Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
Tragédia de família que desapareceu no mar ainda é mistério, 9 anos depois
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
"Este ano, o Mar da Tasmânia está disparando tempestades feito uma metralhadora. Não há dúvidas de que seremos vítimas de algumas delas", escreveu, em seu caderninho de anotações, uma espécie de diário que levava sempre nas viagens, o capitão americano David Dyche III, quando voava de volta do Brasil, onde trabalhava em turnos de três meses a bordo de navios, prestando serviços para plataformas de petróleo, para a Nova Zelândia, onde iria reencontrar mulher e filho para seguir viagem na longa travessia de volta ao mundo que vinham fazendo, a bordo do barco da família: uma grande e antiga escuna, chamada Niña.
Dyche não sabia. Mas, dias depois, sua previsão viraria premonição. E sua profecia se concretizaria da pior maneira possível.
O que, no entanto, Dyche, um experiente capitão de 58 anos, 25 deles no comando de embarcações, sabia muito bem era que sua partida para aquele trecho da viagem, entre Opua, na Nova Zelândia, e Newcastle, na Austrália, estava atrasada, e que tanto o calendário quanto a meteorologia mostravam claramente que a temporada anual de tormentas no Mar da Tasmânia já havia começado.
Mas aquele atraso fora uma necessidade: o motor do barco havia pifado meses antes, e a jornada, prevista para acontecer em fevereiro de 2013, teve que ser adiada para o final de maio, a fim de esperar pela chegada de peças para o conserto, e, também, pelo fim do novo período de trabalho de Dyche, no Brasil.
Ele também sabia que aquela travessia seria dura e "mexida", como anotou no caderninho. Mas nem de longe imaginaria o que estava por vir.
'Vai ser incrível'
Em Opua, Dyche reencontrou a família - sua esposa, Rosemary, de 60 anos de idade, o filho David, de 17 —, além de quatro amigos, que também fariam parte da tripulação: Evi Nemeth, uma professora universitária americana aposentada de 73 anos, Kyle Jackson, de 27, a jovem Danielle Wright, de 18, filha de um casal de velhos amigos, que queria aproveitar as férias escolares vivendo uma "aventura nos mares", e Matthew Wootton, político e ambientalista inglês, de 35 anos, membro do Partido Verde Britânico, que, na véspera da partida, postou em suas redes sociais outra mensagem que se tornaria quase profética: "Vai ser incrível", escreveu.
Mas foi bem mais apavorante que isso.
Barco tinha 85 anos
A escuna Niña era um antigo e quase lendário barco à vela. Com casco de madeira de mais de 20 metros de comprimento, linhas elegantes e um enorme mastro, havia sido construída 85 anos antes, em 1928, para competir na Copa do Rei, uma regata transoceânica entre os Estados Unidos e a Espanha, competição que venceu com extrema facilidade.
Depois, manteve a fama de ser um grande barco, ao vencer, também naquele ano, na Europa, a mais famosa regata da Inglaterra, a Fastnet, tornando-se a primeiro veleiro americano a levar o cobiçado troféu para a América.
O sucesso nas competições levou a escuna a ser comprada pelo comodoro do então mais famoso iate clube dos Estados Unidos, o de Nova York. Lá, ela ganhou o status de "flagship", ou "principal embarcação do clube" - uma espécie de barco-símbolo da entidade.
Até que, com o passar dos anos, Niña foi sendo vendida de um dono para outro, até cair nas mãos de Dyche, um apaixonado por barcos clássicos. E ele decidiu que iria dar a volta ao mundo com aquela escuna, fazendo cada trecho nos intervalos do trabalho, e levando junto à família e, sempre que desse, também alguns amigos.
Foi o que Dyche fez, naquele 29 de maio de 2013, quando partiu da Nova Zelândia, para mais uma etapa da viagem.
A última da vida daqueles sete ocupantes da escuna Niña.
Viagem começou bem. Mas...
