Topo

Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Feliz da vida, brasileiro aposentado completa a volta ao mundo com um barco

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

02/03/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Desde pequeno, quando ainda brincava com barquinhos, o capixaba Renato Oliveira pôs na cabeça que, um dia, teria um veleiro e sairia navegando pelo mundo.

Durante décadas ele alimentou o sonho, planejando mentalmente como seria aquela viagem, enquanto ganhava a vida como oficial da Aeronáutica e piloto de aviões particulares.

Até que, quatro anos atrás, após completar 50 anos de idade e se aposentar, Renato decidiu que era hora de tornar o velho desejo uma realidade.

Comprou, então, um barco usado, aperfeiçoou os conhecimentos sobre como velejar, aprendidos no passado, e partiu da capital do Espírito Santo, com o objetivo de a volta ao mundo navegando — o que completou na semana passada, ao retornar à Vitória com números expressivos na longa viagem que fez ao redor do planeta. Tudo isso registrado no seu Instagram @svfreewind e no grupo do Facebook Veleiro Free Wind.

50.000 km no mar

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - PRINCIPAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Foram mais de 50.000 quilômetros de mar navegados e 13 países (e incontáveis ilhas) visitados, ao longo de três anos e meio de viagem — embora a pandemia o tenha obrigado passar um bom tempo parado.

Com isso, aos 57 anos, Renato realizou o velho sonho de infância, em uma fase da vida que a maioria das pessoas imagina que não tem mais idade para fazer certas coisas que gostariam — como uma viagem de volta ao mundo com um barco.

Já pensa em voltar para o mar

"Foi maravilhoso", sintetiza Renato, já avô de dois netos — Alice e Diego — , que viajou a maior parte do tempo na companhia de um amigo, o baiano Fernando Baldini, que, até então, sequer sabia como velejar — mas que, agora, já se prepara para partir de novo, rumo ao Caribe, de carona no barco de uns ingleses, que eles conheceram durante a viagem.

Fernando, contudo, não é único da dupla que já pensa em voltar para o mar.

Apenas uma semana após retornar ao Brasil, o próprio Renato já começa a sonhar com uma nova volta ao mundo pelo mar, desta vez visitando lugares e regiões que não fizeram parte da primeira viagem. Como o Mediterrâneo, o Mar Vermelho, o sudoeste asiático e a Nova Zelândia.

Mas ele diz que, talvez, leve ainda dois ou três anos para começar a nova viagem.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 3 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Se tem algo que aprendi navegando lentamente pelo mundo é não ter mais pressa para nada. Naveguei no ritmo que a natureza e a minha vontade permitiram, e isso me fez muito bem", diz o capixaba, que, quando partiu do Brasil, em 2019, só queria aproveitar a vida e se divertir.

"Consegui as duas coisas", diz Renato, feliz da vida com a viagem que acabou de completar.

Outros benefícios

Além de ter desenvolvido uma saudável paciência para com tudo na vida, Renato diz que a viagem lhe trouxe outros benefícios.

"Depois de conviver tanto tempo com tantas pessoas de culturas diferentes, também aprendi a ser mais leve nas relações humanas, mais tranquilo, mais tolerante e menos dono da verdade. Aprendi a ouvir e não impor a minha vontade. Voltei, enfim, muito melhor como pessoa", avalia Renato, que garante que só fez amizades no mar.

"Quem navega pelo mundo com um barco acaba sendo abraçado por uma espécie de comunidade, os 'Nômades do Mar', onde só tem gente legal. Em todos os locais onde parei, fui bem recebido, bem mais do que esperava", vibra o capixaba.

"Todo mundo ajuda quem viaja pelo mar. Não é o que acontece com quem chega de avião, fica uma semana e vai embora. Esse é apenas mais um turista. É diferente", explica Renato, que também garante que o fato de ser brasileiro ajudou muito nessa amistosa receptividade.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 4 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"O brasileiro é tido como um povo alegre, divertido e, por isso, bem-vindo. Senti isso em todos os cantos. Quando o pessoal via a bandeirinha do Brasil no barco, se aproximava, oferecia ajuda e puxava papo. Era mais uma amizade que surgia".

"Perdi as contas de quantas pessoas bacanas conheci nesta viagem", garante o capixaba.

Foi onde quase ninguém vai

"Outra vantagem de viajar com um barco é que você conhece lugares onde os turistas convencionais quase sempre não vão, porque é difícil chegar", diz Renato, que chegou a passar cinco meses perambulando e ilha em ilha no arquipélago de Fiji, no Pacífico Sul.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 5 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Uma das ilhas serviu até de cenário para o filme Náufrago, com o Tom Hanks, de tão isolada que fica", diz o brasileiro, que também adorou a natureza das Ilhas Galápagos, na costa do Equador.

"Lá, você ainda vê os mesmos animais que serviram para Charles Darwin escrever a Teoria da Evolução das Espécies, como iguanas que aprenderam a viver também no mar, a fim de sobreviver", exemplifica o velejador.

