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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Na areia da praia: avanço do mar ameaça cemitério mais original do Brasil

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

10/12/2022 04h00

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Se você sempre sonhou em viver de frente para o mar, imagine, então, continuar assim mesmo depois de morrer?

Neste aspecto, os habitantes do mais original cemitério do Brasil, o de Pedras Compridas, no distrito de Icarai de Amontada, no litoral do Ceará, não tem do reclamar: não só estão diante do mar, como enterrados na própria areia da praia, a míseros metros das ondas.

Mas é justamente essa total proximidade com a beira-mar que está tirando a tranquilidade do sono eterno dos que ali estão enterrados — porque o mar não para de avançar sobre o velho e peculiar cemitério.

"A maré, às vezes, engole a praia, e passa por cima das sepulturas que estão mais perto da água. Daí, algumas delas são soterradas pela areia trazida pelas ondas e somem pra sempre", diz, um tanto preocupado, um morador da pequena vila de Icarai de Amontada ("Icaraizinho", como é chamada carinhosamente pelos mais íntimos), cujos moradores, desde sempre, se habituaram a enterrar seus mortos naquele cemitério, na areia da praia.

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Imagem: Reprodução

Como tudo começou

O curioso hábito começou quando, em algum momento do início do século passado, talvez 1904 (a data exata ninguém sabe, muito menos detalhes mais confiáveis desta história), uma velha moradora da vila encontrou, na beira da praia, o corpo de um homem com um pedaço de corrente em volta do pescoço e a cabeça enfiada dentro de um saco, ou a corrente lacrando o tal saco — a versão varia de acordo com quem conta a história...

Sensibilizada, ela, então, teria decidido enterrar aquele misterioso corpo — que ficaria conhecido como o "homem do saco" — ali mesmo, na praia. E, mais tarde, contou o fato para os vizinhos.

Tempos depois, outro morador da vila, disse ter sonhado com o tal "homem do saco" (ou tido uma "visão", tampouco se sabe), e, nele, o misterioso defunto teria dito que se chamava Serafim, e que queria ser chamado assim.

O desejo foi atendido, mas, por conta da precária instrução dos humildes moradores da vila, grafado de maneira errada ("Sarafim", em vez de "Serafim"), em uma improvisada cruz fincada no local onde o misterioso homem (que logo virou "santo", porque ninguém sabia quem ele era, de onde veio e por que morreu daquele jeito) foi enterrado.

E logo começaram os "milagres" de "São Sarafim", como trataram de acreditar os antigos moradores da vila, mesmo sem saber dizer quais teriam sido eles.

A notícia se espalhou feito areia ao vento e novos defuntos foram chegando, para serem vizinhos do "milagreiro" "homem do saco" — e, também — por que não? —, pela localização mais que privilegiada do improvisado cemitério.

"Lá, até morto vive bem", deduziam os moradores da vila.

Um cadáver em cima do outro

Como outro hábito da época era enterrar os parentes próximos uns dos outros, o cemitério foi crescendo rapidamente, e novos túmulos foram surgindo.

Às vezes, um em cima do outro, porque, com o vento constante da beira-mar e as areias em permanente movimento, as sepulturas iam sendo soterradas e os corpos involuntariamente empilhados. E segue assim até hoje.

"Todo mundo aqui tem algum parente enterrado lá", garante Josiberto Oliveira, morador de Icaraí de Amontada.

"É raro o mês que não tem, pelo menos, um enterro no cemitério da praia", garante.

Clandestino, mas preferido

Atualmente, o cemitério praiano não é o único da vila — mas continua sendo o preferido dos moradores.

Ele nunca foi regulamentado, segue sendo, tecnicamente, um cemitério clandestino, e a prefeitura de Amontada, a quem pertence o distrito de Icaraí, a cerca de 200 quilômetros de Fortaleza, não sabe dizer quantas pessoas ali foram enterradas, muito menos quem eram elas.

