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Expedição que buscava contatos da ilha mais remota do planeta fracassa
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No início do mês passado, 13 homens, todos radioamadores, partiram das Ilhas Falklands (mais conhecidas no Brasil como Ilhas Malvinas), a bordo de um veleiro de 31 metros de comprimento.
O objetivo era tão audacioso quanto curioso: navegar até a ilha desabitada mais remota do planeta, apenas para, de lá, fazer contato com outros radioamadores.
O que, a princípio, poderia parecer um objetivo meio sem sentido — atravessar um dos piores mares do mundo e navegar até a ilha mais erma do planeta apenas para receber e enviar mensagens de lá —, era justamente o oposto disso para os praticantes do radioamadorismo, pessoas sempre em busca de novos e inusitados contatos.
Para eles, aquela jornada tinha um caráter quase histórico, porque o destino escolhido para aquela viagem (uma "DXpedição", aglutinação da sigla "DX", usado no radioamadorismo para designar contatos a longa distância, com a palavra "expedição") era a esquecida Ilha Bouvet, a ilha desabitada mais distante que existe no mapa terrestre — e isso valia todo e qualquer esforço.
Uma ilha longe de tudo
A Ilha Bouvet, um pedaço de lava vulcânica permanentemente congelado, com duas vezes o tamanho de Fernando de Noronha, fincado no extremo sul do Atlântico, quase a meio caminho entre a da África do Sul e a Antártica, é um território da Noruega, mas tão despovoado quanto a lua.
Seus únicos habitantes são pinguins, algumas aves e leões-marinhos — seres que não se importam em viver em uma ilha cercada por um mar congelante, e com 90% de sua superfície formada por geleiras.
Somados, todos os seres humanos que já a visitaram, desde que foi descoberta pelo explorador polar francês Jean-Baptiste Bouvet (cujo sobrenome foi usado para batizá-la), no primeiro dia do ano de 1739, não passam de uma centena, em quase três séculos.
A razão disso é que Bouvet fica longe de tudo. Não há nada por perto. Nem mesmo rotas marítimas usadas pelos navios.
Verdadeiro "Fim de Mundo"
Cerca de 2.500 quilômetros de mar separam a Ilha Bouvet da costa sul-africana, e 1.700 de uma das penínsulas antárticas.
Uma pessoa que desembarque em Bouvet estará tão isolada dos demais habitantes do planeta quanto os astronautas nas estações espaciais.
Por tudo isso — e também por ser o segundo ponto do planeta mais inacessível aos radioamadores, atrás apenas da Coréia do Norte —, a Ilha Bouvet sempre foi uma espécie de Santo Graal do radioamadorismo mundial. Um local de onde todos os operadores de rádio amadores do planeta adorariam receber mensagens e fazer contato.
Daí o motivo para aqueles 13 aventureiros, de diferentes nacionalidades, mas a maioria noruegueses, se lançarem na dura empreitada de chegar à Ilha Bouvet, e ali instalar, durante alguns dias, uma estação móvel de rádio amador, a fim de interagir com o resto do planeta — pelo simples prazer de permitir que outros radioamadoristas enviassem saudações e mensagens ao que de mais próximo pode haver do fim do mundo.
Operação precisou ser abortada
Ao cabo de 15 dias de navegação ininterrupta, eles, finalmente, chegaram à Ilha Bouvet e desembarcaram, a duras penas, em uma espécie de praia feita de pequenos blocos de lava vulcânica, banhada por um mar tão gelado quanto violento.
Mas, por conta do mau tempo e da violência das ondas, a operação logo precisou ser abortada, deixando quatro integrantes da equipe retidos na ilha, ao relento, por três dias, até que as condições climáticas permitiram o desembarque do restante do grupo e do material.
Mesmo assim, não por muito tempo.
300 dias por ano com tempestades
Logo, a habitual hostilidade climática de Bouvet — que passa, em média, 300 dias por ano sendo assolada por tempestades e nevascas — prevaleceu, e o grupo, que mal havia instalado seus equipamentos e antenas em tendas fixadas ao gelo, decidiu, em nome da segurança, bater em retirada.
