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Vender, voltar, afundar? Qual destino terá o porta-aviões que ninguém quer
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Há uma semana, desde que a Marinha do Brasil assumiu a função de rebocar o ex-porta-aviões São Paulo antes que ele fosse abandonado no mar pela empresa que o comprou em um leilão (mas que não conseguiu levá-lo para ser desmanchado na Turquia, por uma decisão do governo daquele país), um rebocador da esquadra brasileira passa dias e noites arrastando o gigantesco navio, de 266 metros de comprimento, rumo a um destino incerto, ainda não definido ou secreto.
Ninguém sabe o que será feito do ex-porta-aviões, já chamado de "navio-fantasma" — até porque, desde então, a Marinha se nega a dar novas informações.
"Sobre este assunto, a Marinha do Brasil só se pronunciará por meio de notas oficiais", diz o Centro de Comunicação Social do órgão, sem, porém, informar quando será feito o próximo comunicado.
Com isso, aumentam as especulações sobre o que pode acontecer com o navio, que, segundo a própria Marinha, após quase seis meses sendo rebocado pra cá e pra lá no mar, já representa "risco", o que pode, inclusive, ser um prenúncio do que virá pela frente: o naufrágio, com consequências imprevisíveis para o meio ambiente marinho.
Outras teses, no entanto, vêm ganhando força, embora todas tenham, a princípio, obstáculos e impedimentos.
São elas:
1 - Revender o navio no estado em que se encontra
É o que a empresa turca que comprou o ex-porta-aviões São Paulo, a Sok Denizcilikve Tic (que a Marinha brasileira ainda considera dona da embarcação e responsável legal por ela) vem tentando fazer, desde que começaram os problemas - como forma de se livrar deles.
No entanto, encontrar outra empresa que se interesse pelo negócio não é uma tarefa muito fácil, porque o navio carrega uma quantidade não sabida de material tóxico (sobretudo amianto) a bordo, embora ainda valha um bom dinheiro, como sucata. No mínimo, bem mais que os US$ 10 milhões (cerca de R$ 55 milhões), que a Sok pagou pelo ex-porta-aviões, no leilão promovido pela Marinha, em 2018.
Há suspeitas de que a empresa turca estaria pedindo bem mais do que pagou, visando o lucro, mesmo em uma situação delicada como a que está envolvida. E ainda estaria embutindo no preço o que gastou com o frustrado transporte para a Turquia, que, segundo ela, soma outros R$ 55 milhões - e isso estaria afugentando ainda mais os eventuais interessados na compra da sucata.
"Eles estão tentando lucrar com o problema que eles mesmos criaram", ataca o advogado Alex Christo Bahof, que representa a empresa Comark, ex-parceira da Sok no Brasil, que rompeu com os turcos por desavenças comerciais.
"A Sok nunca quis resolver o problema legal do transporte do navio. Sempre quis burlar as regras, para ganhar e não gastar dinheiro", diz Bahof, que, desde que esta novela começou, anos atrás, vem encabeçando as ações contrárias à venda do porta-aviões, nas condições em que foi feita.
Faltou um inventário detalhado do que havia dentro do navio, antes de tentar levá-lo para a Turquia", garante o advogado. Por isso, deu tudo errado,.
Quem assumirá o problema?
Mesmo que surja um novo comprador interessado no ex-porta-aviões - que já foi o maior navio do Brasil -, o processo de transferência de responsabilidades deve levar algum tempo, porque será preciso, primeiro, achar um estaleiro estrangeiro com certificação internacional para o desmanche de navios com resíduos tóxicos (no Brasil, não existe nenhum) que aceite recebê-lo, sem contar com a provável gritaria dos órgãos ambientalistas, como aconteceu na Turquia, já que não sabe quanto de amianto existe, de fato, dentro do navio.
Daí, fica a pergunta: a quem caberá a responsabilidade de rebocar o ex-porta-aviões no mar, pra lá e pra cá, por tempo indefinido, até que isso aconteça?
A resposta parece ser uma só: a Marinha brasileira, que, a contragosto, assumiu o problema na semana passada e ficou com a batata quente nas mãos.