"Foram uns privilegiados", brinca outro morador da cidade.

"Imagine passar a eternidade na praia, de frente pro mar".

Cemitério na praia - FOTO 3 Google Earth - Google Earth - Google Earth
Imagem: Google Earth

Virou ponto turístico

Por essas e outras, o curioso cemitério de Pedras Compridas (também chamado pelos moradores de "Cemitério de São Sarafim", em homenagem ao seu famoso fundador) virou ponto turístico e parada obrigatória dos bugies que levam turistas para passear nos Lençóis Cearenses, como são chamadas as mesmas dunas que tentam engolir as sepulturas.
Algumas tem até lápides e estrutura de tijolos, o que dá ares ainda mais mórbidos àquela insólita paisagem: uma praia com túmulos (em vez de guarda-sóis...) à vista. E sem sequer muros.

É, no mínimo, esquisito.

Defunto morrendo afogado

Mas, outro problema, além da teimosia da areia, vive atormentando o descanso eterno dos habitantes do peculiar cemitério cearense: a invasão do mar.
Vire e mexe, a maré sobe além do que deveria, inunda a área onde ficam os túmulos e submerge algumas sepulturas.

"Isso deve ser coisa desse tal aquecimento global", arrisca um velho morador da vila. "Antigamente, não acontecia tanto assim".

"Agora, tem defunto morrendo, também, afogado", brinca.

A cruz que muda de lugar

Para tentar conter o avanço do mar sobre o improvisado (mas já mais que perene) cemitério, a prefeitura de Amontada chegou a colocar sacos de areia em volta dos túmulos, mas não adiantou: as ondas passaram por cima deles e invadiram as sepulturas do mesmo jeito.

Uma das primeiras vítimas foi o túmulo do próprio São Sarafim, que ficava bem próximo da beira-mar.

Mas os moradores acharam uma solução original para manter "viva", digamos assim, a homenagem ao padroeiro do cemitério: sempre que a maré sobe demais, eles mudam a cruz de lugar e a fincam em outra sepultura.

Cemitério na praia - FOTO 2 Reproducao TV Jangadeiro - TV Jangadeiro/Reprodução - TV Jangadeiro/Reprodução
Imagem: TV Jangadeiro/Reprodução

Com isso, alimentam a crença local de que a única sepultura que nem a areia nem o mar ousam engolir é a de "São Sarafim" — o misterioso cadáver que virou santo em Icaraí de Amontada, e deu origem ao mais original cemitério do país.

Caixões boiando no mar

Apesar de antagônicos por princípio, mares e cemitérios sempre tiveram alguma proximidade -- e não apenas porque muitas pessoas morrem no mar e nele são sepultadas.
No passado, pelo menos um caso gerou um fato tão bizarro quanto improvável.

No final do século 19, uma violenta tormenta fez o mar desbarrancar um despenhadeiro de uma vila na costa da Irlanda, no topo do qual havia um cemitério.

Com o desmoronamento, quase todas as sepulturas deslizaram e foram arrastadas para o mar.

Na manhã seguinte, um nefasto cenário horrorizou os moradores da vila: centenas de caixões boiavam na praia, muitos deles expondo as ossadas de seus antepassados.

O naufrágio dos cadáveres

Em outro caso, igualmente funesto, um navio que havia sido contratado para transladar os corpos de centenas de operários chineses mortos ao longo dos anos em que trabalharam em minas da Nova Zelândia afundou na costa daquele país, em 1902, gerando um constrangimento e uma pendenga que se arrasta até hoje na justiça, envolvendo descendentes das vítimas e um cineasta que encontrou o naufrágio, anos atrás — clique aqui para conhecer esta história, que passou a ser chamada de "O navio dos caixões".

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Imagem: Wikipedia


Enquanto isso, no cemitério praiano de Icaraí de Amontada, a tranquilidade eterna ainda reina entre os seus habitantes, apesar de um ou outro inesperado banho de mar.