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Quem é o paulista que ganha salário mínimo e luta para salvar porta-aviões
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Cinco semanas atrás, o rebocador holandês Alp Centre partiu do Rio de Janeiro levando a reboque aquele que já foi o maior navio militar brasileiro: o ex-porta-aviões São Paulo, que estava parado há cinco anos.
Destino: um estaleiro em Aliaga, na Turquia, onde o imenso navio, de 266 metros de comprimento (cuja reforma, orçada em cerca de R$ 1 bilhão, fora considerada inviável) seria desmontado e transformado em sucata.
Seria... Porque, esta semana, o comboio, que já estava na costa do Marrocos, do outro lado do Atlântico, deu meia volta e começou a retornar ao Brasil - um fato até então inédito na história da navegação brasileira.
Material tóxico a bordo
A decisão foi tomada depois que, pressionado por entidades ambientalistas, o governo da Turquia - bem como a administracao de Gibraltar, enclave ingl^es na Espanha que controla o estreito que da acesso ao Mar Mediterrâneo, por onde o comboio teria obrigatoriamente que passar - decidiu proibir a entrada do porta-avioes brasileiro no pais, por não conseguir saber ao certo quanto de amianto (material tóxico e cancerígeno mundialmente condenado), há a bordo do velho porta-aviões, apesar de um inventário feito no Brasil ter atestado 9,6 toneladas, quantidade largamente contestada por especialistas.
Com isso, o caso se transformou em uma série de protestos na Turquia e expôs o Brasil a mais um vexame mundial, porque, como signatário de convenções mundiais sobre o tema, o país deveria ter retirado todo o amianto do navio antes de vendê-lo.
Ibama voltou atrás
Surpreendido com a decisão turca, o Ibama imediatamente suspendeu a autorização de exportação que havia concedido ao navio, e determinou que ele fosse trazido de volta ao Brasil, sob o risco de "incorrer em tráfico ilegal, conforme disposto no Artigo 9 da Convenção de Basileia e Lei de Crimes Ambientais".
Mas, a principio, a ordem do órgão brasileiro foi ignorada pela empresa que arrematara o navio em leilão, a empresa turca Sok Denizcilikve Tic, e o comboio permaneceu parado na costa marroquina por mais de uma semana, à espera de "instruções" do comprador - que, muito possivelmente, estava tentando reverter a negativa do governo turco, tentando encontrar algum país que aceitasse desmanchar o navio em seu território, ou vendê-lo para outra empresa, como forma de escapar de ter trazer o imenso navio de volta ao Brasil, o que, por fim, esta tendo de fazer agora.
Só nesta quarta-feira, quando, aparentemente, a empresa turca desistiu de encontrar uma saída para a enrascada em que se metera, e que o comboio deu meia volta e começou a retornar ao Brasil, onde deve chegar só no dia 2 de outubro, já que a travessia do Atlântico com um navio desse porte a reboque é lenta, arriscada e, acima de tudo, onerosa.
Estima-se que o custo do transporte do porta-aviões brasileiro a reboque seja de US$ 30 mil (cerca de R$ 170 mil) por dia, o que deve representar uma despesa de quase US$ 1 milhão para trazê-lo de volta ao país.
Desrespeitou ordem judicial
Bem antes disso, outra decisão também havia sido ignorada pelos responsáveis pelo comboio.
Logo apos partir do Rio de Janeiro, uma liminar da Justiça brasileira determinou que o porta-aviões fosse trazido de volta ao porto, "até que o Ministério Público se manifestasse a respeito".
Mas nada aconteceu, e, mais tarde, a própria liminar foi revogada, porque a Marinha do Brasil, que havia vendido o porta-aviões por meio de um conturbado leilão, alegou que o comboio já estava em águas internacionais, quando a ordem foi expedida - o que foi veemente contestado pelos impetrantes do pedido.
Encrenca gigantesca
Desde então, o destino do ex-porta-aviões brasileiro se tornou uma encrenca ambiental e jurídica do tamanho do próprio navio.
E quem está por trás de tudo isso é um humilde morador da periferia de São Paulo, cuja ligação com o gigantesco porta-aviões é apenas afetiva: o ex-soldado da aeronáutica Emerson Miura, de 51 anos de idade.
Decidiu fazer algo
Quatro anos atrás, ao saber que o porta-aviões seria leiloado para virar sucata, Miura, na época casado com a comerciária Simone Keiko, resolveu fazer algo para tentar salvar o navio, que ele conhecera uma única vez, durante uma visita, no Rio de Janeiro.
Criou, então (mas só no papel, porque lhe faltavam recursos para ir além disso), um instituto, que batizou de Foch-São Paulo ("Foch" era o antigo nome do porta aviões São Paulo, antes de ele ser comprado da França, em 2000), com a missão de transformar o navio em um centro cultural e assim preservá-lo.
