Topo

Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

A curiosa ilha deserta do Caribe de que dois países se dizem donos

Nasa
Imagem: Nasa

Colunista do UOL

15/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Assim como 99,999% da população do planeta, você, muito provavelmente, também jamais ouviu falar de uma pequena, inexpressiva e deserta ilha que existe no Mar do Caribe, chamada Navassa.

Mesmo assim, há mais de um século e meio, dois países a disputam.

Um deles é a maior potência do planeta: os Estados Unidos, que se autoproclamaram donos da ilha, tomando como base uma lei que eles mesmos inventaram, no passado.

Já, do outro lado da contenda, está o paupérrimo Haiti, um dos países mais pobres do mundo, que, entanto, tem a seu favor um argumento bem mais convincente: a geografia - porque é nele que fica a tal ilha de que praticamente ninguém já ouviu falar.

FOTO 1 Nasa - Nasa - Nasa
Imagem: Nasa

Estados Unidos e Haiti se dizem donos da ilha Navassa, onde não existe nada e não vive ninguém.

Mas, por quê?

Sob o ponto de vista econômico, a ilha Navassa é tão insignificante quanto o seu próprio tamanho - embora, no passado, já tenha valido alguma coisa: mede pouco menos de três quilômetros de uma ponta à outra, e ocupa uma área pouca coisa maior que 5 km² - pouca coisa maior que o bairro de Copacabana.

Sua localização também não tem nada de especial, mesmo estando no mar azul no Caribe: fica entre a Jamaica e o Haiti, mas tão dentro deste último país que mais parece fazer parte da baía que abriga a capital, Porto Príncipe.

FOTO 2 - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Para os americanos, sua localização só foi considerada estratégica no passado, porque apenas 160 quilômetros de mar a separavam da Base Militar de Guantánamo, em Cuba.

Mas, hoje em dia, isso pouco significa.

FOTO 3 - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Então, por que os Estados Unidos, que ficam a mais de 1 200 quilômetros de distância, seguem alimentando uma pendenga que já dura mais de um século e meio com o Haiti, por uma ilha onde não existe nada, nem mesmo água para beber?

A resposta, atualmente, nem os próprios americanos sabem dizer.

Mas a disputa entre os dois países pela mesma ilha continua.

'Território insular não incorporado'

FOTO 4 USGS - USGS - USGS
Imagem: USGS

Para o governo americano, a insólita ilha Navassa, onde não existem praias, só pedras revestidas por uma vegetação baixa e rala, na qual vivem apenas aves marinhas e alguns lagartos, é, oficialmente, um "território insular não incorporado" - termo que significa que a ilha "pertence", mas "não faz parte" dos Estados Unidos.

Já, para o governo do Haiti, a ilha Navassa é bem mais que isso: é parte do seu próprio território, como consta na Constituição do país, já que ela fica a menos de 50 quilômetros da costa haitiana.

Sem falar no elo histórico que une a ilha aos primórdios da história do Haiti.

Foi descoberta por Colombo

Os haitianos baseiam seu argumento de plena soberania sobre a Ilha Navassa na interpretação que fazem do Tratado de Ryswick, de 1697, no qual a Espanha cedeu à França a então chamada ilha Hispaniola, hoje dividida entre o Haiti e a República Dominicana, que foi a base para a criação e delimitação do território haitiano, quando da independência do país, em 1804.

Nele, constava que todos os territórios espanhóis naquela região do Caribe passariam automaticamente para os franceses.

Como consequência disso, quando da independência do Haiti, tudo o que havia sido entregue pelos espanhóis aos franceses foi automaticamente incorporado ao território do novo país - incluindo as ilhotas ao redor daquela parte de Hispaniola, como a ilha Navassa, que originalmente havia sido descoberta por Cristóvão Colombo, em 1504, durante uma viagem às "Índias Ocidentais", a mando da coroa espanhola.

Invasão em busca de cocô

Para incorporar a ilha ao seu território, o governo do Haiti também se baseou em um antigo princípio de política externa, conhecido como "uti possidetis", que prega que os que ocupam uma área possuem direito legal sobre ela - e os pescadores haitianos sempre frequentaram a ilha Navassa com regularidade.

