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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Brasileiros desafiam o terrível mar de gelo do Ártico em travessia inédita

Leonardo Papini/Divulgação
Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Colunista do UOL

20/08/2022 04h00

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Neste exato instante, dois veleiros brasileiros estão tentando fazer o que nenhum outro barco de passeio do Brasil jamais fez: atravessar do Oceano Pacífico para o Atlântico pelo topo do mundo, através do labirinto de canais congelados do Ártico, caminho conhecido como Passagem Noroeste — e que poucos navegadores já ousaram enfrentar.

Histórias do Mar, Ártico - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

A dupla e inédita travessia, com cerca de 5 mil quilômetros de extensão, serpenteando blocos flutuantes de gelo (e, não raro, sendo obstruída por eles...), foi, no entanto, uma coincidência, porque os dois veleiros, um do baiano-ucraniano Aleixo Belov, outro do paulista Beto Pandiani e do franco-brasileiro Igor Bely, não estão viajando juntos — apenas seguem, mais ou menos, a mesma rota e com o mesmo destino, a distante Groenlândia, onde pretendem chegar no início do mês que vem.

"Nós tínhamos o mesmo projeto de cruzar a Passagem Noroeste, mas como nossos barcos são bem distintos, não daria para navegarmos juntos", explica Pandiani, cuja jornada pode ser acompanhada em tempo quase real através do site da expedição, batizada de Rota Polar — clique aqui para acompanhá-la.

"Então, decidimos que cada um faria o percurso no seu ritmo e nos encontraríamos pelo caminho, quando isso fosse possível, o que felizmente agora aconteceu pela segunda vez", completa o navegador.

Encontro entre o franco-brasileiro Igor Bely, o paulista Beto Pandiani e o baiano-ucraniano Aleixo Belov - Leonardo Papini/Divulgação - Leonardo Papini/Divulgação
Encontro entre o franco-brasileiro Igor Bely, o paulista Beto Pandiani e o baiano-ucraniano Aleixo Belov
Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Encontro entre os esquimós

O segundo encontro dos primeiros velejadores brasileiros a fazerem esta travessia no Ártico aconteceu nesta quinta-feira, em um remoto povoado de esquimós, no extremo norte do Canadá, e marcou o fim da primeira metade da jornada, que começou para ambos no início do mês passado.

Histórias do Mar, Ártico - Leonardo Papini/Divulgação - Leonardo Papini/Divulgação
Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Foi um reencontro muito agradável, porque, além de ser um navegador admirável, o Belov tem uma tripulação quase toda baiana, que faz festa em qualquer canto. Até no gelo do Ártico!", contou Pandiani, através da Internet.

Mar que congela no inverno

Histórias do Mar :: Ártico - Leonardo Papini/Divulgação - Leonardo Papini/Divulgação
Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Até aqui, a travessia dos dois veleiros brasileiros em um dos mares mais difíceis e desafiadores do planeta tem sido marcada por idas e vindas (porque, não raro, os blocos flutuantes de gelo obrigam os barcos a darem meia-volta), e momentos de tensão e tédio — ora venta demais, ora o vento desaparece por completo, como é típico no verão do Ártico, única época do ano em que é possível tentar esta travessia, já que ele congela por inteiro no inverno.

Por isso, os brasileiros também correm contra o tempo.

Eles têm até o final da primeira quinzena de setembro para concluir a viagem.

Do contrário, seus barcos ficarão presos no mar congelado do inverno do Ártico, onde as temperaturas chegam a 50 graus abaixo de zero.

Histórias do Mar :: Ártico - Alexandre Socci - Alexandre Socci
Imagem: Alexandre Socci

"Temos menos de um mês para chegar do outro lado, e não sabemos exatamente o que virá pela frente", diz Pandiani, que tem sofrido mais que o amigo Belov, porque navega com um barco bem menor e sem nenhum conforto.

Barco movido a pedal

Histórias do Mar :: Ártico - Alexandre Socci - Alexandre Socci
Imagem: Alexandre Socci

O veleiro da dupla Beto Pandiani e Igor Bely é um pequeno catamarã aberto, de apenas sete metros de comprimento e 400 quilos de peso, equipado com dois recursos especiais para enfrentar as peculiaridades dessa travessia, que poucos velejadores (até hoje, nenhum brasileiro) já tiveram a ousadia de fazer.

Histórias do Mar :: Ártico - Alexandre Socci - Alexandre Socci
Imagem: Alexandre Socci

Um deles é um curioso sistema de pedais, semelhante ao usado nos barcos-pedalinho de lagos e lagoas, que permite ao veleiro seguir avançando quando não houver vento, já que o barco dos brasileiros não possui motor.

Histórias do Mar :: Ártico - Alexandre Socci - Alexandre Socci
Imagem: Alexandre Socci

O outro recurso são duas minicabines, em forma de cápsulas (que Pandiani gaiatamente apelidou de "porta-luvas"), nas quais só é possível deitar para dormir — quando as condições de navegação permitem isso...

