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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Risco de naufrágio: Marinha manda porta-aviões fantasma se afastar da costa

Antônio Gaudério/Folhapress
Imagem: Antônio Gaudério/Folhapress

Colunista do UOL

20/01/2023 12h45

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O ex-porta-aviões São Paulo, que há mais de três meses vinha sendo rebocado, pra lá e pra cá, diante do porto de Suape, em Pernambuco, sem poder atracar, por conta de uma decisão da Justiça pernambucana, já que o navio contém uma quantidade não sabida de amianto e materiais tóxicos a bordo, partiu ontem rumo a águas mais profundas — e, possivelmente, já fora dos limites do mar territorial brasileiro —, escoltado por dois navios da Marinha do Brasil.

A decisão, que surpreendeu a todos os envolvidos (inclusive os proprietários do navio, a empresa turca Sok Denizcilikve Tic, que, no entanto, já havia anunciado sua renúncia ao casco, na semana passada), foi tomada pela própria Marinha, por "questões de segurança", como informou através de nota, na manhã de hoje.

O que diz a nota da Marinha

"A fim de garantir a segurança do tráfego aquaviário e a prevenção da poluição ambiental, a Marinha do Brasil realizou inspeção pericial no casco do ex-NAe São Paulo, na qual foi constatada uma severa degradação das condições de flutuabilidade e estabilidade".

"Como o casco não possui mais cobertura de seguro, tampouco contrato para atracação e reparo, ambos de responsabilidade da empresa Sök, e como também houve interrupção de pagamento à empresa contratada para realizar o reboque, desde o mês de novembro do ano passado, a AMB determinou maior afastamento do comboio (rebocador conectado ao casco) da costa, para região com maior profundidade, com o propósito de garantir a segurança da navegação e a prevenção da poluição ambiental na costa brasileira e seus portos".

"Dadas as condições em que o casco se encontra, não será autorizada a aproximação do comboio de águas interiores ou terminais portuários, em face do elevado risco que representa, com possibilidade de encalhe ou afundamento".

ex-porta-aviões São Paulo - Poder Naval - Poder Naval
Imagem: Poder Naval

Uma novela-pastelão

Com isso, a novela-pastelão em que se transformou a venda do ex-porta-aviões São Paulo para a empresa turca que iria desmanchá-lo e transformá-lo em sucata, em um estaleiro na Turquia, ganhou um novo e inesperado capítulo (leia o passo a passo deste interminável caso ao final desta matéria).

Na semana passada, a empresa que comprou o navio já havia decidido, unilateralmente, "renunciar à compra do casco e o devolver ao seu antigo proprietário", ou seja, a própria Marinha do Brasil, que, no entanto, ignorou a informação e apenas reafirmou que o ex-porta-aviões "fora vendido legalmente, e o que o problema sobre o que fazer com ele era de quem o comprou". E ponto. Aliás, um problemão do tamanho do próprio ex-porta-aviões.

Mas, com a decisão de ontem, o caso ficou ainda mais complicado.

Agora, a grande pergunta é: o que vai acontecer com o ex-porta-aviões brasileiro?

"Situação surreal"

"É uma situação surreal", diz o advogado Zilan Costa e Silva, que defende a empresa turca. "Meu cliente não podia levar embora o navio que comprou, nem deixavam que ele o parasse em algum porto brasileiro, para fazer o que precisava ser feito. E não havia mais recursos financeiros para manter o custo desta operação. O único jeito foi desistir da compra e devolver o navio à Marinha, que, agora, coloca toda a culpa no meu cliente".

O que poderia acontecer

Até a decisão de ontem, de levar o velho navio para bem longe da costa brasileira, antes que o pior aconteça, havia, a rigor, duas possibilidades: a empresa que comprou o casco o revender, na situação em que estava, para outra empresa que se encarregasse de conseguir as autorizações necessárias para atracá-lo em algum porto, ou a Marinha aceitar receber de volta o velho porta-aviões e fazer um novo leilão.