Uma vitória ele já conseguiu
Mas, recebido com desdém e nenhuma atenção pelas autoridades responsáveis pela embarcação - para quem Miura não passava de um "ingênuo sonhador" -, o paulista, até hoje, não conseguiu fazer decolar o seu projeto transformador.
Mas já conseguiu uma vitória difícil de se imaginar: a de deter o avanço do gigantesco porta-aviões brasileiro rumo ao desmanche na Turquia - uma batata quente de milhões de dólares, que, agora, a empresa que comprou o navio, a Sok Denizcilikve Tic, aparentemente, não sabe como descascar, nem o governo brasileiro consegue explicar como autorizou a venda do navio com substâncias proibidas a bordo.
Só um aliado
"Depois que a Turquia proibiu a entrada do porta-aviõs no país, a única alternativa era mesmo trazer o navio de volta e aqui recomeçar o processo de venda, após solucionadas as pendências legais", explica o advogado especializado em direito internacional marítimo Alex Christo Bahov, que representa a empresa Cormack, ex-parceira da Sok no Brasil, que, no entanto, rompeu com os turcos logo após o leilão, por divergências comerciais.
Alex e também, praticamente, o único aliado de Miura em sua quixotesca cruzada em favor do porta-aviões, embora o paulista diga, humildemente, que não é bem assim.
"Muita gente tem me apoiado e ajudado, até financeiramente, porque venho passando certas dificuldades", diz Miura, que leva uma vida pra lá de modesta, sobretudo para quem decidiu abraçar uma causa dessas proporções.
Pouco mais que um salário mínimo
Emerson Miura mora quase de favor em uma pequena casa de um tio que morreu, em um subdistrito da Penha, na zona leste de São Paulo, não tem carro, anda de ônibus e ganha vida como massoterapeuta autônomo, atividade que lhe rende em torno de R$ 1.500 por mês - pouco mais que um salário mínimo e insuficiente para pagar todas as contas, razão pela qual o site do instituto que ele criou na internet está fora do ar há meses.
"Precisei cortar despesas", explica Miura, que já foi office boy, escriturário e vendedor ambulante de perfumes.
Artesanato para ajudar no orçamento
Para completar o orçamento, quando surge alguma encomenda, faz kirigamis, maquetes e modelagens em papel, técnica que aprendeu durante aos 13 anos em que viveu no Japão, trabalhando como operário de fábrica, após uma breve passagem pela Aeronáutica, onde não ficou mais de um ano, como simples soldado.
Apesar da curtíssima experiência na Aeronáutica, Miura nutre profunda admiração pela entidade e pela vida militar em geral, a ponto de abraçar a causa do maior porta-aviões que o Brasil já teve.
Homenagem à esposa
Mas esse não foi o unico motivo que fez Miura se tornar o mais ferrenho e ativo defensor do porta-aviões brasileiro em vias de ser demolido.
Houve, também, uma razão pessoal e emotiva ainda mais forte: a morte de sua esposa, que compartilhava com ele o mesmo desejo de ver o porta-aviões São Paulo virar uma espécie de museu flutuante.
"Ela morreu de câncer, no ano passado, mas, antes de partir, me disse para seguir em frente e não desistir do projeto. É o que estou fazendo", diz Miura, que sempre chora ao lembrar da esposa.
Maluco? Ele não se importa
"Depois que minha esposa morreu, passei a me dedicar ainda mais a defesa do porta-aviões, porque era isso que ela queria que eu fizesse. Enquanto o navio existir, lutarei por ele, também em memória dela", diz Miura, que não se incomoda com o que pensam dele.
"Já me chamaram de tudo: romântico, sonhador, maluco. Não me importo. Luto por uma causa, que é a conservação de um bem público e a sua transformação em algo educativo, não em sucata", diz o paulista.
Impediu o avanço do comboio
Mesmo após a frustrante partida do comboio do Brasil, no início do mês passado, Miura não desistiu da luta.
Com a valiosa ajuda do advogado Christo Bahov, entrou em contato com entidades ambientalistas na Turquia, revelou a fragilidade do inventário de amianto feito no Brasil, e conclamou os turcos a protestar diante do estaleiro onde o porta-aviões seria desmantelado.
Deu certo: pressionado, o governo turco decidiu barrar a entrada do porta-aviões no país.
"O povo tem força"
"Aprendi que o povo tem força", diz Miura. "E é isso que está mudando essa história".
"Ele é um samurai", diz, com admiração, o advogado Christo Bahov. "Já deram muita risada dele, foi menosprezado, criticado, caluniado, mas sempre seguiu em frente, determinado a tornar o seu projeto realidade. E o plano dele de tornar o navio uma instituição cultural não é tão absurdo assim. Já há empresas privadas interessadas nisso", garante.
Por outro lado, Christo Bahov só vê irregularidades no processo de venda do porta-aviões à empresa turca.
