Topo

Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Morreu Monique, a galinha velejadora que mais viajou pelo mundo

Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Colunista do UOL

06/04/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Segundo pesquisadores, mais da metade da população mundial tem algum animal de estimação.

Até dias atrás, o francês Guirec Soudée, de 31 anos, era um deles.

Só que, ao contrário da esmagadora maioria dos habitantes do planeta, o bichinho que Guirec possuia não era um gato nem um cachorro: era uma galinha — que ele batizou de Monique.

Ter uma galinha como bicho de estimação não seria nada excepcional, não fosse o local onde Guirec (sempre com Monique ao seu lado) passava a maior parte do tempo: no mar, dentro de um veleiro, navegando mundo afora. Só ele e a galinha.

FOTO 0 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Um ovo atrás do outro

"Conheci Monique quando fiz uma escala com meu barco nas Ilhas Canárias, a caminho do Caribe, nove anos atrás. Ela era jovem, saudável, bonita e conclui que seria ótima companhia na viagem, porque galinhas não enjoam, não reclamam e ainda põem ovos, para ajudar no almoço", diz Guirec, que sempre jurou que jamais pensou em transformar a própria companheira de travessia em item do cardápio.

FOTO 1 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

"No começo, todo mundo me falou que não ia dar certo, que ela ia ficar estressada com o balanço do mar e pararia de pôr ovos. Mas, logo na primeira noite da travessia, ela botou um ovo. E depois outro. E mais outro. E não parou mais. Nunca comi tão bem a bordo do meu barco", recorda Guirec, hoje quase com lágrimas nos olhos - porque Monique morreu dias atrás, nove anos após aquele encontro, que o francês jura que mudou sua vida para sempre.

FOTO 2 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

"Eu sabia que não seria um relacionamento eterno, mas é difícil virar a página de um capítulo tão importante da minha vida", publicou o francês, entre emocionado e gaiato, nas suas redes sociais, ao anunciar a morte de Monique — que ele, carinhosamente, chamava de "Momo".

Virou até livro

Imediatamente após a notícia, choveram homenagens e condolências vindas do mundo inteiro, porque, desde que embarcou nas malucas viagens de Guirec, Monique virou uma espécie de celebridade náutica na França, com participações em programas de televisão (onde invariavelmente chegava aboletada sobre o ombro do velejador, feito um papagaio de pirata), e dois livros publicados — mas só um deles feito para crianças.

FOTO 3 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Uma galinha no Ártico

Do calor do Caribe, Guirec e Monique, a bordo do veleiro de 11 metros de comprimento do francês - mas estrategicamente acrescido de alguns poleiros - rumaram para o frio extremo do Ártico, onde passaram quatro meses trancados pelo mar congelado da Groenlândia, vivendo basicamente só de arroz e milho, respectivamente.

FOTO 4 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Lá, entre outras estripulias, que Guirec registrava em vídeos e postava na Internet, Monique andou de trenó, deslizou no gelo, tentou ciscar na neve e causou furor ao visitar uma escola na qual as crianças nunca tinham visto uma galinha - muito menos vinda do mar.

106 ovos a bordo

Durante os 130 dias em que o francês e sua galinha ficaram presos pelo gelo da Groenlândia, Monique botou nada menos que 106 ovos, o que salvou a dieta só de arroz de Guirec.

"Sem você, eu teria enlouquecido", escreveu o francês na sua página no Facebook, onde também recordou outras andanças pelo mar com sua companheira galinácea.

Como quando desistiu de visitar o Taití, sonho de onze em cada dez viajantes, porque a gripe aviária havia proibido a entrada de aves nas ilhas da Polinésia Francesa. Ou quando teve que passar um par de dias em uma cadeia no Canadá por não ter declarado a presença de uma galinha a bordo, na sua chegada ao país - muito menos uma galinha com nome de mulher, o que deixou os fiscais da imigração ainda mais confusos na hora de inspecionar o barco do francês e procurar pela tal "Monique".