Como foi a viagem dele

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 6 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

A viagem de Renato começou em julho de 2019, quando ele partiu de Vitória, no Espírito Santo, rumo ao Caribe.

Depois, cruzou o Canal do Panamá, e atravessou Oceano Pacífico até as ilhas da Polinésia Francesa, região que mais curtiu em toda a viagem.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 7 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"É impossível não se apaixonar por aquelas ilhas de cartão postal e com cultura sem igual", diz. "O povo de lá vive sorrindo e tudo é lindo. A começar pelo mar, mais limpo que piscina", diz o velejador, que só enfrentou uma única tempestade no mar durante toda a volta ao mundo, justamente no trecho ente a Polinésia Francesa e as Ilhas Fiji.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 8 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"A tormenta durou algumas horas e teve ventos bem fortes. Mas toda tempestade uma hora acaba. O segredo é ter calma e esperar. Porque tudo passa".

Viveu duas vezes o mesmo dia

Da Polinésia, após passar uma longa temporada em Fiji, Renato, já com a companhia de Fernando, que embarcou no Panamá, navegou até a Austrália.

De lá, os dois penetraram no Oceano Índico e visitaram outras tantas ilhas, antes de chegar à África do Sul, e, de lá, retornar ao Brasil, na semana passada.

Ao longo do caminho, viveram experiências únicas, como atravessar a Linha (imaginária) de Mudança de Data, no meio do Pacífico, que divide os fusos horários do planeta entre ´hoje e ontem´, e que os fez ´voltar no tempo`, no meio do oceano.

"Foi bem divertido viver duas vezes o mesmo dia", recorda Renato. "Mas, legal mesmo foi o cardume de lulas que pulou para dentro do barco, em plena noite do último réveillon, e virou uma ceia e tanto", diverte-se o velejador, agora com as lembranças da longa viagem.

"A viagem inteira foi muito melhor do que eu imaginava. E bem mais tranquila também", garante o velejador cinquentão.

2.000 dólares por mês

Para custear a longa jornada, Renato usou o dinheiro que recebe da sua aposentadoria, acrescido de algumas economias.

Na média, gastou cerca de 2.000 dólares por mês (cerca de R$ 11.000), com alimentação, passeios e consertos (mais que frequentes) no barco — "Dar a volta ao mundo navegando é ficar consertando o barco nos lugares mais bonitos que existem", brinca o velejador.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 9 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Daria para gastar bem menos por mês, mas eu teria que economizar nos passeios, na diversão e na cerveja, e isso tiraria parte do prazer da própria viagem", explica, rindo.

Como era o barco dele?

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 10 ARQUIVO PESSOAL - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Batizado Free Wind ("Vento Livre", em português), o barco que Renato usou na viagem é um veleiro de pouco mais de 11 metros de comprimento, com uma cabine que imita uma pequena casa, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro.

Foi construído em 2005, por um dedicado engenheiro gaúcho, que também sonhava em dar a volta ao mundo navegando, e que acabou virando seu amigo.

Mas a morte abrupta da esposa do construtor do barco - e dele próprio, mais tarde -, fez com que o veleiro acabasse sendo vendido para Renato, que, assim sendo, de certa forma, também realizou o sonho do amigo.

"Ele não conseguiu dar a volta ao mundo que tanto queria, mas o barco que construiu, sim. Fiz a viagem que ele não pode fazer", diz o capixaba, emocionado.

Mais fácil do que parece

"No fundo, dar a volta ao mundo navegando é uma viagem bem mais simples do que parece", analisa. "Tendo um bom barco, respeitando a natureza e partindo só na hora certa, é algo perfeitamente possível para pessoas de qualquer idade", garante Renato, que, agora, já com uma circum-navegação completa no currículo, tem outro objetivo: dar outra volta ao mundo.

"É preciso aproveitar a vida. Ela é curta demais para ser pequena", diz o velejador.

Volta ao mundo aos 81 anos de idade

Na semana passada, ao retornar à mesma cidade de onde partiu, quase quatro anos atrás, Renato se tornou o 27º brasileiro a dar a volta ao mundo navegando com o próprio barco (clique aqui para ver a lista completa dos brasileiros que já fizeram esta viagem, preparada pelo navegador Silvio Ramos, ele mesmo um deles).

Mas não foi o primeiro brasileiro a fazer isso com uma idade mais que madura.

Tampouco o primeiro a chegar de uma navegação de volta ao mundo já pensando em partir de novo.

Ao contrário, a maioria dos que fazem esta viagem a repetem, a despeito do que diz o calendário.

O caso mais emblemático é o do australiano Bill Hatfield, que, três anos atrás, contornou todo o planeta velejando em solitário, sem parar em lugar algum e pela pior rota possível, quando já somava 81 anos de idade — clique aqui para conhecer a impressionante história do homem mais velho do mundo a dar a volta ao mundo navegando sozinho com um barco.

Histórias do mar - Capixaba volta ao mundo - FOTO 11 Reproducao Facebook - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

E o mais impressionante é que Bill Hatfield já planeja partir de novo. Tal qual o capixaba Renato Oliveira.