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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Réplica de barco histórico chega para recriar invasão de cidade de SC

Projeto Seival Francisco Alfaya
Imagem: Projeto Seival Francisco Alfaya

Colunista do UOL

15/09/2022 04h00

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Em 22 de julho de 1839, um simples barco de madeira, sob o comando do revolucionário italiano radicado no Rio Grande de Sul Giuseppe Garibaldi, um dos membros mais atuantes da Guerra dos Farrapos, invadiu o porto da atual cidade de Laguna, em Santa Catarina, enfrentou a poderosa esquadra do então Império brasileiro e foi decisivo para a implantação da chamada República Juliana, que conseguiu, ainda que por pouco tempo, a separação do restante do país, um dos eventos mais marcantes da história do sul do Brasil.

O embate entre o barco solitário e as tropas imperiais teve disparos de canhões, confrontos corpo a corpo, ataques de cavalaria e mortes, mas terminou com a vitória dos rebeldes, liderados por Garibaldi — além de transformar em heroína também uma brava moradora da cidade, Ana Maria de Jesus Ribeiro, que, mais tarde, se tornaria famosa como Anita Garibaldi, após se casar com o comandante daquele impetuoso barco.

Tudo isso será relembrado, uma vez mais, na semana que vem, entre os dias 23 e 26 de setembro, durante a encenação teatral em praça pública da "Tomada de Laguna", evento que acontece anualmente naquela cidade catarinense, com centenas de atores e figurantes, e caprichada recriação de época.

Réplica fiel

Desta vez, porém, o evento será ainda mais fidedigno ao fato histórico ali ocorrido 183 anos atrás, porque, pela primeira vez, o barco que desencadeou aquele levante, um "lanchão" (como era chamado aquele tipo de embarcação) chamado Seival, será representado no espetáculo por uma réplica fiel da embarcação original - e tão semelhante que veio navegando desde o Rio Grande do Sul, refazendo o mesmo percurso trilhado por Garibaldi e seus revolucionários, antes de invadirem Laguna e libertar a cidade do mando imperialista.

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Obra de um professor

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Imagem: Divulgação

Quem está por trás disso é um dedicado professor da pequena cidade de Camaquã, no interior do Rio Grande do Sul: o gaúcho Antonio Carlos Rodrigues, de 59 anos - que, ao contrário do que se possa imaginar, leciona educação física e não história.

Ele passou cinco anos construindo, muitas vezes com dinheiro do próprio bolso, a réplica do lendário barco usado por Garibaldi.

Barco emblemático

Na terça-feira, na companhia de outros entusiastas que ajudaram a construir o barco, o professor Rodrigues partiu do porto de Rio Grande com destino a Laguna, uma travessia de cerca de 300 quilômetros no mar aberto que durou dois dias - a primeira que o barco recém construído fez fora do ambiente tranquilo dos rios e lagoas por onde navegou até agora.

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Em Laguna, a réplica do barco mais emblemático da Guerra dos Farrapos (ou Revolução Farroupilha, como preferem os gaúchos), irá aguardar até o início do evento, na semana que vem, quando deve se transformar na grande atração da encenação.

Muito além da encenação

Mas não foi a apresentação teatral a razão pela qual o dedicado Rodrigues decidiu construir a réplica do barco de Garibaldi - e na mesma cidade usada pelo revolucionário para erguer a embarcação original, o que torna a sua cópia ainda mais simbólica.

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"A encenação em Laguna é uma simples coincidência", explica o professor. "O objetivo do barco é atuar na educação infantil, como um museu flutuante itinerante sobre a Revolução Farroupilha, além de chamar a atenção das pessoas para a questão da poluição dos rios e lagoas da região sul do Brasil, problema que não existia na época de Garibaldi e Anita Malfati".

"Se Garibaldi estivesse vivo, ele certamente lutaria pelo meio ambiente, porque era um visionário", diz o professor.

Dois problemas práticos

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A reconstituição da viagem de Garibaldi para Laguna com aquele barco só não foi ainda mais fiel à História por dois motivos de ordem prática.

Um deles é que pontes foram erguidas no rio pelo qual o revolucionário adentrou o porto de Laguna, vindo do lado oposto ao do mar, surpreendendo assim os soldados, o que hoje impede a passagem de barcos maiores, como é o caso da réplica do Seival, que tem 15 metros de comprimento.

Já o outro motivo foi ainda mais forte: seria impraticável refazer a parte mais impressionante da jornada de Garibaldi, quando os dois pesados barcos do grupo foram arrastados por terra firme até o mar, a fim de driblar o bloqueio que os soldados do Império faziam na saída da Lagoa dos Patos.

