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Carro que escapou de naufrágio hoje leva noivas ao altar em Portugal
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Com exceção de um ou outro convidado mais atento, ninguém, nem mesmo o casal de noivos, costuma notar certo detalhe nos casamentos organizados por uma empresa especializada de Portugal, cujos protagonistas optam por chegar à cerimônia a bordo de um pequeno, simpático e colorido automóvel: o próprio veículo que conduz os noivos.
Trata-se de um automóvel da marca Nash, modelo Metropolitan, construído na Inglaterra no final dos anos de 1950, que, por suas características e irreverências, sobretudo para a época (cores alegres, rodas parcialmente encobertas pela carroceria, etc), mais parece saído dos desenhos animados do passado.
Um carrinho, realmente, curioso.
Mas, bem mais interessante do que as peculiaridades de todos os Nash Metropolitan é a história que há por trás daquele veículo em particular — porque ele é um dos "sobreviventes" do naufrágio de um navio na costa portuguesa, 65 anos atrás, fato que só os convidados mais idosos costumam recordar.
Um carro com uma história para contar
O automóvel em questão é um dos "Nash do Hildebrand", como aqueles "veículos engraçadinhos" foram apelidados em Portugal, já que todos eles, não mais que 60 unidades, chegaram acidentalmente ao país em consequência do naufrágio do navio inglês Hildebrand, na costa de Cascais, cidade vizinha à Lisboa, em setembro de 1957.
Trata-se de um automóvel com uma história para contar. E isso costuma empolgar ainda mais os noivos, quando ficam sabendo do passado daquele carro.
Encalhou perto da praia
O Hildebrand, um misto de navio de carga e passageiros, vinha de Liverpool, na Inglaterra, com destino a Belém do Pará, Manaus, Caribe e Estados Unidos, quando, durante uma escala em Portugal, na manhã de 25 de setembro de 1957, encalhou a míseros 50 metros da costa de Cascais, por conta de um denso nevoeiro que não permitiu ao seu capitão identificar a região onde estava.
Na ocasião, houve ainda a agravante de que o navio não possuía radar, equipamento tido como "supérfluo" pela empresa dona do Hildebrand, e estava se aproximando de uma área em que as bússolas das embarcações costumavam ser afetadas, por influência de rochas magnetizadas, típicas da região.
Restaurante pediu socorro
O encalhe aconteceu tão perto da costa que o pedido de socorro foi feito pelo dono de um restaurante da orla de Cascais, que viu surgir, durante uma brecha no nevoeiro, um grande navio espetado nas pedras bem diante do seu estabelecimento.
Tamanha proximidade, aliada ao fato de que o mar estava bem calmo no dia do acidente, permitiu que todos os 167 passageiros fossem rapidamente desembarcados, com a ajuda de pescadores da região, e ninguém se feriu no episódio.
Começou a encher de água
A bordo, ficaram apenas os tripulantes do Hildebrand, entre ele o deprimido capitão inglês Thomas Williams, que, mais tarde, seria julgado e considerado culpado pelo acidente, fato que o levou a abandonar a profissão. Com a ajuda de um rebocador, eles tentariam remover o navio, quando a maré subisse.
Mas o plano não deu certo e o Hildebrand, que media 133 metros de comprimento, nunca mais conseguiu se livrar das pedras nas quais ficara espetado.
O máximo que se conseguiu na frustrada tentativa de resgate foi que o navio girasse sobre as pedras, aumentando ainda mais os rombos no seu casco, que logo começou a encher de água.
Todo mundo de olho na carga
Também com o movimento de rotação do casco, ondas começaram a açoitar o navio imobilizado, gerando explosões de água que encantavam os curiosos, que passaram a chegar às pedras da orla para acompanhar o espetáculo — mas também de olho na eventual carga que o navio transportava.
Durante dias, enquanto todos os passageiros eram mandados de volta aos seus países de origem, as tentativas de desencalhe do Hildebrand continuaram, bem como as caravanas de moradores da região, em busca — quem sabe? — de algo que pudesse ser extraído do cada dia mais inevitável naufrágio.
