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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Como os três jovens que viajaram no leme de navio conseguiram chegar vivos?

Foto viralizou ao mostrar imigrantes sentados na pá do leme de um navio após 11 dias de viagem - Salvamento Marítimo de España
Foto viralizou ao mostrar imigrantes sentados na pá do leme de um navio após 11 dias de viagem Imagem: Salvamento Marítimo de España

Colunista do UOL

03/12/2022 04h00

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Esta semana, a imagem de três jovens aboletados sobre o leme de um navio em movimento, em uma desesperada tentativa de emigrar da Nigéria para as Ilhas Canárias, após 11 dias no mar, chocou o mundo e gerou uma só pergunta: como eles sobreviveram a tão longa, cruel e perigosa jornada?

A resposta está em alguns fatores. Mas, sobretudo, um deles: sorte.

Em uma insana travessia desse tipo, expostos aos elementos da natureza no mar (ondas, ventos, umidade, frio etc), as chances de sobrevivência são mínimas, quando não inexistentes, dependendo das condições meteorológicas durante a travessia.

Mesmo assim, os três sobreviveram, embora tenham chegado às Ilhas Canárias bastante debilitados, desidratados, e um deles continue internado.

Mas, como eles conseguiram tal proeza?

Acima do leme

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que os três nigerianos não viajaram propriamente sobre o leme durante toda a viagem, como aparece na foto que rodou o mundo, mas sim no "buraco" que existe acima dele, chamado caixa de leme — um cubículo parcialmente fechado, que abriga o eixo que movimenta o equipamento.

Foi ali, agachados o tempo todo, já que a altura da tal caixa não costuma passar de um metro de meio (menos ainda em navios menores, como era o caso do petroleiro Althini II, no qual eles embarcaram clandestinamente no porto de Lagos), que os três passaram a maior parte da viagem, sobretudo à noite, a fim de tentar descansar um pouco — mas, ainda assim, em uma situação bastante crítica, porque o espaço na caixa de leme é acanhado, insalubre e muito perigoso.

Os três homens foram encontrados na parte de baixo do navio que passou 11 dias em viagem - Salvamento Marítimo de España - Salvamento Marítimo de España
Imagem: Salvamento Marítimo de España

"Caixa d´água de cabeça para baixo"

"A caixa de leme de um navio é como se fosse uma caixa d´água de cabeça para baixo", explica o prático Fabio Fontes, o mais antigo do porto de Santos, que há mais de 40 anos leva e traz navios para o maior porto do país.

"Ela é parcialmente aberta na parte de baixo, para dar passagem ao eixo do leme, que tem, mais ou menos, o diâmetro de um poste, mas hermeticamente fechada na parte superior, formando assim uma espécie de caixa com um buraco no fundo. É usada para o acesso das equipes de manutenção, na hora de checar o funcionamento do leme", explica Fontes.

"Foi ali que os nigerianos se abrigaram. Não em cima do leme, como sugere a foto. Mesmo assim, é uma situação abominável em termos de segurança e conforto", diz o veterano prático, que, apesar da sua experiência de mais de quatro décadas em navios, também ficou impressionado com a imagem dos três jovens sentados sobre o leme de um petroleiro em movimento.

A foto foi tirada por Orlando Ramos Alayón, capitão do Salvamar Nunk, um barco da guarda costeira que os resgatou - Salvamento Marítimo de España - Salvamento Marítimo de España
A foto foi tirada por Orlando Ramos Alayón, capitão do Salvamar Nunk, um barco da guarda costeira que os resgatou
Imagem: Salvamento Marítimo de España

Se caíssem no mar, morreriam

Segundo Fontes, o leme de um navio daquele tipo, embora de proporções gigantescas e peso em torno de 30 toneladas, costuma levar menos de 30 segundos para fazer o movimento completo, de um lado para outro, a fim de dar rumo a embarcação.

Durante a viagem, quando isso acontecia — para eles sem nenhum aviso —, os nigerianos tinham que ser rápidos, e se abrigar na caixa ou segurar firme no leme (algo não muito fácil, já que é um equipamento que não foi feito para ter alguém em cima dele), para não serem lançados na água.

Se isso ocorresse — a queda na água, com o navio em movimento —, seria morte certa, por esgotamento e consequente afogamento.

Caso nenhum deles sobrevivesse, ninguém ficaria sabendo da morte dos três jovens, porque eles viajavam como clandestinos.

Estariam mentindo?

Na sexta-feira, os três jovens nigerianos — com idades entre 23 e 27 anos, mas cujos nomes ainda não foram divulgados — deram seu primeiro depoimento à Polícia das Ilhas Canárias.

Nele, contaram que subiram no leme do navio pouco antes dele partir do porto de Lagos, com a ajuda de um homem em um pequeno barco, que teria se disposto a ajudá-los.

Mas a polícia desconfia que eles possam ter "contratado" a viagem de grupos especializados em fazer imigrantes chegarem à Europa de forma ilegal, porque havia duas questões cruciais para a travessia ser bem-sucedida: o navio teria que seguir da Nigéria para as Ilhas Canárias, território europeu mais próximo da África, para que a viagem não fosse longa demais, e teria que estar com pouca carga, para que a caixa do leme não ficasse submersa, o que acontece quando um navio está carregado até a linha d´água do casco.