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Durou apenas seis meses

As duas estratégias de Garibaldi deram certo e renderam aos revolucionários a tomada de Laguna, a vitória contra os soldados e a implantação de uma república separatista, que, no entanto, durou apenas seis meses, até ser sufocada pelo revide imperialista.

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"Nos dias de hoje, seria impossível fazer o que Garibaldi fez, quase dois séculos atrás", resume o professor.

O original foi perdido

Já o heroico barco original, o Seival, teve um final bem menos glorioso e se perdeu na história, vítima do abandono e descaso, de um princípio de incêndio e de um encalhe fatal em uma das praias de Laguna, em 1906, quando era usado como simples barcaça de transporte de carga.

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Foi a partir de uma simples foto do barco original feita naquela época, que o professor Rodrigues conseguiu nortear a construção da sua réplica.

R$ 600 mil na réplica

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"Não havia nenhum registro do barco, medidas nem nada. Só aquela fotografia. Então, um modelista naval de Laguna, o Lauro Pereira, me ajudou a traçar as medidas aproximadas e dar forma ao barco. Depois, foi preciso arregaçar as mangas e, na medida que se conseguia algum dinheiro, ir construindo o barco, aos poucos. Demorou, mas ficou pronto", explica o professor, que diz ter gasto perto de R$ 600 mil para construir a réplica do famoso barco.

"Criamos uma entidade para arrecadar fundos, fizemos rifas, tivemos ajuda da Associação Garibaldina de Roma, já que Garibaldi, assim como Anita, foi herói também na Itália, por ter ajudado a unificar o país, mas, mesmo assim, faltou dinheiro e tivemos que recorrer a empréstimos nos bancos, que ainda estamos pagando", diz o obstinado professor.

"Mas isso não quer dizer que o projeto tenha terminado. Na verdade, agora é que ele vai começar de fato, com a função educativa do barco", diz Rodrigues.

Terra de Anita Garibaldi

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A conquista da cidade de Laguna rendeu a Garibaldi, além do respeito ainda maior entre seus correligionários, o grande amor de sua vida: Anita Garibaldi (personagem protagonista da série de sucesso A Casa das Sete Mulheres), dali em diante sua destemida companheira de batalhas - tanto que, ao morrer, na Itália, a catarinense foi enterrada com honras militares.

Hoje, Anita e Garibaldi (ela homenageada com um museu em Laguna, onde, por sinal, repousa um dos mastros do Seival, única peça que restou do barco original) são quase sinônimos da cidade, e o amor dos dois, mostrado durante a própria batalha, é um dos pontos altos da encenação, que terá o ator global Werner Schunneman no papel do carismático revolucionário ítalo-brasileiro.

Só teme a travessia no mar

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"Vai ser um espetáculo, no sentido literal do termo", adianta o professor, que só teme a travessia da sua réplica até lá.

"Estamos ansiosos, mas, ao mesmo tempo, cautelosos, porque o barco foi construído com o mesmo projeto do século 19, quando a segurança da navegação não era a mesma de hoje. Tanto que Garibaldi partiu com dois barcos, mas um deles afundou no caminho", diz o professor, chegou à Laguna nas primeiras horas da madrugada desta quinta-feira, "depois de uma travessia surpreendentemente tranquila"

Acidente marcou a história

O receio do professor era justificado: réplicas de antigos barcos, mesmo com adaptações modernas, continuam sendo projetos fundamentalmente arcaicos - e inspiram cuidados.

Incidentes com esses tipos de barcos não são raros.

Um dos casos recentes mais dramáticos foi o da réplica da lendária fragata inglesa HMS Bounty, vítima do mais famoso motim da História, em 1789, cuja cópia emborcou e afundou na costa da Carolina do Norte, em 2012, matando dois dos seus 16 tripulantes - entre eles, o próprio comandante da embarcação, que, no entanto, foi o principal responsável pelo desastre, porque subestimou o risco que correria se partisse naquele dia (clique aqui para conhecer esta história).

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Imagem: USA Coast Guard

Por essas e outras, o professor Rodrigues não teve pressa em chegar à Laguna, com seu "lanchão", projetado quase 200 anos atrás.

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Imagem: Divulgação

"Mesmo se tivermos que parar, para esperar o mar acalmar, teria dado tempo de chegar para a grande festa da cidade, com uma cópia do barco que fez história. Ali e em todo o sul do país".