A travessia, de cerca de 1.500 milhas marítimas (mais de 2.700 quilômetros) estava prevista para durar por volta de 10 dias, "dependendo das condições meteorológicas", como alertou Dyche, ao partir do porto de Opua, onde a escuna estava parada há meses, aguardando o tal reparo no motor. Mas começou bem.
A despeito das más previsões do tempo, nos primeiros dias, o grupo avançou sem maiores problemas, e sua localização no mar era passada, de tempos em tempos, para amigos em terra firme, que acompanhavam à distância a jornada da velha escuna - que, por isso mesmo, era um tanto precária em recursos de navegação e comunicação.
Pediam ajuda a um meteorologista
A octogenária Niña tinha apenas um rádio VHF de alcance limitado, um telefone via satélite, um dispositivo manual de pedido de socorro, para situações de emergência, e um rastreador portátil, que também não era automático e precisava ser acionado manualmente, a fim de fornecer a localização do barco.
Diariamente, a tripulante encarregada das comunicações, a professora americana Evi Nemeth, checava a posição do barco no rastreador manual, e, pelo telefone via satélite, pedia instruções ao meteorologista neozelandês Bob McDavitt, também amigo dos Dyche, sobre o melhor rumo a tomar, a fim de driblar as tempestades que rondavam por todos os lados.
Mas, em 3 de junho, seis dias após terem zarpado, quando já estavam a cerca de 600 quilômetros da costa neozelandesa (mas ainda a mais de 2.000 da Australia), não houve como escapar - e eles foram colhidos por uma daquelas tormentas, com rajadas de vento que passavam dos 120 km/h, e ondas com mais de sete metros de altura.
Evi, então, pegou o aparelho satelital e ligou uma vez mais para o meteorologista McDavitt, que os aconselhou a desviar para sul, "até que os ventos diminuíssem um pouco", o que, entanto - advertiu - "poderia levar algum tempo".
"Estejam preparados para momentos difíceis", avisou o meteorologista.
Foi mais uma das premonições sobre o trágico destino que aguardava os tripulantes daquela escuna.
Último contato
Naquela mesma noite, McDavitt recebeu outra ligação de Evi, informando que até as velas de tempestade da escuna, bem menores que as habituais, haviam rasgado por conta das rajadas furiosas do vento, e que eles, agora, "estavam com mobilidade reduzida, só através do motor".
O meteorologista lamentou o fato e pediu que mantivessem contato. Evi respondeu que voltaria a chamar no dia seguinte. Foi a última vez que se teve notícias da escuna Niña e dos seus sete tripulantes.
Todos desapareceram no mar, em algum ponto do tempestuoso Mar da Tasmânia.
E nunca se soube onde, nem por quê?
Onde procurá-los?
O que aconteceu após aquele último telefonema, só mesmo os infelizes ocupantes da escuna Niña saberiam dizer. Mas não sobrou ninguém para esclarecer.
É certo que, seja lá o que tenha ocorrido (inundação do barco, destruição do casco, capotamento...), aconteceu de maneira fulminante. Tão rápido que não deu tempo de pedir socorro, nem de ativar, manualmente, o rastreador e o dispositivo de emergência do barco.
Com isso, mesmo após ter ficado claro para o meteorologista McDavitt que algo muito grave havia ocorrido com o barco dos Dyche (já que eles não voltaram a ligar no dia 4, como disseram que fariam, nem responderam às inúmeras chamadas que ele fez, depois disso), era impossível saber onde exatamente procurar pela escuna - até porque nenhum detrito, resto, equipamento ou vestígio foi encontrado boiando no mar da região, nos dias subsequentes.
Buscas no lugar errado
A situação ficaria ainda mais dramática em seguida, quando McDavitt acionou a Marinha da Nova Zelândia, pedindo buscas na região, e ouviu como resposta um desconcertante "não!".
