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Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Brasileira com deficiência física cruza oceano com veleiro: "Me sinto viva"

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

24/03/2023 04h00

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Foi durante a pandemia.

A gaúcha Adriana Frank estava se distraindo na Internet, trancada em sua casa, na cidade de Gramado, amargurada pelo confinamento imposto pela covid, e em meio a um processo de divórcio, quando piscou na tela do seu computador uma proposta que lhe pareceu tão absurda quanto tentadora: que tal atravessar o oceano Atlântico a bordo de um veleiro?

A ideia parecia descabida demais para alguém que, como ela, não conseguia se locomover sozinha, sem a ajuda de outras pessoas — ou de uma cadeira de rodas —, mas, ainda assim, ela seguiu em frente na conversa com aquela associação francesa de velejadores, que oferecia a possibilidade de Adriana fazer a travessia do oceano a bordo de um barco adaptado, com a assistência de integrantes da equipe, que iriam junto na viagem.

Desafio para ela mesma

Após pensar bastante a respeito, mas entusiasmada com a possibilidade de voltar a frequentar o mar que tanto gostava, na época em que nadava nas praias do Rio Grande do Sul, Adriana aceitou a proposta — que era um enorme desafio para ela mesma.

Dias depois, em junho do ano passado, ela desembarcou, sozinha, na França, e de lá, após um treinamento que durou meses, partiu em um pequeno veleiro, de apenas 10 metros de comprimento, para a travessia do segundo maior oceano do planeta, o Atlântico, viagem que terminou no final do mês passado, após 22 dias cruzando o alto mar.

Histórias do Mar - Adriana Frank - foto 01 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

O que ela tem?

Histórias do Mar - Adriana Frank - foto 02 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Adriana sofre de espasticidade muscular, uma lesão no sistema nervoso central que causa a contração dos músculos das pernas e pés, o que a impede de caminhar — embora ela consiga ficar em pé, desde que apoiada em algo ou com auxílio de outras pessoas.

Se arrastando no piso do barco

Por isso, o veleiro no que Adriana viajou, como tripulante de verdade, e não simples passageira, o que significava participar normalmente das tarefas a bordo, como subir e baixar velas, puxar cabos e pilotar o barco, foi ligeiramente adaptado para recebê-la, com a inclusão de diversos pontos de apoio, para que ela pudesse se segurar, durante a navegação.

Quando não conseguia se segurar, Adriana se arrastava sobre o piso do barco, sentada em uma almofada, porque ele era pequeno demais para abrigar sua cadeira de rodas.

Para subir ao convés, ela era carregada no colo pela tripulação, formada por quatro homens, todos empenhados em ajudar, mas não em poupar Adriana das funções a bordo, já que um dos objetivos da viagem era justamente promover a inclusão, aumentar a sua autoestima e mostrar à brasileira que — sim! —, apesar da mobilidade reduzida, ela poderia perfeitamente cruzar um oceano velejando, como, de fato, fez.

Histórias do Mar - Adriana Frank - foto 03 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Foi maravilhoso", resumiu Adriana, ao desembarcar na ilha de Martinica, no Caribe, após ter atravessado todo o Atlântico velejando, como se fosse uma pessoa sem nenhuma limitação física.

"Fiz o que não imaginava que ainda pudesse fazer na vida, e venci um desafio pessoal de mostrar para mim mesma de não sou uma pessoa incapaz. Foi o meu grito de liberdade", comemorou a brasileira ao desembarcar, para alegria, também, dos seus companheiros de viagem.

Superação pessoal

Mesmo para os organizadores daquela interessante travessia, o grupo francês Les Handicapables (um trocadilho com as palavras handicap, "deficiente," em inglês, e capables, "capazes", em francês), o objetivo daquela viagem também era a superação pessoal de cada um deles, porque foi a primeira vez que eles promoveram uma travessia oceânica com um deficiente físico a bordo de um veleiro.

A entidade nada cobrou pela travessia. Adriana só pagou as próprias despesas na viagem, que começou na costa da França e passou pela Espanha, Marrocos, Ilhas Canárias e Cabo Verde, antes de cruzar o Atlântico, até o Caribe.

Nunca tinha velejado

Até então, Adriana nunca havia velejado, muto menos pensado em, um dia, atravessar um oceano navegando.

"Isso nunca tinha passado pela minha cabeça, ainda mais depois que passei a depender de uma cadeira de rodas para me locomover. Mas os algoritmos da Internet naquele dia mudaram a minha vida, ao sugerir algo que jamais

tinha imaginado que pudesse fazer. E fiz", diz Adriana, já de volta à Gramado, orgulhosa da própria conquista.

Banho de mar no meio do oceano

Durante a jornada, Adriana viveu outras experiências inéditas para ela, além de conduzir, sozinha, um barco durante os seus turnos ao timão, enquanto os demais tripulantes descansavam. Como, por exemplo, tomar banho de mar no meio do oceano.

Histórias do Mar - Adriana Frank - foto 04 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

"Eu vestia um colete preso a um cabo e ficava boiando na água, vendo os peixinhos passar lá embaixo. Foi incrível. Nunca imaginei que pudesse voltar a ver isso na vida".

Ganhou o apelido de Sereia

A felicidade de Adriana por estar no mar - e, sobretudo, por se sentir capaz de fazer o que imaginava que não seria mais capaz de fazer -, lhe rendeu o carinhoso apelido "Sirène" ("Sereia", em português) entre os amigos tripulantes do barco, porque, no mar, ela conseguia se movimentar, mas em terra firme, não.

"Foi maravilhoso poder curtir o mar como qualquer pessoa sem limitações físicas", diz Adriana, que tem 50 anos de idade, é aposentada, mãe de um filho e com deficiência desde os 24 — quando contraiu meningite, logo após o parto.

Não reclama da vida

"No começo, perdi todos os movimentos do corpo. Só depois de muito esforço, fisioterapias e tratamentos, que duraram 20 anos, fui recuperando aos poucos a movimentação dos braços e das mãos, que hoje funcionam perfeitamente. Mas as pernas e os pés, não. E, pela minha idade, acho que ficarão assim para sempre", diz Adriana, que sempre teve uma atitude positiva frente à vida, e não lamenta a má sorte que teve.

"Tenho um filho maravilhoso e, agora, também a certeza de que posso fazer coisas improváveis, como atravessar um oceano com um barco", diz a gaúcha, que já tem planos para o futuro.

"Quero voltar para o mar", diz. "Lá, eu me sinto uma pessoa 100% normal".

Um caso ainda mais extraordinário

A experiência vivida pela gaúcha Adriana não foi a primeira do gênero envolvendo uma mulher com mobilidade reduzida.

Mas trouxe para ela os mesmos benefícios colhidos por outras tantas velejadoras com deficiências físicas, que, a despeito de suas limitações, não abandonaram o prazer da navegação no mar.

O caso mais emblemático — e extraordinário — foi o da inglesa Hilary Lister, que, tal qual a brasileira Adriana, também descobriu que poderia navegar só após se tornar tetraplégica.

Histórias do Mar - Adriana Frank - foto 05 - Reprodução/Arquivo Hilary Lister - Reprodução/Arquivo Hilary Lister
Imagem: Reprodução/Arquivo Hilary Lister

Embora não tivesse nenhum movimento do pescoço para baixo, Hilary fez travessias impressionantes, pilotando um barco especialmente adaptado às suas limitações.

E — o que era ainda mais impressionante - sozinha a bordo, sem ninguém para ajudar a pilotar o barco — clique aqui para ler esta incrível história de superação, mesma sensação que sente, agora, a gaúcha Adriana Frank.