"Estamos deixando Bouvet hoje, 16 de fevereiro, com sentimentos misturados, de sucesso e fracasso", escreveu um dos integrantes da equipe na página que o grupo, batizado de 3Y0J, prefixo de rádio através do qual tentaram operar na ilha, manteve no Facebook, ao levantar âncora e partir, na última quinta-feira.
"Sucesso por termos chegado e desembarcado em Bouvet, o que poucos conseguiram até hoje. E fracasso por não termos conseguido nos comunicar com os demais radioamadores como gostaríamos", lamentou o comunicado.
O que fez eles desistirem
Vítimas de vendavais furiosos, que ameaçavam arrancar suas antenas o tempo todo, frio cortante e falta generalizada de condições e conforto (os dois únicos aparelhos de rádio comunicação que conseguiram desembarcar na ilha foram operados sobre improvisados baldes, com os operadores sentados no chão, já que era impossível desembarcar todos os equipamentos que necessitavam), a equipe desistiu da operação e decidiu retornar ao barco — e dele para a África do Sul, para onde se dirigem agora, após dez dias na inóspita ilha.
Mesmo assim, conseguiram cerca de 19 mil contatos com rádio amadores de diferentes partes do globo terrestre, embora sempre em condições desfavoráveis — às vezes, só ouvindo ou transmitindo, mas não as duas coisas ao mesmo tempo.
O resultado frustrou os membros da expedição, que custou dois anos de planejamento e cerca de R$ 3,5 milhões — R$ 500 mil só com o aluguel do veleiro que os levou até lá.
Mas rendeu uma chuva de elogios de radioamadoristas do mundo inteiro, inclusive do Brasil, pelo esforço do grupo.
A natureza venceu
Apesar do fraco resultado, a expedição 3Y0J gerou os primeiros contatos ("QSO", no jargão dos radio amadores) oriundos de Bouvet desde que o astronauta da NASA, Charles Brady Jr, passou três meses na ilha, entre o final de 2000 e início de 2001, também com o objetivo de apenas enviar e receber sinais de outros radioamadores mundo afora, o que conseguiu com certo sucesso.
Naquela ocasião, Brady foi bem-sucedido.
Mas, desta vez, a natureza venceu.
"O clima imprevisível, a complexidade logística e os graves riscos de permanecermos na ilha tornaram inviável a execução integral da operação", explicou o porta-voz do grupo, ao comunicar a partida prematura da ilha.
Cápsula do tempo deixada na ilha
Além de ter passado quase dois séculos assinalada erroneamente nos mapas, consequência do seu completo isolamento, e de ser o único sufixo de internet (.bv) que não tem nenhum usuário no planeta, Bouvet possui outras curiosidades.
Uma delas é que uma de suas muitas geleiras abriga uma espécie de cápsula do tempo, ali depositada por quatro alpinistas, em 2012, que nela registraram suas opiniões sobre como estará a questão climática no planeta, 50 anos depois — portanto, em 2062, quando, espera-se, a tal cápsula será recuperada e comparada com a realidade.
Outra é que o passado de Bouvet abriga um intrigante mistério ligados à sua conquista, nunca comprovadamente esclarecido, apesar de algumas teorias.
Um bote misterioso
Em 1964, um grupo de trabalhadores desembarcou na ilha para implantar uma estação meteorológica e deu de cara com um bote salva-vidas fincado na praia, com seus dois remos jogados adiante, mas sem ninguém por perto.
Como a ilha sempre foi desabitada — e nenhum vestígio humano foi encontrado na ocasião —, restou a dúvida, que, de certa forma, permanece até hoje: quem teria levado aquele barco até aquela ilha distante de tudo, e o que teria acontecido com o seu ocupante? — clique aqui para conhecer este intrigante caso, que, apesar de algumas teorias, nunca teve uma explicação conclusiva.
Para os fãs de Histórias do Mar — Jorge de Souza é o convidado de hoje (quinta-feira, 20 horas) do podcast Ciência Sem Fim, com Sérgio Sacani. Clique aqui para assistir.
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