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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Marinha volta atrás e assume controle do porta-aviões fantasma em alto-mar

Antônio Gaudério/Folhapress
Imagem: Antônio Gaudério/Folhapress

Colunista de Nossa

21/01/2023 11h46

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Horas depois de emitir um comunicado, no dia de ontem, informando que estava escoltando para águas mais profundas e seguras o comboio formado pelo rebocador holandês Alp Guard e o ex-porta-aviões brasileiro São Paulo, que jazia há mais de três meses navegando em círculos diante do porto de Suape, em Pernambuco, à espera de uma autorização de atracação sempre negada, a Marinha do Brasil emitiu outro comunicado, alterando, uma vez mais, o caso do malfadado porta-aviões, já apelidado de "navio-fantasma" — e que, com tantas idas e vindas, já virou uma autentica novela.

O que diz a Marinha

"A Marinha do Brasil, por meio da Autoridade Marítima Brasileira (AMB), informa que assumiu as operações que envolvem o casco do ex-navio aeródromo São Paulo, visando preservar a segurança da navegação, danos a terceiros e ao meio ambiente, com base na Lei nº 7.542/86, após a empresa Sök Denizcilik Tic Sti não ter efetivado as providências anteriormente determinadas", informou a nova nota, emitida na noite de ontem.

E a nota prossegue:

"Como parte desse processo, o Navio de Apoio Oceânico "Purus" substituiu o rebocador Alp Guard, da empresa ALP (contratada pela proprietária do casco para a manutenção do reboque), que apresentou restrições logísticas para a manutenção do reboque do casco".

"A operação ocorreu a 170 milhas náuticas da costa brasileira (cerca de 315km), área marítima considerada segura, dadas as atuais condições de severa degradação em que o casco se encontra. Cabe ressaltar que a Sök não deixou de ter responsabilidade pelo bem".

"Por fim, a AMB não autorizará a aproximação do casco de águas interiores ou terminais portuários brasileiros, em face do elevado risco que representa, com possibilidade de encalhe, afundamento ou interdição do canal de acesso a porto nacional, com prejuízos de ordem logística, operacional e econômica ao Estado brasileiro".

ex-porta-aviões São Paulo - Poder Naval - Poder Naval
Imagem: Poder Naval

Batata quente nas mãos

Com a decisão de assumir a operação de reboque do ex-porta-aviões, liberando da função o rebocador que havia sido contratado pela empresa que comprara o navio (que, segundo a Marinha, não vinha pagando pelo serviço desde novembro, motivo pelo qual a dona do rebocador desistir), a Marinha do Brasil passou a ficar com a batata quente nas mãos, sobre o que fazer com o ex-porta-aviões — que ela mesmo afirma na nota, que, devido ao "elevado risco que representa", não poderá mais se aproximar da costa nem atracar em nenhum porto brasileiro, embora isso seja necessário para evitar um possível naufrágio.

E agora? O que vai acontecer com o ex-porta-aviões brasileiro, que há quase seis meses partiu para do Brasil para ser desmanchado na Turquia, mas voltou e virou uma encrenca do tamanho de um porta-aviões?

 Porta-aviões São Paulo  - Reprodução/Site Forças de Defesa - Reprodução/Site Forças de Defesa
Imagem: Reprodução/Site Forças de Defesa

Brasil será processado?

Embora a nota reafirme que a empresa turca que comprou o navio, a Sok Denizcilikve Tic, através de leilão promovido pela própria Marinha, "não deixou de ter responsabilidade pelo bem", na prática, caberá ao órgão marítimo brasileiro a função de, daqui em diante, ficar arrastando o piano prá lá e prá cá no mar, já que a Sok comunicou a renúncia ao casco, unilateralmente, dias atrás.

Mesmo assim, não está descartada a hipótese de a empresa turca vir a processar o governo brasileiro, por, de acordo com seu advogado no Brasil, Zilan Costa e Silva, "não ter permitido que o porta-aviões atracasse no porto de Suape para realizar os reparos e ações necessária, a fim de seguir viagem rumo ao desmanche, na Turquia" — um caso que, cada dia mais, vira um prato cheio para a Justiça e advogados (clique aqui para conhecer esta história, que mais parece enredo de uma comédia absurda).

Sem seguro

Neste momento, o ex-porta-aviões, que tem 266 metros de comprimento, está sendo rebocado por um navio de apoio da Marinha, a cerca de 300 quilômetros da costa, com, porém, destino não sabido - embora o mais provável é que acabe sendo levado para o mesmo Arsenal de Guerra da Marinha do Brasil, no Rio de Janeiro, de onde partiu para o fracassado desmanche na Turquia, quase seis meses atrás — embora a nota da Marinha contrarie isso.