Iam para os EUA. Ficaram em Portugal
Até que, após muitas tentativas, o capitão deu o navio como perdido e autorizou o desembarque de toda a sua carga, que incluía (além de um cavalo, um casal de porcos e uma gaiola com periquitos), muitos alimentos, medicamentos, produtos químicos, tubos de aço, maquinários, alguns tratores e nada menos que 60 automóveis zero quilômetro Nash Cosmopolitan — então um dos carros mais desejados do mundo, pela sua irreverência e tamanho reduzido, duas coisas raras nos veículos dos anos de 1950.
Os automóveis haviam sido construídos pela fábrica inglesa Austin, sob encomenda da marca americana Nash, e não se destinavam a Portugal — e sim aos Estados Unidos.
Mas por ali ficaram para sempre, após serem retirados do navio com a ajuda de guindastes e permanecerem meses guardados em um depósito, até que foram desaparecendo aos poucos de lá, em operações jamais devidamente explicadas.
Viraram atração no país
Em Portugal, onde não havia nenhum automóvel do tipo, os "Nash do Hildebrand" logo viraram atração nas ruas de Cascais e Lisboa, e motivo de cobiça, já que eram os únicos no país.
Poucos automóveis resistiram intactos ao resgate no mar, à maresia e o passar do tempo. Alguns, no entanto, sobrevivem até hoje.
Um carro especial
Dos 60 exemplares que havia no navio, restam meia dúzia de Nash Cosmopolitan em Portugal, todos nas mãos de colecionadores.
E um deles, o único que restou na versão conversível ("descapotável", para os portugueses), hoje conduz ao altar noivos que não fazem a menor ideia do passado daquele divertido carrinho amarelo — até que ficam sabendo da sua história através dos convidados mais idosos, ou pelo próprio dono do carro, que faz questão de ir de motorista nas cerimônias.
"E você acha que eu ia deixar outra pessoa dirigir uma joia dessas?", brinca o português João Teixeira, atual proprietário do carro, que foi deixado como herança pelo seu sogro, que comprou o veículo décadas atrás e o restaurou inteiro.
"Vou de chofer a caráter, com roupas dos anos 1950, porque o carro e os noivos merecem", diz João, que é comerciante por profissão e, eventualmente, aluga o seu Nash para casamentos na região onde mora, próxima à cidade de Fátima, por preços equivalentes a R$ 1.500 por cerimônia.
"Não faço isso pelo dinheiro e sim porque casamentos são ocasiões festivas, e ótimos momentos para exibir com o meu Nash", diz João, orgulhoso do carro que possui, e que, garante, não vende por dinheiro algum.
"O carro é parte da família. Temos um elevadíssimo valor sentimental por ele e nenhum dinheiro paga isso", diz o dono do veículo.
Chama mais atenção que a noiva
O Nash Metropolitan de João é um modelo de 1957, mesmo ano em que o naufrágio do Hildebrand "lançou" acidentalmente — e literalmente... — aquele tipo de automóvel em Portugal, ainda que de maneira totalmente involuntária.
Se o naufrágio sem vítimas do navio que trouxe aqueles automóveis para Portugal acabou tendo um final feliz, já que ninguém se feriu, o mesmo se espera dos casamentos que o Nash Metropolitan de João agora participa.
E, muitas vezes, chamando mais atenção que a noiva.
Outro caso bem mais famoso
O caso dos Nash que escaparam do naufrágio para virar objeto de desejo dos portugueses, 65 anos atrás, não foi, porém, o único episódio envolvendo navios acidentados e automóveis cobiçados em Portugal.
31 anos depois do desastre do Hildebrand, outro caso, em 1988, causou ainda mais furor entre os portugueses.
Foi quando o navio japonês Reijin encalhou diante da Praia da Madalena, no norte do Portugal, com uma carga ainda mais valiosa: nada menos que 5 mil automóveis Toyota zero quilômetro, que vinham do Japão para a Europa.
Durante semanas a fio, o navio encalhado próximo à costa levou milhares de portugueses para a beira da praia, todos sonhando com a possibilidade de resgatar um daqueles automóveis, embora não tivessem a menor ideia de como fazê-lo.
Até que, um dia, uma decisão da empresa dona do navio pôs fim às esperanças dos portugueses, e, ao contrário dos "Nash do Hildebrand", decretou um final totalmente frustrante para esta história, que pode ser conferida clicando aqui.
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