Alegando que a embarcação do capitão Dyche "possuía recursos para pedir ajuda" (sem levar em conta a precariedade dos equipamentos da quase centenária escuna), e que, "se eles não foram ativados, nem o meteorologista recebera um pedido de socorro naquele último telefonema", era porque "não havia uma situação de emergência", a entidade levou absurdos dez dias para começar a agir.
Só quando o sumiço do barco se tornou inexplicável é que a Marinha neozelandesa decidiu procurar pelos Dyche.
Aparentemente, no lugar errado.
Ignoraram o meteorologista
Em vez de levar em consideração a sugestão dada pelo meteorologista (e, ao que tudo indica, aceita pelo capitão David), de que a escuna rumasse para sul, o serviço neozelandês de resgate no mar optou por centralizar as buscas na região onde a operadora Liv havia informado que o barco estava, quando da última ligação telefônica que fez para McDavitt.
Com isso, passaram a procurar vestígios — ou, na melhor das hipóteses, náufragos sobreviventes — na área onde o barco havia estado, e não para onde poderia ter ido, após o conselho do meteorologista, embora isso fizesse mais sentido.
20 dias depois, desistiram
Só após dias de buscas infrutíferas, os neozelandeses decidiram ampliar a área vasculhada, abrangendo cada vez o Mar da Tasmânia, àquelas alturas já massacrado por tantas outras tormentas, que elas próprias poderiam ter se incumbido de fazer desaparecer de vez qualquer vestígio da escuna que tivesse restado na superfície.
Até que, no dia 5 de julho, mais de 20 dias após o início tardio das buscas, e depois de vasculhar uma área de mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados de mar — uma das maiores operações do gênero na história da Oceania —, as buscas pelos sete ocupantes da escuna Niña foram dadas como encerradas. E a tragédia, oficializada.
Nenhum corpo jamais foi encontrado.
Mensagem misteriosa
Até hoje, porém, um detalhe alimenta a angústia e a descrença dos parentes e amigos das vítimas naquela controversa operação de resgate.
Na véspera do encerramento das buscas, uma enigmática mensagem, enviada pela escuna no início da tarde do dia 4, mas que jamais chegou ao seu destinatário, foi entregue pela empresa Iridium, operadora do telefone via satélite que havia no barco dos Dyche, para o Centro de Controle de Operações Marítimas da Nova Zelândia.
O que ela dizia, nunca foi sabido, pois o órgão jamais divulgou o seu conteúdo, nem mesmo a quem se destinava — embora o mais óbvio fosse o meteorologista McDavitt.
Homenagens até hoje
O mais provável é que a tal mensagem censurada apenas comprovasse que o capitão Dyche acatara o conselho do meteorologista e desviara o rumo da escuna para sul, o que deixaria evidente a falha do órgão, ao realizar as primeiras buscas na área errada — razão pela qual o conteúdo da mensagem jamais foi divulgado.
Até hoje, parentes e amigos mantém uma página no Facebook em homenagem às sete vítimas do desaparecimento da escuna Niña, nove anos atrás, que se transformou em um dos maiores enigmas do quase sempre turbulento Mar da Tasmânia, especialmente durante a sua temporada de tempestades de inverno - como, aliás, previra o capitão David Dyche III, naquela sua premonitória anotação, a caminho da última travessia que faria.
Outro caso bem mais bizarro
Foi naquela mesma região, e também na mesma data (4 de junho, só que 19 anos antes, em 1994), que ocorreu um dos mais bizarros casos da história náutica: a de um casal de velejadores esotéricos, os americanos Darryl e Diviana Wheeler, que, em vez de desviar daquela que foi considerada uma das piores tempestades do século no Mar da Tasmânia, fizeram justamente o contrário disso e avançaram na direção dela, por um motivo ainda mais estapafúrdio: encontrar um disco voador, que os levaria para outra dimensão -- clique aqui para conhecer esta outra história, que apesar de absurda aconteceu de verdade.
E que, ao contrário do caso dos Dyche, não terminou em tragédia.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.