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Como o naufrágio de um barco quase levou o Brasil à guerra com a Inglaterra
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Ainda hoje, os raros visitantes do farol do Albardão, o mais isolado do Brasil, em uma área particularmente erma dos 241 quilômetros de extensão da praia do Cassino, considerada a maior do mundo, entre a cidade gaúcha de Rio Grande e a divisa do Brasil com o Uruguai, podem ver, nas marés mais baixas, um pedaço do costado de um barco soterrado na beira mar.
É o que restou do Prince of Wales, um veleiro mercante inglês de quatro mastros, que ali encalhou e naufragou, 161 anos atrás.
Mas não foram só escombros que restaram daquele grande barco.
Restou, também, uma herança histórica deixada pelo seu naufrágio: a da pior crise diplomática que já houve nas relações entre Brasil e Inglaterra.
E que, por muito pouco, não levou os dois países à guerra, pouco mais de um século e meio atrás.
Hábito abominável
Tudo começou quando o Prince of Wales partiu de Glasgow, na Escócia, com destino a Buenos Aires, levando alguns passageiros e uma carga variada, que ia de peças de louças a sacos de carvão.
Após fazer escalas em alguns portos brasileiros, o grande veleiro-cargueiro foi vítima da nefasta combinação de fortes ventos, intensas correntezas e ausência de referências do extenso litoral gaúcho, e encalhou em um trecho daquela longa praia, na época conhecido como Albardão (mesmo nome que, mais tarde, batizaria o farol ali construído), na madrugada do dia 7 junho de 1861.
Há quem diga que o desastre só teria ocorrido por conta de um abominável hábito de alguns caçadores de naufrágios da época: o de acender tochas de fogo na praia, como se fossem sinalizações de faróis, a fim de confundir as navegações noturnas.
Mas isso jamais foi comprovado.
Um desastre com duas versões
Logo após o encalhe do barco, o vento piorou ainda mais e o casco do Prince of Wales começou a adernar.
Alguns tripulantes conseguiram chegar à praia, por meio de cordas esticadas até a areia, e dali caminharam até a então vila de Rio Grande, distante quase 100 quilômetros, para pedir ajuda.
Porém, outros ocupantes do veleiro (que nunca se soube se produziu ou não vítimas fatais no acidente) permaneceram a bordo, na esperança de que o barco não se desintegrasse por inteiro.
A caminhada de ida e volta até Rio Grande durou dias.
E foi durante este período que ocorreram os fatos que acabaram por deflagrar uma crise diplomática - e quase armada - entre o Brasil (então ainda um Império, sob o comando de D. Pedro II) e a Inglaterra.
Mas, até hoje, o que aconteceu tem duas versões: a inglesa e a brasileira.
"Bárbaros criminosos gaúchos"
Na versão inglesa, ao retornarem ao local do naufrágio, na companhia de policiais de Rio Grande e do cônsul inglês na cidade, os tripulantes do Prince of Wales encontraram boa parte da carga saqueada e dez ocupantes do barco (entre eles dois passageiros, uma mulher e uma menina) mortos, alguns já enterrados na areia da praia — o que, para eles, se tornou um flagrante caso de pirataria cometido por brasileiros.
Segundo deduções do cônsul inglês, aquelas pessoas haviam sido mortas para não denunciarem os autores do saque, que seriam "bárbaros criminosos gaúchos".
Mas havia outra versão para o que havia ocorrido naquela praia.
Três suspeitos fugiram
Na versão de alguns moradores da região, os corpos das vítimas haviam sido encontrados por eles na praia, que apenas fizeram a caridade de enterrá-los — ao mesmo tempo em que, dando o barco como abandonado, se apoderaram de parte da carga, como era hábito na época.
Quando, porém, interrogados oficialmente, nenhum deles quis comentar o fato.
Em seguida, três suspeitos de saquear a carga do barco, fugiram para o lado de lá da fronteira com o Uruguai, o que levou os ingleses a também acusar os policiais brasileiros de negligência.
Começava ali um conflito que se tornaria, também, político.
Queriam indenização
Exames posteriores nos corpos das vítimas indicaram que elas haviam morrido por afogamento, não por atos violentos.
Mas isso não convenceu os ingleses, que relataram o fato, a sua maneira, ao embaixador inglês no Rio de Janeiro, William Dougal Christie - que, por sua vez, formalizou um protesto oficial junto ao Imperador Dom Pedro II, exigindo não só um pedido de desculpas do Brasil, como uma indenização pelo saque do veleiro e pela morte daquelas pessoas.
Era o começo de uma pendenga que duraria mais de quatro anos, e teria desdobramentos inusitados na história do Brasil.
O Brasil recusou
Na verdade, a animosidade entre ingleses e brasileiros vinha de bem antes disso, por conta do comércio ilegal de trabalhadores escravizados, que aqui ainda era largamente praticado.
Diversos navios negreiros a caminho do Brasil haviam sido bloqueados pelos ingleses, gerando fortes tensões nos dois lados.
Naquele cenário, o naufrágio do Prince of Wales foi apenas a gota d'água nas relações já bastante desgastadas entre os dois países.
Mas acabou ganhando proporções inimagináveis depois que o monarca brasileiro se recusou a aceitar as imposições do embaixador inglês — cujo nome acabaria por batizar o caso, que ficou registrado na história como a "Questão Christie".