Só que isso viria a ser solenemente ignorado - e, mais tarde, contestado, situação que persiste até hoje -, quando um certo capitão da marinha americana, chamado Peter Duncan, passou pela ilha Navassa, em 1856 (53 anos depois da independência do Haiti), e, atraído pela quantidade de fezes de aves que cobriam suas rochas, decidiu incorporá-la aos Estados Unidos, evocando para isso um ato jurídico do seu próprio país: a Lei das Ilhas de Guano.

A Western gull and a California Ground Squirrel hang out next to the Pacific ocean on guano covered rocks in Monterey, California, seemingly oblivious to each other. - PhotoviewPlus/Getty Images - PhotoviewPlus/Getty Images
Imagem: PhotoviewPlus/Getty Images

O guano, uma matéria gerada pelo acúmulo de fezes de aves marinhas, era largamente utilizado como fertilizante, e uma lei americana (que, por incrível que pareça, vigora até hoje) permitia que ilhas desertas ricas nesta substância, "que não fossem reclamadas por nenhuma nação", fossem incorporadas pelos Estados Unidos, a despeito do que dizia a geografia ou os livros de história.

Pendenga de 166 anos

Na época, o recém-criado Haiti protestou, alegando que Navassa fazia parte do seu território, mas não adiantou.

Com base na famigerada lei, criada por eles mesmos - e com uma interpretação própria e conveniente do Tratado de Ryswick -, os americanos tomaram posse de Navassa, a fim de explorar o seu guano.

Começava ali, 166 anos atrás, uma disputa política que persiste e tramita nos órgãos internacionais, sem nenhuma solução à vista.

Ninguém pode entrar na ilha

FOTO 5 REPRODUCAO GOOGLE EARTH - Google Earth/Reprodução - Google Earth/Reprodução
Imagem: Google Earth/Reprodução

Navassa foi a última ilha a ser incorporada pelos Estados Unidos com base na Lei das Ilhas de Guano - que, no entanto, segue legalmente ativa.

Ela permite que ilhas inabitadas, não reclamadas e com grandes concentrações de excrementos de aves sejam transformadas em possessões dos Estados Unidos, mas não especifica o status desses territórios após cessar o interesse americano nelas, como, aparentemente, é o caso de Navassa, onde o guano deixou de ser explorado há mais 130 anos.

Mesmo assim, a exemplo de outros casos do gênero, como o Atol de Midway, no Pacífico (tomado pelos Estados Unidos para a exploração do guano, e, depois, usado como base militar na Segunda Guerra Mundial), os americanos acharam uma saída para manter a posse de Navassa até hoje: transformaram a ilha em Refúgio da Vida Silvestre, uma espécie de santuário de aves marinhas, ainda sob a sua tutela, e com visitação proibida. Especialmente de haitianos, que não se cansam de mostrar indignação contra o "roubo" de um naco do seu território.

"Os Estados Unidos não têm nenhum direito, legal nem moral, sobre a ilha Navassa", resume o ex-ministro das Relações Exteriores do Haiti, Fritz Longchamp.

"Ela pertence ao povo haitiano, porque a Lei do Guano não tem jurisdição mundial", argumenta o ex-ministro.

Até americanos são contra

Atualmente, até alguns próprios americanos contestam a legalidade da posse da ilha que sempre foi reivindicada pelo Haiti.

"Não corrigir este erro histórico é uma estupidez", disse, recentemente, ao jornal Miami Herald, o empresário de Nova York Baruch Herzfeld. "Os Estados Unidos roubaram a ilha do Haiti e não a querem devolver".

"Uma lei americana não pode ser imposta a outros países", acrescenta um advogado da Califórnia, especializado em direito internacional.

E um juiz da Flórida completa:

"O fato de o Haiti não ter exercido sua autoridade com veemência sobre a ilha no passado não quer dizer que ele tenha perdido esse direito agora".

Mas o fato é que, a despeito de todos os protestos, a situação de Navassa continua a mesma: uma ilha que dois países se dizem donos dela

Trabalhadores tratados como escravos

Logo após a aplicação da Lei do Guano, Navassa ganhou um assentamento com cerca de 140 trabalhadores negros americanos, que eram tratados quase como escravizados, para extrair as fezes do solo compactado da ilha para uma empresa americana de fertilizantes - o que era feito com uso de dinamite.