"Se entrasse mais carga no porto, ou o navio alterasse a rota, eles morreriam", garante o experiente prático do porto de Santos.

Só mesmo um elevado grau de desespero levaria alguém a embarcar daquele jeito", concluiu o especialista.

Perderam parte da água que tinham

No depoimento, os jovens também contaram que cada um levou uma mochila nas costas com alimentos — basicamente biscoitos —, mas que, ao subirem no leme, uma das mochilas caiu no mar e eles perderam boa parte da água que tinham para a viagem.

Por causa disso, passaram sede, chegaram a beber um pouco de água do mar e estavam bem desidratados ao serem encontrados, já que a água salgada resseca o organismo ainda mais.

Outros tormentos

Além da fome, sede e total desconforto, os três nigerianos também tiveram que conviver com outros tormentos durante o calvário de mais de uma dezena de dias que passaram.

Um deles foi o frio — porque também passaram a maior parte do tempo molhados.

"Embora, com o navio vazio, a caixa do leme seja um local razoavelmente abrigado, porque fica acima da água, o mar respinga o tempo todo e é impossível ficar totalmente seco", explica o prático Fabio Fontes. "E, molhado, o corpo humano perde temperatura rápido", garante.

Ao serem resgatados, os três nigerianos apresentavam, também, além de fraqueza e desidratação, quadros de hipotermia, que é quando o corpo humano passa a perder mais temperatura do que é capaz de gerar, causado pela exposição prolongada ao frio.

Cracas feito navalhas

Outro tormento foram as cracas, seres marinhos que grudam nas superfícies submersas das embarcações e se tornam verdadeiras navalhas.

Nos navios, todas as partes que possuem contato direto com o mar, sobretudo as submersas, como os lemes, acumulam cracas em profusão.

Durante toda a jornada, os três sofreram doloridos cortes e ferimentos, causados pelas cracas no leme.

Ondas poderiam arrastá-los para o mar

Além disso, caixas de leme são assoladas pelo barulho intenso causado pela proximidade com o motor dos navios, e pela vibração permanente do leme, o que tornou impossível dormir direito — além do fato de que nelas não há espaço suficiente para três pessoas, já que costumam medir por volta de 1,50 x 1,50, sem contar a grossura do eixo que a atravessa.

E ainda havia o risco — sempre latente — de alguma onda encobrir totalmente o leme durante a travessia, inundar a caixa e arrastá-los para o mar — o que, só mesmo por muita sorte, não aconteceu com os nigerianos.

Outros já tinham feito isso

Apesar de aterrorizante, não foi a primeira vez que esse tipo de travessia suicida é realizada na cada vez mais movimentada rota migratória entre a África e as Ilhas Canárias, transformadas pelos imigrantes africanos em uma espécie de porta de entrada para a Europa, já que pertencem à Espanha.

Só nos últimos dois anos, outros cinco nigerianos fizeram a mesma coisa, também viajando sobre o leme de dois diferentes navios. E igualmente sobreviveram, o que estimulou o grupo descoberto esta semana a copiá-los.

Poderão ficar na Espanha?

No entanto, sensibilizados com o esforço e sofrimento dos três jovens nigerianos, ONGs de defesa dos direitos humanos agora lutam para que eles ganhem o direito de permanecer legalmente na Espanha, o que, pelo menos em um primeiro momento, está dando certo.

Dois dos três nigerianos, que, pelas leis de imigração espanhola, já deveriam ter sido devolvidos ao navio que os trouxe e deportados das Ilhas Canárias, entraram com um pedido de asilo e, pelo menos por enquanto, permanecem nas ilhas — bem como o terceiro, ainda hospitalizado.

A esperança é que eles recebam autorização da Espanha para permanecer na Europa, objetivo maior grupo ao embarcar naquela desesperada jornada de quase 4.500 quilômetros no mar aberto, sobre o leme de um navio em movimento.

Se isso acontecer, a história dos três valentes migrantes nigerianos terá, por fim, após tanto sofrimento, um final feliz.

Um clandestino que se deu bem

Mas também não será a primeira vez que passageiros clandestinos viajando escondidos a bordo de navios acabam sendo premiados, em vez de punidos.

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu quase um século atrás, em setembro de 1928, e envolveu um menino americano, de 17 anos de idade, chamado Billy Gawronski.

Admirador incondicional do famoso explorador americano Richard Byrd, um dos pioneiros na Antártica, Billy não teve dúvidas: ao saber que o barco do ídolo estava ancorado no porto de sua cidade, ele tentou invadi-lo três vezes — e, em todas, foi descoberto e detido.

Mas, ao saber da obstinada persistência do garoto, Byrd mandou chamá-lo e, após uma longa conversa, foi convencido, pelo próprio Billy, e tê-lo como tripulante do seu barco, então prestes a partir para mais uma expedição à Antártica.

Billy não só embarcou naquela temerária viagem, na função de marinheiro-voluntário, como, anos depois, se tornaria um dos mais famosos capitães americanos de viagens polares — clique aqui para conhecer esta interessante história.

O menino que quis entrar numa fria, sabia muito bem o que queria.

Os três jovens nigerianos que se aboletaram sobre o leme de um navio, também.

Mas sofreram horrores em busca disso.