Sobretudo no inventário que foi feito do material tóxico existente no velho porta-aviões.
9 ou 900 toneladas?
"Eles só vistoriaram 12% do navio e concluíram que há 9,6 toneladas de amianto a bordo. Mas como, se o Clemenceau, que era um porta-aviões idêntico ao São Paulo, tinha 900 toneladas quando foi desmanchado?, questiona o advogado, que vai mais longe nos seus questionamentos.
"E os 50 homens que trabalharam dentro do porta-aviões por mais de um ano, no Rio de Janeiro, preparando o navio para a viagem? Alguém está acompanhando a saúde deles, para saber se foram afetados?".
Ameaça de morte
Christo Bahov também levanta suspeitas sobre a própria transação de venda do porta-aviões, feita através de leilão.
"Mesmo como simples sucata, o São Paulo vale muito mais do que os R$ 10,5 milhões que os turcos pagaram. Isso não é nada para um navio que estava assegurado em US$ 100 milhões", revolta-se.
Por essas e outras, Christo Bahov diz já ter sido ameaçado de morte, por um desconhecido, na rua, e, por isso, agora vive em local ignorado.
Já avisei o Miura para tomar cuidado.
Por ora, no entanto, os dois comemoram o feito de não só terem barrado o avanco do porta-aviões rumo ao desmanche, como forçado a volta dele ao Brasil, o que ninguém acreditava que pudesse acontecer.
"É uma oportunidade única de preservar o maior navio que o Brasil já teve", diz Miura, para explicar seu incansável empenho.
O porta-aviões que acabou em uma lagoa
Se o projeto de transformação do navio em um centro cultural flutuante vier a acontecer (tarefa muito mais complexa do que trazer de volta a enorme embarcação, depois de o comboio já ter atravessado o Atlântico), não será a primeira vez que um velho porta-aviões ganha outro destino que não o desmanche.
Ao contrário, muitos deles já viraram museus ou atrações do gênero.
Um dos mais famosos foi o lendário porta-aviões russo Minsk, que atuou fortemente na época da União Soviética, e, ao ser aposentado, foi transformado em parque temático de diversões, após ser comprado por um empresário chinês.
Mas o negócio não foi em frente e, após um tempo, o Minsk foi vendido para outro empresário, que realocou o gigantesco porta-aviões dentro de uma patética lagoa, no interior da China, onde ele repousa ate hoje, à espera de nova serventia - clique aqui para ler esta curiosa história.
História conturbada
Ja o porta-aviões São Paulo teve uma carreira bem mais conturbada na Marinha do Brasil.
Com seguidos problemas mecânicos (entre eles, o trágico rompimento de um duto de vapor, em 2004, que resultou na morte de três tripulantes), nunca conseguiu navegar por muito tempo, sem exigir reparos.
No total, ao longo dos 17 anos que serviu ao país, navegou pouco mais de 200 dias, o que o tornou um incômodo na frota e acelerou seu processo de descomissionamento.
O que fazer com ele?
Quando foi desativado, em 2017, o São Paulo era o mais antigo porta-aviões ainda em operação no mundo.
Em seguida, o problema passou a ser outro: o que fazer com ele?
Foi quando Miura criou o seu instituto e passou a negociar com a Marinha a transformação do porta-aviões em uma espécie de museu, o que logo foi descartado pela entidade.
Desde então, o obstinado Miura vem tentando livrar o grande navio do desmanche. E, para surpresa de todos, esta conseguindo.
Teme um 'acidente'
Ja o advogado Christo Bahov tem outras preocupacoes no momento.
Uma delas e que algum "acidente" possa acontecer com o porta-aviões, durante a sua volta ao Brasil.
"Seria bem conveniente, já que o afundamento do navio seria o menor dos prejuízos, e os donos do navio ainda poderiam pleitear a indenizacao do seguro", especula o advogado, mas com certa propriedade, porque coisas assim já aconteceram no passado, uma vez que o reboque de grandes embarcações embute riscos.
Desapareceu no Atlântico
Foi um acidente desse tipo, por exemplo, que pôs fim a um homônimo encouraçado da Marinha do Brasil, o São Paulo, que desapareceu no meio do Atlântico, em 1947, quando também era rebocado para o desmanche, na Europa.
Durante uma tempestade, o grande navio sumiu de maneira abrupta dos radares dos rebocadores que o puxavam, e afundou sem deixar vestígios, causando a morte dos oitos tripulantes que levava a bordo, cujos corpos, tampouco, jamais foram encontrados - clique aqui para conhecer esta história, que resultou em condenações na Europa, mas nenhuma punição aos brasileiros envolvidos.
"Tomara que o destino do atual São Paulo seja virar museu, em vez de sucata ou naufrágio", torce o obstinado Emerson Miura, que considera que ganhou apenas a primeira batalha, mas ainda não a guerra.
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