Vistoria por amostragem
Além disso, para um eventual processo de venda do ex-porta-aviões será preciso fazer um novo inventário do material tóxico que existe nas estruturas do velho navio, documento chamado de IHM, já que o anterior foi feito no ano passado, e por amostragem.
Na ocasião, apenas 12% do casco foi vistoriado - o que as autoridades consideraram aceitável —, e o laudo apontou a presença de 9,6 toneladas de amianto nas tubulações, quantidade, no entanto, largamente contestada por especialistas, já que, quando foi demolido, um irmão gêmeo do porta-aviões São Paulo, o francês Clemenceau, tinha 500 toneladas deste material, mundialmente banido e cujo transporte é regulamentado por uma convenção mundial, da qual o Brasil é signatário.
Na prática, o inventário anterior não apenas está vencido, como desacreditado, o que implica na necessidade de se fazer um novo IHM. Do contrário, o antigo inventário teria sido aceito pelo governo da Turquia, que barrou a entrada no porta-aviões no país, em agosto do ano passado, justamente por também duvidar da abrangência do laudo.
Mas, como fazer um novo levantamento da quantidade de amianto que existe dentro do porta-aviões, algo impossível de ser feito no mar aberto, se ele está proibido, pela própria Marinha, de se aproximar da costa brasileira, por risco de naufrágio e contaminação ambiental?
Este é apenas um dos paradoxos deste caso, que, há muito, já beirou as raias do absurdo. E que se arrasta no mar — literalmente — até hoje.
Mas, segundo a empresa dona do navio, esta especulação não faz sentido.
"Desconheço que meu cliente tencione revender o navio", desconversa o advogado Zilan Costa e Silva, que representa a nova representante da Sok no Brasil.
O problema é que ninguém acredita nisso.
2 - Fazer um novo leilão do porta-aviões
A Marinha sempre deu a entender que não queria — e não quer — o ex-porta-aviões de volta, seja por desinteresse ou falta de espaço para guardá-lo.
Isso ficou claro quando a corporação não intercedeu para que o rebocador que puxava o porta-aviões rumo as desmanche retornasse ao Rio de Janeiro, quando da partida do comboio do Brasil, no dia 4 de agosto, embora, no mesmo dia, um juiz houvesse expedido uma liminar ordenando o retorno do navio ao porto "até que o Ministério Público se manifestasse sobre eventuais efeitos danosos que a venda do navio poderia trazer ao meio ambiente e ao patrimônio cultural brasileiro" - o que foi solenemente ignorado por todos os envolvidos na operação.
Quando a Marinha por fim se manifestou, o comboio já estava, convenientemente, fora do mar territorial brasileiro, e a liminar foi suspensa, porque se tornou inútil.
Mas, se reativada, esta mesma liminar pode obrigar o ex-porta-aviões a retornar ao Rio de Janeiro - e o porto carioca a recebê-lo -, já que é uma ordem judicial.
No entanto, se isso acontecer, a Marinha, certamente, alegará questões de segurança à navegação e ao meio-ambiente (mesmos argumentos usados para afastar o comboio da costa brasileira, na semana passada), para tentar não trazer o ex-porta-aviões de volta ao seu Arsenal de Guerra, no Rio de Janeiro, de onde ele partiu, cercado de alívios, quase seis meses atrás — e para onde, possivelmente, acabará retornando, já que é impraticável manter um navio rebocado no mar para sempre.
Se a posse do ex-porta-aviões voltar para a Marinha, o mais provável é que seja feito um novo leilão da embarcação, embora a corporação afirme que o atual proprietário do navio ainda é a empresa turca que o comprou - que, no entanto, renunciou unilateralmente à propriedade do navio, em favor da União, dias atrás.
Na prática, neste momento, não se sabe nem quem é o "dono" do imenso ex-porta-aviões. Não poderia haver situação mais absurda.
Ele quer salvar o navio
Todas estas reviravoltas no caso reascenderam as esperanças de um entusiasta do ex-porta-aviões São Paulo, o paulista Emerson Miura, um humilde ex-soldado da aeronáutica, que, ao saber da intenção da Marinha de vender o navio como sucata, anos atrás, criou um instituto com o intuito de salvá-lo do desmanche e transformá-lo em museu flutuante.