Intimidação no inquérito
Durante o inquérito que apurou o caso, o embaixador Christie chegou a pedir à Marinha Inglesa que enviasse um navio de guerra ao porto de Rio Grande, para intimidar os brasileiros e pressionar as autoridades gaúchas.
E assim foi feito.
Em março de 1862, a canhoneira inglesa Sheldrake ficou ancorada diante da cidade por alguns dias, como uma forma velada de ameaça.
Outro incidente na mesma época
Para piorar ainda mais as relações entre os dois países, três meses após o episódio do Prince of Wales, três marinheiros ingleses bêbados se envolveram em uma briga com policiais brasileiros no porto do Rio de Janeiro, e foram presos, após causar a morte de um deles.
Imediatamente, o embaixador inglês voltou a agir, exigindo a soltura dos seus conterrâneos, já que, pelas regras do seu país, os únicos tribunais aptos a julgar cidadãos ingleses eram as cortes britânicas.
Mas Dom Pedro II ignorou o argumento estapafúrdio e ofensivo do diplomata e respondeu dizendo que, para garantir sua soberania, o Brasil estaria pronto até para uma guerra contra a Inglaterra, se isso fosse necessário.
A tensão entre os dois países só aumentava.
Relações rompidas
Mas o embaixador Christie contra-atacou rapidamente.
Em dezembro daquele ano, navios ingleses de combate chegaram também ao porto Rio de Janeiro. Lá, eles bloquearam a saída da Baía de Guanabara e aprisionaram cinco navios brasileiros, exigindo o pagamento de uma indenização pelo naufrágio do Prince of Wales - além daquela tal retratação oficial do Imperador brasileiro.
Durante sete dias, a então sede do Império do Brasil ficou sitiada pelos navios ingleses, fato que gerou indignação aos brasileiros e levou Dom Pedro II a inverter os papéis: agora, era ele que exigia um pedido formal de desculpas da Inglaterra por violação do território brasileiro, além de uma indenização pelo tempo que os navios ficaram retidos no porto carioca.
Mas os ingleses não fizeram nem uma coisa nem outra.
Dom Pedro II, então, decidiu romper relações diplomáticas com a Grã-Bretanha, em maio de 1863.
Dom Pedro II voltou atrás
Contudo, logo em seguida, como o Brasil dependia demais de relações comerciais com a Inglaterra, o Imperador brasileiro aceitou que a crise entre os dois países fosse intermediada por um monarca neutro, o Rei Leopoldo I, da Bélgica, a quem coube julgar o caso do naufrágio do Prince of Wales.
Meses depois, no entanto, temendo que o veredito fosse ser ainda pior para o Brasil, Dom Pedro II voltou atrás e decidiu pagar uma indenização pela carga saqueada do barco encalhado no litoral gaúcho, colocando assim panos quentes na crise diplomática.
Não devolveram o dinheiro
O argumento de Dom Pedro II para o justificar o pagamento da indenização foi que o estremecimento das relações entre os dois países tinha a ver com o "desrespeito dos ingleses à soberania brasileira, não com questões financeiras".
No entanto, logo depois, o rei belga acabaria dando razão ao Brasil no episódio do bloqueio do porto carioca.
Foi, então, a vez de Dom Pedro II exigir dos ingleses a devolução do dinheiro, o que nunca foi feito.
Nem isso nem a retratação do governo inglês.
Finalmente, a desculpa inglesa
A crise entre os dois países só terminou dois anos depois, em 1865, por conta da Guerra do Paraguai, quando a Inglaterra, que também estava politicamente envolvida no conflito, concordou finalmente em pedir desculpas ao Imperador brasileiro.
Mesmo assim, jamais abriu mão da sua versão para o caso do Prince of Wales, cujo naufrágio, por muito pouco, não levou o Brasil à guerra contra a maior potência mundial da época - fato que, até hoje, mais de 160 anos depois, ainda alimenta as conversas dos solitários faroleiros do Albardão, em uma das regiões mais ermas do litoral brasileiro, palco de outros tantos naufrágios, que levaram a construção do próprio farol, tempos depois.
Uma dúzia de faróis em um só litoral
O episódio do Prince of Wales não foi o único motivo para o insólito e perigoso litoral gaúcho ganhar a sucessão de faróis que possui atualmente - nada menos que doze, ao longo de pouco mais de 600 quilômetros, sendo que, pelo seu isolamento, cercado por um mar de dunas de areias por todos os lados, o do Albardão é o mais lendário.
Quase todos os faróis do litoral gaúcho foram frutos do acúmulo de naufrágios na região, o que forçou as autoridades marítimas a sinalizar melhor a costa do Rio Grande do Sul, um dos trechos de navegação mais difícil do litoral brasileiro - característica que, no entanto, chegou a ser convenientemente usada, no passado, por pessoas mal intencionadas.
O golpe que deu certo
Um dos casos mais famosos do gênero foi o encalhe (proposital, mas sob a desculpa da dificuldade da navegação na região) do navio espanhol de passageiros Sarita, pouco anos depois do episódio do Prince of Wales e praticamente na mesma região, que, embora tenha sido claramente um golpe, teve um final inesperado e feliz para todas as partes - clique aqui para conhecer esta outra interessante história gerada pelo sempre tenso litoral do Rio Grande do Sul.
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