Casco térmico revestido

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Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Já o veleiro do baiano, mas nascido na Ucrânia e naturalizado brasileiro, Aleixo Belov, é um grande barco de 80 toneladas, com casco de aço de vinte metros de comprimento revestido com uma espessa camada de espuma, para servir de isolante térmico e proteger os ocupantes do frio.

Além disso, tem motor potente e cabine que imita uma casa de verdade, com acomodações para as sete pessoas que leva a bordo - entre elas, uma estudante, uma oceanógrafa e o engenheiro eletrônico Igor Stelli, cuja função é monitorar permanentemente a movimentação dos blocos de gelo sobre o mar na Internet, a fim de determinar por onde o barco tentará passar, para seguir em frente.

Já perdi as contas de quantas vezes tivemos que dar ré e tentar outro caminho. Navegar no Ártico não é nada fácil", diz Belov, com a experiência der quem já deu cinco voltas ao mundo velejando.

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Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Recentemente, ele teve até que passar dez dias com seu barco preso a um grande bloco de gelo à deriva, à espera de uma brecha no mar congelado para seguir adiante, como contou em um vídeo, divulgado esta semana:

Não são aventureiros

Embora possam parecer, Belov, Pandiani e Bely não são exatamente aventureiros, no sentido estrito do termo.

Ao contrário, são navegadores experientes, que sabem bem o que estão fazendo.

Entre outros feitos, Beto Pandiani, de 64 anos — e mais de 40 de mar —, já navegou o continente americano inteiro, de cima a baixo (além de ter ido tanto à Groenlândia quanto à Antártica), sempre com este tipo acanhado de barco, que lembra um Hobbie Cat.

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Imagem: Alexandre Socci

"É como eu gosto de navegar: sentindo o vento no rosto e o mar no corpo", diz.

Já Igor Bely, de 38 anos, nasceu e cresceu dentro de um veleiro, porque seus pais, ambos franceses, passaram a maior parte da vida vivendo em barcos, especialmente na costa do Brasil, onde fizeram longas temporadas, quando ele ainda era criança — daí Igor se considerar tão brasileiro quanto francês.

Maior navegador do Brasil

Aleixo Belov, por sua vez, tem 79 anos e ostenta o título de velejador brasileiro que mais milhas navegou até hoje, com nada menos que cinco voltas ao mundo, três delas sozinho no barco.

Se conseguir finalizar a Passagem Noroeste, o que tudo indica que vá conseguir, Belov acrescentará mais uma façanha ao seu impressionante currículo de maior navegador do Brasil, em distância percorrida.

"Por que não fico em casa?"

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Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Belov, no entanto, confessa que a idade avançada já pesa nas viagens que faz - sobretudo nessa, que tem sido bastante fria, desafiadora e cansativa.

"Não sei por que não fico quieto em casa", brinca baiano-ucraniano, que levou cinco meses velejando de Salvador até o Alasca, onde iniciou a travessia da Passagem Noroeste.

"O pessoal dizia que ia entrar numa fria, mas, até agora, estamos indo em frente, apesar das pedras de gelo no caminho", brinca o quase octogenário velejador, que tem cinco filhos, três netos, um bisneto e uma irrefreável vontade de continuar navegando até o fim dos seus dias.

Uma rota mitológica

A Passagem Noroeste é uma espécie de rota mitológica para navegantes do mundo inteiro: um emaranhado de ilhas e canais acima do Círculo Polar do Ártico, só acessível durante o verão no Hemisfério Norte, quando o mar descongela parcialmente, criando labirintos entre blocos flutuantes de gelo — problema recorrente que os brasileiros vêm enfrentando desde o começo da jornada.

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Imagem: Leonardo Papini/Divulgação

Não há nada no caminho.

Só gelo por todos os lados, o que a torna a Passagem Noroeste uma das áreas mais inóspitas do planeta.

Só descoberta em 1906

A terrível fama da Passagem Noroeste antecede à sua própria descoberta, que, embora os antigos navegantes já desconfiassem que existisse, só ocorreu 116 anos atrás, em 1906, após uma série de tentativas, quase todas com finais trágicos, com barcos e homens trancados no gelo do Ártico.

Palco de terríveis tragédias

A pior de todas as tragédias envolvendo a Passagem Noroeste aconteceu na metade do século 19 e custou a vida todos os 128 tripulantes de dois navios de uma esquadra inglesa, chefiada pelo explorador John Franklin, enviada justamente para descobrir a passagem, que já se julgava existir.

Histórias do Mar :: Ártico - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

A saga enfrentada por Franklin e seus homens em busca da sobrevivência depois que seus barcos ficaram trancados no gelo resultou em um dos episódios mais dramáticos da história da exploração polar, com atos desesperados até de canibalismo — clique aqui para conhecer esta impressionante história, que, espera-se, jamais se repita.

Muito menos com os destemidos velejadores brasileiros, que, pela primeira vez, estão levando a bandeira do Brasil ao trecho mais difícil do famigerado mar gelado do topo do mundo.