Pela medida tomada ontem, a opção, por enquanto, não parece ser nem uma coisa nem outra: e sim deixar que o destino se encarregue de resolver o problema.

 Porta-aviões São Paulo  - Reprodução/Site Forças de Defesa - Reprodução/Site Forças de Defesa
Imagem: Reprodução/Site Forças de Defesa

Caso inédito

O caso, que já era inédito no Brasil, embora já tivesse ocorrido com um irmão gêmeo do ex-porta-aviões brasileiro no passado, o francês Clemencau (que, também por conta da presença de grandes quantidades de amianto a bordo, passou cinco anos zanzando de porto em porto, até que, finalmente, um deles aceitou recebê-lo para desmanche), agora tem tudo para se tornar, também, um naufrágio mais que anunciado.

E com consequências imprevisíveis ao meio ambiente oceânico, dadas as proporções do navio, que mede 266 metros de comprimento e que contém uma quantidade não sabida de material tóxico a bordo.

Outro "São Paulo" afundou no passado

Com a decisão de ontem, fica também claro que o risco de naufrágio do ex-porta-aviões é real.

Se isso vier a acontecer, será a segunda vez que um navio militar brasileiro - e batizado com o mesmo nome: "São Paulo" — sucumbiria nas águas do Atlântico.

O primeiro foi o encouraçado São Paulo, que afundou no oceano, em 1951, quando também era rebocado rumo ao desmanche, na Europa — clique aqui para ler esta história, que resultou até na morte de oito pessoas.

O que pode agora acontecer?

Aparentemente, qualquer que seja o futuro do ex-porta-aviões brasileiro, ele passa, de alguma forma, pela Justiça brasileira - seja em permitir que o navio atraque em algum porto para fazer os reparos e remoções necessárias, a fim de seguir viagem rumo ao desmanche (a despeito dos prováveis protestos dos órgãos ambientalistas, como aconteceu em Pernambuco), seja reativando a liminar que foi expedida pela Justiça do Rio de Janeiro, em agosto do ano passado, quando da partida do comboio do Brasil, que determinou que ele retornasse ao porto da cidade, para "averiguações" — o que não foi cumprido pelos compradores do navio.

Com a reativação daquela liminar - que foi suspensa quando se tornou inútil, pois o comboio já havia saído dos limites do mar territorial brasileiro -, o ex-porta-aviões poderia, por ordem da Justiça, atracar no porto carioca, o que, no entanto, não impediria protestos ambientalistas. E, talvez, até da própria Marinha, já que caberia a ela receber provisoriamente de volta o grande navio em seu Arsenal de Guerra, onde ele ficaria guardado, até que uma solução final fosse encontrada.

Como se vê, a novela do ex-porta-aviões brasileiro transformado em navio fantasma está ainda longe de um ter um final.

Que dirá feliz, como todas as novelas costumam ter.

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Poder Naval - Poder Naval
Imagem: Poder Naval