Se ninguém quiser o navio, Miura diz que quer. Embora não tenha nenhum recurso financeiro para mantê-lo.
"Ganhamos uma inesperada sobrevida e mais tempo para agir", comemora Miura, que acalenta o desejo de salvar o porta-aviões também como uma homenagem à sua esposa, que tinha o mesmo sonho que ele, mas morreu dois anos atrás, de câncer - clique aqui para ler esta emocionante história.
3 - A Turquia voltar atrás e aceitar receber o navio
Hipótese pouco provável, mas politicamente possível, já que o comprador é uma empresa turca e o estaleiro no qual o ex-porta-aviões seria desmanchado, também.
Neste caso, haveria duas possibilidades: o governo turco tanto poderia exigir um novo inventário (que, no entanto, como já dito, é de difícil execução estando o navio no mar), quanto, por pressões políticas, aceitar o antigo, a despeito dos protestos ambientalistas.
Mas é a quarta alternativa a que mais preocupa os ambientalistas: o eventual afundamento do navio.
4 - O pior dos cenários: o navio afundar
Em seu comunicado da semana passada, a Marinha afirmou que a remoção do ex-porta-aviões para águas mais profundas, longe da costa brasileira, tinha por objetivo "evitar riscos à navegação e ao meio-ambiente", já que, segundo ela, o navio "tem possibilidade de afundamento".
Para muitos, trata-se de um anúncio do que pode -- ou deve -- acontecer: o naufrágio da gigantesca embarcação e seu conteúdo sombrio, risco que os ambientalistas já consideram como real.
Dada a sinuca de bico em que a Marinha do Brasil se encontra, tendo que reassumir um problema do qual tinha se livrado, o afundamento - fortuito ou não - do ex-porta-aviões não deixaria de ser favorável, e isso apavora os ambientalistas.
"A Marinha brasileira está se preparando para cometer um crime ambiental de grandes proporções no mar", alertou, esta semana, o diretor da organização Basel Action Network, Jim Puckett, ao afirmar que teme que o navio seja afundado mediante "uma falsa justificativa", como a "simulação de um acidente", por exemplo.
"Se o ex-porta-aviões for afundado intencionalmente, isso equivaleria a um crime ambiental patrocinado pelo Estado brasileiro", vai ainda mais longe a organização Shipbreaking Platform, que monitora a questão do desmanche consciente de navios, no mundo inteiro.
Só não pode afundar
O eventual naufrágio do ex-porta-aviões preocupa também o Ibama, que diz que o material existente na estrutura do navio, entre eles o amianto, não oferece riscos diretos ao meio ambiente, "a menos que a embarcação afunde".
O Ibama também esclarece que o amianto presente no navio, pivô de uma história repleta de irregularidades, não representa riscos na forma como está: não exposto e não manipulado. "Mas tudo isso muda se o navio afundar", completa o órgão.
Para completar o temor dos que temem que o fim do porta-aviões São Paulo seja o fundo do mar, há o fato de que, atualmente, ele está sem seguro, o que, convenientemente, não exigiria nenhuma investigação por parte das seguradoras.
"Eu não me surpreenderia se acontecesse um 'acidente' e o navio afundasse bem longe daqui", diz um dos envolvidos neste caso, que, cada vez mais, ganha as dimensões de uma novela, e cujo já longo histórico pode ser conferido clicando aqui.
Antecedente trágico
Neste momento, segundo o serviço de rastreamento do Greenpeace, o comboio formado pelo rebocador Purus, da Marinha do Brasil, e o moribundo ex-porta-aviões está zanzando praticamente no meio do Atlântico, bem longe da costa brasileira, nas chamadas "Águas Internacionais", que não pertencem a nenhum país.
Mais ou menos perto dali, no passado, outro grande ex-navio da Marinha brasileira, um encouraçado, afundou e desapareceu para sempre, quando também era rebocado rumo a um desmanche na Europa, causando a morte de oito tripulantes, em um caso que gerou julgamentos que responsabilizaram parcialmente a corporação brasileira — clique aqui para ler esta história.
Mas o mais irônico é que o nome do encouraçado sinistrado era exatamente o mesmo do ex-porta-aviões cujo destino também pode ser o fundo do oceano: "São Paulo".
Que as coincidências parem por aí.
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