Volta ao mundo velejando

Após a temporada no Ártico, não satisfeitos com as temperaturas abaixo de zero do Polo Norte (para que Monique não ficasse com suas penas arrepiadas de frio, Guirec improvisou um casaquinho com uma velha meia de lã), os dois resolveram dar a volta ao mundo de cima para baixo, descendo até o ponto oposto do planeta, a Antártica - onde passaram uma nova temporada entre blocos de gelo, montanhas de neve e nenhuma minhoca.

FOTO 5 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Mas nada parecia incomodar Monique, que se divertia bicando peixes-voadores que caiam no convés do barco ou ciscando a areia das praias, nos desembarques.

Ela foi onde você jamais irá

FOTO 6 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Quando surgia alguma tempestade no mar, Monique corria para o galinheiro — quer dizer, a cabine do veleiro - ou ficava aboletada sobre uma espécie de ninho, feito com os cabos enrolados do barco, cacarejando baixinho - e não berrando escandalosamente, feito uma galinha, ainda que ela fosse exatamente isso.

Durante anos, Monique viveu com suas penas ao vento, usando os cabos e amuradas do veleiro como poleiros, e visitou lugares que 99,9999% da população mundial - inclusive você! - jamais irá conhecer, muito menos pelo mar.

Com isso, contrariou a lógica de que navegar não era coisa pro seu bico.

O retorno à Europa só aconteceu cinco anos depois daquele primeiro encontro, o que rendeu a Monique o título de a galinha mais viajada do mundo. Ou, pelo menos, a única da espécie que passou tanto tempo dentro de um barco sem acabar na panela.

No mar ou na ilha

FOTO 7 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Quando não estavam navegando, Guirec e Monique dividiam uma casa em pequena ilha da costa da Bretanha: ele planejando novas travessias, ela correndo atrás de siris na praia, enquanto aguardavam a hora de partir de novo.

Mas não deu tempo. Porque Monique morreu antes, ao atingir a idade limite de todas as galinhas: entre 9 e 10 anos.

Um novo mascote

Dias atrás, Guirec Soudée comunicou, nas suas redes sociais, a partida definitiva da velha companheira de travessias, mas não revelou a causa da morte da galinha - um eventual ensopado foi totalmente descartado.

Ao mesmo tempo, apresentou seu novo mascote e companheiro de bordo: Bosco, um vira-lata que conheceu no Alasca — e que tem tudo para entrar em frias ainda piores que Monique.

"Ele só tem dois defeitos", diz o francês. "Faz xixi no barco inteiro e não põe ovos. Por isso, nunca esquecerei a minha pequena Momo", diz o exótico velejador, que nunca se considerou "totalmente normal".

FOTO 8 Arquivo Guirec Soudee - Galinha velejadora - Arquivo pessoal/Guirec Soudée - Arquivo pessoal/Guirec Soudée
Imagem: Arquivo pessoal/Guirec Soudée

Com a total aprovação de Monique.

Faminto, mas dividiu tudo com o gato

Desde que o primeiro homem colocou um animal em um barco com outro intuito que não o de devorá-lo, que a estreita convivência entre homens e bichos (estreita mesmo, porque o espaço dentro de um barco é sempre mínimo) tem criado relações que vão bem além da simples companhia a bordo.

Um caso emblemático aconteceu seis anos atrás, quando o navegador polonês Zbigniew Reket passou sete meses à deriva no Oceano Índico, na companhia apenas de um gato, sem praticamente comida alguma a bordo.

Apesar da fome constante e insuportável, o pouco que ele tinha para comer (meio pacote miojo por dia) foi dividido, em partes iguais, com o animal durante todo o tempo, até que ambos foram resgatados, no dia 25 de dezembro de 2017 — o melhor presente de Natal que o polonês teve na vida (clique aqui para conhecer esta outra interessante história).