Imagem - Leonardo Buarque  - Leonardo Buarque
Imagem: Leonardo Buarque

Também está sem seguro, pois, após tantos contratempos, a seguradora que havia sido contratada pela empresa turca para o transporte até a Turquia, decidiu não renovar a apólice -- e, pela lei, nenhum navio poderia estar no mar sem tal cobertura.
Por fim, embora a Marinha reafirme que o proprietário do navio continua sendo a Sok (que, no entanto, renunciou ao ato na semana passada), o mais provável é que, no futuro, seja feito um novo leilão do ex-porta-aviões, já como pura sucata.

Caso ele resista até lá.

 Porta-aviões São Paulo (Uso exclusivo de Nossa) - Poder Naval - Poder Naval
Imagem: Poder Naval

Para entender esta novela

  • Anteriormente chamado Foch, o ex-porta-aviões São Paulo foi comprado, usado, da França, em 2000, para substituir o lendário Minas Gerais, primeiro navio-aeródromo que o Brasil teve. Mas sua vida útil na corporação foi tão curta quanto problemática.
  • Em 2017, após uma série de problemas -- e de navegar apenas pouco mais de 200 dias, em 17 anos de atividade -- foi desativado, porque sua reforma fora orçada em mais de R$ 1 bilhão. Em seguida, seu casco foi colocado à venda, para ser transformado em sucata, através de leilão.
  • Por US$ 10,5 milhões (valor bem abaixo do que valia, segundo especialistas), a empresa turca Sok Denizcilikve Tic arrematou o casco e deu início aos preparativos para levá-lo para desmanche, em um estaleiro na Turquia.
  • Durante o processo de venda, um pequeno grupo de aficionados pelo porta-aviões criou um instituto para tentar preservar o navio e impedir o seu desmanche. Mas, sem recursos, nada conseguiram.
  • Concretizada a venda, a empresa compradora encomendou um inventário (obrigatório) do material que havia a bordo do velho porta-aviões. Mas só vistoriou 12% do navio, e informou 9,6 toneladas de amianto -- 80 vezes menos do que havia em um porta-aviões idêntico ao São Paulo, quando ele foi desmanchado. Mesmo assim, o documento foi aceito pelas autoridades brasileiras e o Ibama expediu autorização de exportação do casco.
  • No dia 4 de agosto do ano passado, um rebocador holandês, contratado pelo comprador do casco ao custo diário de cerca de US$ 40 000, partiu do Rio de Janeiro levando o ex-porta-aviões para a lenta travessia do Atlântico, até a Turquia.
  • No mesmo dia, uma liminar expedida pela Justiça do Rio de Janeiro, a pedido de um grupo de opositores à venda do porta-aviões naquelas condições (valor questionável, falta de vistoria ambiental completa, desejo de transformá-lo em museu, etc), ordenou que o casco fosse trazido de volta ao porto, "para verificações". Mas o comboio ignorou a ordem judicial e seguiu em frente.
  • Acionada, a Marinha do Brasil nada fez para deter o comboio. E, quando se manifestou, foi para informar que ele "já havia saído do mar territorial brasileiro", o que poderia ter sido evitado. Sem alçada em águas internacionais, a Justiça brasileira cancelou a liminar.
  • Enquanto o comboio cruzava o Atlântico, o mesmo grupo que tentou impedir que o navio partisse, acionou os países por onde ele passaria, informando sobre a quantidade "não sabida" de amianto -- material cujo transporte é proibido -- que havia a bordo do velho casco.
  • Pressionado por ambientalistas, a Turquia proibiu a entrada do comboio no país, quando ele já havia chegado do outro lado do Atlântico, um mês depois. Em seguida, o governo Gibraltar, por onde ele passaria, fez o mesmo. Começava ali a segunda parte do festival de absurdos que se transformou a venda do ex-porta-aviões brasileiro.
  • Em nota enviada à redação neste domingo (22) -- que pode ser lida ao pé desta matéria * --, o Ibama nega que tenha sido pressionado ou que tenha voltado atrás. Fato é que o órgão suspendeu a autorização de exportação que havia dado. Sem alternativa, o comboio teve que retornar ao Brasil -- um fato inédito na história da navegação brasileira. Mas levou dias para acatar a ordem, desafiando as autoridades.
  • Um mês depois (após uma epopeia de 14 000 quilômetros sendo puxado no mar), o casco do porta-aviões retornou ao Rio de Janeiro. Mas nem chegou a atracar. Por ordem da Marinha, foi mandado para o porto de Suape, em Pernambuco, a mais de 1 500 quilômetros de distância, para fazer vistorias previstas na lei, para embarcações que passaram muito tempo no mar.
  • 15 dias depois, no início de outubro do ano passado, o comboio chegou a Suape, mas também não pode parar no porto, nem para fazer a vistoria, nem para retirar o amianto, única condição para ser aceito na Turquia. Atendendo a um pedido da Secretaria do Meio Ambiente do estado, a Justiça de Pernambuco proibiu a atracação, por temer a quantidade de material tóxico existente a bordo.
  • Na chegada, o comboio recebeu ordens de ficar a cerca de 25 quilômetros da costa, navegando em círculos, já que o ex-porta-aviões não possui mais âncoras. E ali ficou até ontem, mais de três meses depois -- e mais de cinco após ter começado sua saga, ao partir, rebocado, do Rio de Janeiro, em 4 de agosto do ano passado.
  • Na semana passada, alegando que a parada do navio é responsabilidade das autoridades brasileiras, e prejuízos já acumulados de US$ 10 milhões (mesmo valor que pagou pelo porta-aviões), a empresa turca anunciou a "renúncia ao casco", devolvendo-o a Marinha do Brasil. Que, no entanto, ignorou a decisão unilateral da empresa. "A venda foi feita", disse a entidade.
  • Ontem pela manhã, a Marinha do Brasil ordenou que o comboio fosse deslocado para bem longe da costa brasileira, por "risco de dano ambiental e comprometimento da navegação" no local onde estava, e enviou dois navios para escoltá-lo.
  • Horas depois, no entanto, emitiu um comunicado, informando que estava "assumindo" a operação de reboque do ex-porta-aviões, liberando da função o rebocador holandês que havia sido contratado pela empresa que comprara o navio.
  • Mas informou, também, que a responsabilidade pelo ex-porta-aviões segue sendo do comprador e que não permitirá que ele se aproxime da costa brasileira.