FOTO 6 USGS - USGS - USGS
Imagem: USGS

Quando soube disso, o então líder do Haiti, Imperador Faustin-Elie Soulouque, despachou alguns barcos para a ilha, a fim de deter a invasão. Mas os Estados Unidos revidaram e enviaram um navio de guerra, que facilmente dominou a situação.

Os haitianos não tiveram outra opção a não ser recuar, mas seguiram protestando, o que fazem silenciosamente (já que dependem economicamente dos Estados Unidos) até hoje.

Rebelião e mortes

Ao longo dos 33 anos em que a empresa americana atuou na ilha, quase um milhão de toneladas de guano foram extraídas do solo de Navassa.

Até que, em 1889, uma rebelião dos trabalhadores da ilha contra os maus tratos que recebiam, culminou na morte de cinco supervisores (todos brancos), e no fim das operações de extração de guano - até porque os estoques da ilha já haviam sido praticamente dizimados.

Os três rebeldes acusados de matar os supervisores foram levados a julgamento, mas sua defesa, além de alegar maus tratos e legítima defesa, evocou a questão da polêmica posse americana da ilha, e o caso foi parar na Corte Suprema dos Estados Unidos - que, no entanto, não só decretou a pena de morte para os revoltosos (depois transformada em prisão perpétua, pelo então presidente americano Benjamin Harrison), quanto legitimou a posse de Navassa pelo país, para decepção ainda maior dos haitianos.

Quando, porém, isso aconteceu, já havia tão pouco guano a ser extraído da ilha que a empresa americana desistiu de explorá-la.

Mas não o governo americano de manter a posse de Navassa.

Abrigou farol e espionagem

FOTO 7 USGS - USGS - USGS
Imagem: USGS

O passo seguinte foi instalar na ilha um farol e solitários faroleiros, em 1917, para ajudar os navios a caminho do então recém-inaugurado Canal do Panamá, além de usar Navassa como uma espécie de posto avançado de observação dos Estados Unidos tanto na Segunda Guerra Mundial quanto na época da Guerra Fria, já que a base militar de Guantánamo, em Cuba, usada como prisão pelo governo americano, ficava a pouca distância em linha reta da ilha.

Depois disso, como não tinha mais serventia (a não ser servir de base para eventuais operadores de rádio amadores realizarem transmissões piratas, já que sua dúbia soberania favorecia a ilegalidade e a impunidade), a ilha, então novamente deserta, foi transformada no que é atualmente: um "Refúgio da Fauna Silvestre", com visitação proibida, administrado pelo órgão competente americano.

Foi uma forma esperta de manter Navassa sob a tutela dos Estados Unidos, dar uma aparência politicamente correta a uma invasão controversa, e ainda impedir a entrada de intrusos, sobretudo haitianos, que ainda consideram a ilha parte do seu território - só não podem usufruí-la.

Outra ilha ainda mais polêmica

No passado, as descobertas e posses de ilhas desabitadas geraram muitos conflitos, mas ajudaram a traçar os mapas e a geopolítica do planeta.

Contudo, curiosamente, novas "ilhas" surgem até hoje, ainda que de maneira temporária - e quase sempre por conta de fenômenos naturais, como erupções vulcânicas submarinas.

Como estas "ilhas" aparecem e desaparecem em seguida, nem sempre os mapas e as cartas náuticas conseguem refletir a realidade do momento.

Mas, o que dizer de uma ilha que nunca existiu que apareceu até nas imagens aéreas do Google Earth?

Pois este caso aconteceu dez anos atrás, em novembro de 2012, em uma área remota do oceano Pacífico, e virou um quase escândalo, ao pôr em jogo a credibilidade da maior empresa de internet do planeta.

Como uma imagem de satélite podia mostrar algo que não existia?

FOTO 8 REPRODUCAO GOOGLE EARTH - Google Earth/Reprodução - Google Earth/Reprodução
Imagem: Google Earth/Reprodução

Mas havia uma explicação parcialmente razoável, que, na falta de outro argumento mais convincente, passou a ser a mais aceita para a estranha história da "ilha fantasma" - um caso mais que curioso, que pode ser conhecido clicando aqui.