há mais de 10 anos (sua dívida já chegava a cerca de 12 milhões de dólares), até hoje não informou para onde estava levando o gigantesco flutuante: apenas que ele "precisava de reparos", que "buscava um interessado em comprá-lo" e que decidiu rebocá-lo (não se sabe para onde...) em plena temporada de tufões no Mar da China (o que justificaria as "condições adversas de navegação", citadas no primeiro comunicado como sendo o motivo para o acidente) "antes que sua licença de funcionamento em Hong Kong vencesse", o que aconteceria nos próximos dias.
Cozinha já havia inundado
A empresa, no entanto, afirmou que a embarcação fora "inspecionada por uma agência especializada", antes de ser rebocada, e que estava apta a fazer a travessia, embora, apenas 15 dias antes, um anexo (também flutuante) do próprio restaurante, onde funcionava a cozinha, tombou na própria baía de Hong Kong, onde o empreendimento ficava ancorado.
Para muitos, longe de ser um incidente, o colapso da cozinha pode ter sido uma maneira premeditada de demonstrar a vulnerabilidade que o flutuante tinha, e uma "preparação" para o grande golpe que viria em seguida: o afundamento intencional de todo o complexo, longe dos olhos de todo mundo.
"O que aconteceu com o Jumbo Kingdom tem nome", reagiu um internauta, ao comentar a notícia sobre o "afundamento" do restaurante: "É o velho ´golpe do seguro`".
Diferente, famoso e enorme
O Jumbo Kingdom não era apenas um restaurante diferente e curioso, por ficar sobre um imenso flutuante.
Era, também, enorme.
Tinha 80 metros de comprimento, cinco andares de altura, mesas e cadeiras para 2 300 clientes, estilo de palácio imperial chinês e até um trono em forma de dragão, para fotos dos turistas.
Inaugurado em 1976 e visitado por praticamente todas as celebridades que passaram pela cidade desde então — de Tom Cruise à Rainha Elizabeth II —, serviu também de cenário para filmes de James Bond, Bruce Lee e, mais recentemente, Steven Soderbergh, que ali rodou Contágio, película sobre a pandemia, que, ironicamente, jogou a pá de cal nas esperanças de sobrevivência financeira do restaurante.
O Jumbo Kingdom era mais que um simples restaurante. Era quase um monumento na cidade.
Daí a frustração dos moradores de Hong Kong com a sua retirada da baía, e — pior ainda — com o desfecho que teve.
Acidente premeditado?
Desde que o fato foi noticiado, muitas suspeitas de "acidente premeditado" pairam sobre o caso.
Mas a empresa dona do restaurante alega que nada receberá pelo acidente, porque o seguro que possuía cobria apenas "incidentes envolvendo terceiros", não o próprio flutuante, o que tornaria inócua qualquer manobra nesse sentido.
Também a empresa dona do rebocador que transportava o flutuante se manifestou (contudo, igualmente sem maiores detalhes), classificando de "ridículas" as suspeitas de fraude — opinião que é compartilhada até por algumas seguradoras.
"Nenhuma empresa do ramo aceitaria fazer seguro de uma barcaça com meio século de uso, que fosse navegar no mar aberto durante a temporada de tufões", disse um experiente corretor de seguro marítimo de Hong Kong.
Mesmo assim, as suspeitas continuam, uma vez que quase todas as dúvidas ainda não foram respondidas.
Transporte arriscado
O reboque de grandes embarcações pelo mar é uma operação sempre delicada, que fica ainda mais crítica quando as condições meteorológicas pioram, e o que está sendo puxado não dispõe de meios próprios de locomoção, em caso de necessidade, como, aparentemente, pode ter sido o caso do flutuante honconguês.
Exemplos disso não faltam.
Na década de 1950, um grande encouraçado da Marinha do Brasil simplesmente sumiu no meio do Atlântico, quando era rebocado rumo à Inglaterra, onde seria desmanchado — razão pela qual não dispunha mais de motores nem nenhum meio de propulsão.
Atingido por um furacão, desapareceu no mar, levando junto oito tripulantes que estavam a bordo, em um incidente que resultou até em julgamento dos comandantes dos dois rebocadores — clique aqui para ler sobre este polêmico e dramático caso, que também expôs falhas gritantes cometidas pela Marinha Brasileira.
Golpes no mar são comuns
Da mesma forma como comboios desse tipo geram riscos, simulações de naufrágios contra empresas seguradoras de embarcações são ainda mais comuns, uma vez que nem sempre é possível determinar o que aconteceu na imensidão vazia do mar.
Desde que os seguros marítimos foram inventados, proprietários inescrupulosos de barcos tentam sabotá-los.
No passado, quando as investigações eram precárias, quase sempre com êxito.
No Brasil, um golpe que deu certo
Um dos casos mais famosos do gênero aconteceu no Brasil, em 1897, quando uma empresa marítima espanhola endividada e um comandante cegamente obediente se uniram para simular o encalhe do navio de passageiros Sarita, no então ermo e deserto litoral do Rio Grande do Sul.
E o fizeram de maneira tão perfeita que nada pode ser comprovado contra eles.
Ao contrário, o comandante farsante, o italiano Cosme Marasciulo, acabou sendo adotado pela cidade, onde se estabeleceu e deu origem a uma grande família, hoje bastante conhecida na região: os Marasciulo.
Mas, para evitar novos golpes do gênero, o local onde o encalhe foi encenado ganhou um farol, que existe até hoje e que, não por acaso, foi batizado com o nome do próprio navio ali propositalmente encalhado — clique aqui para ler também esta outra interessante história.
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