O que vai acontecer agora, ninguém sabe ao certo.

*Nota do Ibama:

O Ibama solicita retificação de informações relacionadas ao papel do Instituto no caso do ex-navio São Paulo, com base nas informações técnicas apresentadas a seguir:
1 - Não há carga tóxica, nem carga alguma embarcada no ex-navio. Materiais como amianto e tinta fazem parte indissociável de sua estrutura e não representam risco direto ao meio ambiente. Devem passar por tratamento adequado no processo de reciclagem.
2 - O Ibama não "voltou atrás", e não agiu em função de "pressões". Quando o país importador cancela seu consentimento, o exportador deve também realizar o cancelamento. Trata-se de norma da Convenção de Basileia, da qual o Brasil é signatário, e o Ibama, autoridade responsável.
3 - O Ibama mantém seu entendimento de que a melhor destinação para o ex-navio é sua reciclagem conforme normas da IMO/ONU e da Convenção de Basileia. O afundamento ou a permanência à deriva em águas brasileiras oferece risco de danos ambientais graves. O Instituto vem atuando por meio de medidas judiciais e técnicas para prevenir e evitar esses danos.
Esclarecimentos e cronologia:
O Ibama atuou no caso como autoridade responsável no Brasil pela Convenção de Basileia e como executor da Política Nacional de Resíduos Sólidos, observando as regras da Organização Marítima Internacional da ONU.
O ex-navio é um resíduo controlado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos. A única destinação ambientalmente adequada para ele é a "reciclagem segura", como determina a Organização Marítima Internacional, agência especializada da ONU - IMO/ONU.
Essa reciclagem deve ser realizada por estaleiros credenciados por normas da IMO e da ISO, e, no caso do ex-navio São Paulo, a exigência é de que o estaleiro seja credenciado pela União Europeia.
Embora o Brasil não disponha de estaleiro credenciado, essa instalação existe em diversos países, como Itália, Dinamarca, Turquia, Noruega e Países Baixos.
Por isso, a exportação do resíduo é mandatória e deve ocorrer em conformidade com a Convenção de Basileia.
De junho de 2021 a junho de 2022, o Ibama analisou e exigiu todos os laudos, inventários de resíduos, plano de reciclagem, certificados, seguros - documentação exigida pelas normas internacionais.
Pela Convenção de Basileia, tanto o país exportador quanto o importador devem emitir consentimento para a operação.
A Turquia emitiu sua autorização em 30 de maio. O Ibama, em 7 de junho. O ex-navio partiu para a Turquia em 4 de agosto.
Em 26 de agosto, a Turquia cancelou seu consentimento, alegando haver uma suposta "ordem da Suprema Corte" para que o ex-navio voltasse. Nunca chegou ao conhecimento do Ibama que houvesse tal ordem por parte do Supremo Tribunal Federal. Juiz de primeira instância no Rio de Janeiro emitiu liminar em 8 de agosto, quando o ex-navio já havia partido, no âmbito de ação judicial que questionava a licitação do casco, sem conotações ambientais.
Por isso, o Ibama suspendeu sua autorização no mesmo dia e determinou o regresso do casco ao Brasil. Caso não o fizesse, a navegação do ex-navio seria considerada "tráfico ilegal de resíduos".

Atenciosamente,

--

Assessoria de Comunicação do Ibama