Para entender o caso

  • Anteriormente chamado Foch, o ex-porta-aviões São Paulo foi comprado, usado, da França, em 2000, para substituir o lendário Minas Gerais, primeiro navio-aeródromo que o Brasil teve. Mas sua vida útil na corporação foi tão curta quanto problemática.
  • Em 2017, após uma série de problemas - e de navegar apenas pouco mais de 200 dias, em 17 anos de atividade - foi desativado, porque sua reforma fora orçada em mais de R$ 1 bilhão. Em seguida, seu casco foi colocado à venda, para ser transformado em sucata, através de leilão.
  • Por US$ 10,5 milhões (valor bem abaixo do que valia, segundo especialistas), a empresa turca Sok Denizcilikve Tic arrematou o casco e deu início aos preparativos para levá-lo para desmanche, em um estaleiro na Turquia.
  • Durante o processo de venda, um pequeno grupo de aficionados pelo porta-aviões criou um instituto para tentar preservar o navio e impedir o seu desmanche. Mas, sem recursos, nada conseguiram.
  • Concretizada a venda, a empresa compradora encomendou um inventário (obrigatório) do material que havia a bordo do velho porta-aviões. Mas só vistoriou 12% do navio, e informou 9,6 toneladas de amianto - 80 vezes menos do que havia em um porta-aviões idêntico ao São Paulo, quando ele foi desmanchado. Mesmo assim, o documento foi aceito pelas autoridades brasileiras e o Ibama expediu autorização de exportação do casco.
  • No dia 4 de agosto do ano passado, um rebocador holandês, contratado pelo comprador do casco ao custo diário de cerca de US$ 40 000, partiu do Rio de Janeiro levando o ex-porta-aviões para a lenta travessia do Atlântico, até a Turquia.
  • No mesmo dia, uma liminar expedida pela Justiça do Rio de Janeiro, a pedido de um grupo de opositores à venda do porta-aviões naquelas condições (valor questionável, falta de vistoria ambiental completa, desejo de transformá-lo em museu, etc), ordenou que o casco fosse trazido de volta ao porto, "para verificações". Mas o comboio ignorou a ordem judicial e seguiu em frente.
  • Acionada, a Marinha do Brasil nada fez para deter o comboio. E, quando se manifestou, foi para informar que ele "já havia saído do mar territorial brasileiro", o que poderia ter sido evitado. Sem alçada em águas internacionais, a Justiça brasileira cancelou a liminar.
  • Enquanto o comboio cruzava o Atlântico, o mesmo grupo que tentou impedir que o navio partisse, acionou os países por onde ele passaria, informando sobre a quantidade "não sabida" de amianto - material cujo transporte é proibido - que havia a bordo do velho casco.
  • Pressionado por ambientalistas, a Turquia proibiu a entrada do comboio no país, quando ele já havia chegado do outro lado do Atlântico, um mês depois. Em seguida, o governo Gibraltar, por onde ele passaria, fez o mesmo. Começava ali a segunda parte do festival de absurdos que se transformou a venda do ex-porta-aviões brasileiro.
  • Também pressionado, o Ibama voltou atrás e suspendeu a autorização de exportação que havia dado. Sem alternativa, o comboio teve que retornar ao Brasil - um fato inédito na história da navegação brasileira. Mas levou dias para acatar a ordem, desafiando as autoridades.
  • Um mês depois (após uma epopeia de 14 000 km sendo puxado no mar), o casco do porta-aviões retornou ao Rio de Janeiro. Mas nem chegou a atracar. Por ordem da Marinha, foi mandado para o porto de Suape, em Pernambuco, a mais de 1 500 km de distância, para fazer vistorias previstas na lei, para embarcações que passaram muito tempo no mar.
  • 15 dias depois, no início de outubro do ano passado, o comboio chegou a Suape, mas também não pode parar no porto, nem para fazer a vistoria, nem para retirar o amianto, única condição para ser aceito na Turquia. Atendendo a um pedido da Secretaria do Meio Ambiente do estado, a Justiça de Pernambuco proibiu a atracação, por temer a quantidade de material tóxico existente a bordo.
  • Na chegada, o comboio recebeu ordens de ficar a cerca de 25 km da costa, navegando em círculos, já que o ex-porta-aviões não possui mais âncoras. E ali ficou até ontem, mais de três meses depois - e mais de cinco após ter começado sua saga, ao partir, rebocado, do Rio de Janeiro, em 4 de agosto do ano passado.
  • Na semana passada, alegando que a parada do navio é responsabilidade das autoridades brasileiras, e prejuízos já acumulados de US$ 10 milhões (mesmo valor que pagou pelo porta-aviões), a empresa turca anunciou a "renúncia ao casco", devolvendo-o a Marinha do Brasil. Que, no entanto, ignorou a decisão unilateral da empresa. "A venda foi feita", disse a entidade.
  • Ontem, a Marinha do Brasil ordenou que o comboio fosse deslocado para bem longe da costa brasileira, por "risco de dano ambiental e comprometimento da navegação" no local onde estava.

O que vai acontecer agora, ninguém sabe.