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Veio do Brasil? O que sugere a cocaína que apareceu nas praias da França
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Desde que dois grandes sacos plásticos, amarrados a pequenos galões plásticos e alguns coletes salva-vidas, foram dar em duas praias da Normandia, na costa da França, nas últimas três semanas, os poucos habitantes das pequenas cidades da região não falam de outra coisa.
E os muitos forasteiros que vieram de longe atraídos pela notícia, também.
Todos passam os dias comentando sobre o conteúdo daqueles misteriosos sacos: quilos e mais quilos da mais pura cocaína, que foram dar naquelas duas praias não se sabe como, nem de onde vieram, muito menos quem os transportava.
Ainda não há respostas para as muitas perguntas deste caso. Mas já há boas pistas.
Teria vindo do Brasil?
Uma delas indica que, em algum momento da sua trajetória rumo à Europa, onde seria vendida a preços milionários, já que, segundo a Polícia, a droga é da mais alta qualidade, a cocaína contida naqueles dois sacos plásticos passou pelo Brasil — de onde, muito provavelmente, também partiu.
A constatação é óbvia, por um detalhe inquestionável: os coletes salva-vidas, que juntamente com os galões vazios estavam atados aos sacos, para permitir que flutuassem, são de uma conhecida marca brasileira de equipamentos náuticos de segurança, a Ativa, que, embora famosa, não os exporta.
Portanto, a probabilidade daqueles coletes salva-vidas terem partido de uma embarcação não brasileira é muito pequena — embora nada impeça que tenham sido colocados em um barco estrangeiro, mas isso é pouco provável.
Colete de um veleiro?
O mais provável é que o barco que transportava os objetos -- tanto a droga quanto os coletes salva-vidas -- seja brasileiro e de pequeno porte, já que esse tipo de colete salva-vidas não é utilizado em navios.
Classificado como "Classe 2", os coletes da marca brasileira são homologados para uso apenas em águas abrigadas ou costeiras, e em barcos de passeio, como lanchas e veleiros.
E é justamente sobre algum veleiro de bandeira brasileira que teria atravessado o Atlântico para transportar a droga até a Europa, que recaem as maiores suspeitas no momento — embora a Polícia francesa, aparentemente, ainda não saiba qual barco teria sido aquele.
Menos ainda como aqueles sacos repletos de cocaína foram parar no mar do litoral francês. Ou — o que é bem mais provável - por que eles teriam sido propositalmente atirados na água, dedução igualmente fácil, já que ninguém se daria ao trabalho de atá-los a flutuadores improvisados se não houvesse a clara intenção de jogá-los no mar.
Jogaram no mar e fugiram?
A princípio, há duas hipóteses para isso: a impossibilidade de o barco que transportava a cocaína se aproximar das praias para desembarcar a mercadoria (talvez, em razão das condições do mar no dia), ou os tripulantes terem decidido se livrar da droga por conta de algum risco de serem abordados pela Polícia — embora nenhuma perseguição do gênero ou detenção de embarcação tenha ocorrido na região.
Nos dois casos, a decisão de depositar no mar uma carga tão valiosa (segundo estimativas, a droga encontrada valeria cerca de R$ 100 milhões nos grandes mercados da Europa) teria sido causada por uma necessidade dos traficantes e não devia fazer parte dos planos originais do grupo, como também parece claro quando se analisa a precariedade dos flutuadores: galões improvisados amarrados a coletes salva-vidas, objetos que todo barco tem a bordo.
Descartaram os navios
Os galões plásticos (todos de tamanho médio) eram do tipo usado como vasilhame de óleo ou produtos químicos, e os coletes salva-vidas (coloridos, como todo equipamento desse tipo), chamativos demais para uma operação ilegal, que, por isso mesmo, deveria ser o mais discreta possível.
Outra possibilidade, inicialmente cogitada, mas já praticamente descartada, é que a droga estivesse sendo transportada por um navio, dentro de um compartimento submerso que existe no caso para captar água — e cada vez mais utilizado pelos traficantes para o transporte involuntário —, ou dentro de containers, que eventualmente tivessem caído no mar e liberado o seu conteúdo na água. Mas nenhuma das duas alternativas explicaria os flutuadores amarrados aos sacos.
Perto da praia ou no mar aberto?
O mais plausível é que os traficantes, a bordo de um veleiro vindo da América do Sul (ou, mais especificamente, do Brasil, como vem ocorrendo com frequência), tenham sido obrigados a jogar a droga no mar, por algum motivo ainda não sabido.
E isso, talvez, não tenha acontecido tão perto assim das praias onde os dois sacos foram encontrados, mas sim em alto-mar, com a droga sendo trazida para a costa pelas correntes marítimas.
Por isso, é possível que novos sacos surjam nos próximos dias, para atenção da Polícia e expectativa dos "narcoturistas", como passaram a ser chamados os forasteiros que passaram a chegar às praias da região, em busca da cocaína vinda do mar.
Polícia x Narcoturistas
Apesar da intensa patrulha da Polícia nas praias quase desertas da Normandia, cada vez mais pessoas têm sido vistas caminhando a esmo pela orla, remexendo resíduos à beira-mar ou vasculhando o horizonte com binóculos, na esperança de encontrar algum novo pacote da droga, para o desconforto dos moradores locais, que não veem com bons olhos a presença de tantos estranhos nas pacatas cidadezinhas da região.
"São pessoas esquisitas, que ficam caminhando na praia durante a madrugada, vasculhando tudo o que encontram na beira d'água", diz uma moradora da pequena cidade de Réville, que prefere não se identificar. "Parecem viciados, em busca da droga para acalmá-los".
Fenômeno parecido (mas por outro motivo), a Europa viveu em 1988, quando um navio que transportava 5.000 automóveis zero quilômetro encalhou e afundou na praia da Madalena, em Portugal, o que levou centenas de portugueses a passarem dias na praia na esperança de conseguirem um dos automóveis — clique aqui para ler esta curiosa história.
Ricos da noite para o dia
Mas a busca empreendida pelos "caçadores de cocaína" nas praias da Normadia tem outro motivo, além de eventualmente apenas satisfazer o próprio prazer.
"Um pacote desses pode deixar você rico da noite para o dia", explicou um dos caçadores de cocaína ao telejornal francês TF-1, indiferente ao monitoramento constante feito pela Polícia.
"Vale a pena correr o risco".
Pode matar na hora
O risco, no caso, não é apenas o de ser preso por porte de drogas (crime que, na França, pode render uma pena de até dez anos de prisão), mas também de vida aos eventuais consumidores da cocaína encontrada nas praias da região, já que, segundo a Polícia, ela é bem pura, e por isso mesmo bastante perigosa para a saúde.
"Uma simples dose de cocaína com esse nível de pureza pode ser fatal e matar uma pessoa na hora", alerta um especialista no assunto, acrescentando que, quatro anos atrás, em outro episódio de chegada de cocaína pelo mar francês (eventos que os franceses já apelidaram de "Marés Brancas"), um jovem morreu após ingerir uma pequena porção da droga achada na praia.
Qualidade da cocaína pode ser a pista
Naquela ocasião, os pacotes de cocaína foram dar nas praias da Bretanha, região vizinha à Normandia, e somaram, empilhados, mais de 1,5 metro cúbico de droga, também da mais alta qualidade — o que significa que, uma vez processados e misturados com outras substâncias, como sempre acontece, renderiam quase o triplo disso no ávido mercado europeu de consumo de entorpecentes.
Ironicamente, porém, é a própria boa qualidade da cocaína que agora foi dar nas praias da Normadia que pode dar outra boa pista sobre a sua origem, pois cada "produtor" costuma ter a sua própria "receita" — e a Polícia tem como rastrear isso, com a ajuda de seus colegas em outros países.
Além disso, segundo a Polícia francesa, os traficantes que colocaram os pacotes de cocaína dentro dos sacos plásticos e os ataram aos flutuadores, podem ter deixado impressões digitais ou vestígios de DNA nas embalagens, o que facilitaria a identificação dos traficantes, embora isso dependa da colaboração dos países suspeitos de serem a origem da droga, especialmente o Brasil.
75% da droga chega pelo mar
O tráfico de cocaína vem explodindo na França de maneira avassaladora. Só no ano passado, foram apreendidas 27,7 toneladas da droga, cinco vezes mais do que dez anos atrás.
Segundo a Polícia, 75% disso veio pelo mar, da América do Sul, sobretudo do Brasil, país que há muito entrou na rota internacional do tráfico de drogas.
Para levar a cocaína até a Europa, os traficantes brasileiros usam tanto navios, que muitas vezes transportam a droga sem saber, misturada à carga ou escondida no casco, quanto veleiros particulares ou barcos de pesca, com autonomia suficiente para cruzar o oceano sem precisar reabastecer.
Ao que tudo indica, foi mais um deles o responsável pela incômoda surpresa que chegou às praias francesas nas últimas semanas, para apreensão da Polícia, tensão dos moradores da região, expectativa dos narcoturistas, e alegria dos que ainda tentam encontrar alguma substância proibida gentilmente trazida pelo mar, como já aconteceu no passado, em outros tantos locais.
Resta apenas saber que barco era aquele. Porque, de onde ele veio, é fácil deduzir.
No Brasil, o caso do "Barco da Lata"
No Brasil, o caso mais famoso de desova de entorpecentes no mar aconteceu no verão de 1988, no Rio de Janeiro, quando um barco que transportava 15.000 latas com maconha desovou sua insólita carga bem diante das praias da cidade, a fim de escapar de um flagrante da Polícia.
Ao fazer isso, fez também a festa de banhistas e surfistas, que, eufóricos, viram chegar, trazidas pelas ondas, latas e mais latas da erva então mais que apreciada, e de alta qualidade.
O fato, que ficou eternizado como o "Verão da Lata", causou furor na cidade, gerou uma corrida às praias e, tal qual agora acontece na França, mostrou a incapacidade da Polícia de deter os infratores.
Alguns deles guardam algumas destas latas (já vazias, obviamente) até hoje, como um troféu do mais original presente que já receberam de Iemanjá — clique aqui para conhecer esta interessante história, que marcou época no Rio de Janeiro, e se tornou ainda mais folclórica do que está acontecendo, agora, no litoral norte da França.
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