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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Baiano que quis entrar numa fria deu volta ao mundo pela pior rota possível

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

15/04/2023 04h00

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Cinco anos atrás, o baiano Bruno Baqueiro, então com 45 anos, tomou uma decisão que mudaria radicalmente sua vida.

Vendeu tudo o que tinha, exceto o pequeno apartamento onde morava, em Salvador, comprou um bom veleiro, de pouco mais de 12 metros de comprimento, e foi viver nele, sonhando em fazer grandes travessias pelos mares do mundo.

Duas semanas atrás, aos 50 anos de idade, após já ter navegado do Brasil até o Caribe e a Europa, ele finalizou mais um grande objetivo daquela decisão de mudar totalmente de vida: completou uma volta ao mundo velejando por uma das rotas mais difíceis que existem, no extremo sul do planeta.

E sozinho no barco, o que tornou sua longa travessia ainda mais difícil e cansativa.

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Imagem: Arquivo pessoal

"Eu precisava fazer essa viagem para ganhar autoconfiança, aprendizado e ter certeza de que era isso mesmo o que queria para a minha vida, o que, agora, sei que foi a escolha certa. Mas não dá para dizer que foi fácil", diz o velejador baiano, que, na semana retrasada, chegou com seu barco na cidade gaúcha de Rio Grande, completando assim seu retorno ao Brasil, de onde partiu em fevereiro do ano passado.

Mas, naquela época, o destino e objetivo da viagem eram outros...

Por que não dar a volta ao mundo?

Quando partiu do Brasil, a meta de Bruno era apenas cruzar o Atlântico até a África do Sul, de onde retornaria como participante de uma regata entre a Cidade do Cabo e o Rio de Janeiro, meses depois.

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Imagem: Arquivo pessoal

Lá, no entanto, ele descobriu que os custos para participar daquela competição eram altos demais para o seu mirrado bolso, e desistiu da regata.

Mas, como já estava do outro lado do oceano, resolveu, então, colocar em prática um velho sonho, que era, também, um enorme auto desafio: dar a volta ao mundo navegando sozinho pelo extremo sul do planeta, abaixo de todos os continentes, uma das rotas mais duras que existem, apelidada pelos velejadores de "40 Rugidores", por conta da latitude na qual ela se baseia (o paralelo 40 Sul, bem abaixo do Brasil, por exemplo), quanto a brutal intensidade dos ventos que nela "rugem" o tempo todo - daí o nome.

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Imagem: Reprodução

A rota dos ventos que rugem

"Não foi nada fácil, ventava forte dia e noite, por duas vezes o barco quase virou no mar, mas eu já sabia que seria difícil e precisava passar por esse aprendizado", diz o velejador, que nunca havia ido tão longe com um barco - muito menos em uma rota perigosa quanto aquela.

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Imagem: Arquivo pessoal

"Antes de partir, eu li muito a respeito, fiz um curso de navegação em tempestades, e me preparei psicologicamente para passar um bom tempo sozinho no mar, enfrentando ventos violentos, grandes ondas e muito frio. Era um desafio. O meu desafio pessoal dos 50 anos de idade. Por isso, fui. E voltei outra pessoa, mais paciente e tolerante, bem melhor do que quando parti", garante o velejador, que, agora, se prepara para partir de Rio Grande e retornar à Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro, de onde zarpou 14 meses atrás, completando assim oficialmente a sua volta ao mundo em solitário.

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Imagem: Arquivo pessoal

"Eu precisava entrar numa fria, para mostrar para mim mesmo que conseguiria dar a volta ao mundo pelas altas latitudes. Mas acho que nunca mais farei essa travessia, até porque nunca mais farei 50 anos de idade", brinca o velejador, bem-humorado como todo baiano costuma ser.

Vendaval dia e noite

No total, a viagem de Bruno somou quase 30 000 quilômetros no mar, durou cerca de 200 dias e teve apenas três paradas no caminho: uma nas Ilhas Mauricio, no oceano Índico, outra na Nova Zelândia e a última nas Ilhas Malvinas, todas para fazer pequenos reparos no barco e repor alimentos a bordo, o que ele fazia com prazer, já que no passado, Bruno, que é formado em ciência da computação, trabalhou também como cozinheiro.

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Imagem: Arquivo pessoal

"Nos piores dias, as rajadas de vento chegavam perto dos 100 km/h e zumbiam alto, gerando um barulho constante - os tais ventos rugidores", recorda Bruno, que foi gravando pequenos vídeos durante a viagem, que mostram bem as ondas e os ventos açoitando o barco.

Mar de sal grosso

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Imagem: Arquivo pessoal

"O barco também balançava bastante, por causa das ondas, que, às vezes, eram bem altas. Eu passava o tempo todo preso ao barco por um cinto de segurança, porque, se caísse no mar, morreria", conta o velejador, que chegou a enfrentar uma tempestade de granizo que durou três dias seguidos.

"As bolinhas de gelo pareciam que iam furar o barco, e me fizeram vestir quase todas as roupas que tinha no armário. Foram dias de sal grosso no mar", brinca o velejador, sempre bem-humorado.

"No mar, a gente logo aprende que toda tempestade, por pior que seja, uma hora passa. E isso me tranquilizava".

Meses sem ver ninguém

O curioso é que embora tenha viajado sozinho e passado semanas à fio sem encontrar viva alma por perto, já que a rota escolhida raramente é frequentada pelos barcos de passeio ("só vi um navio bem longe, em quatro meses de travessia do Pacífico", conta), Bruno é o típico baiano, que fala bastante e adora fazer novos amigos.

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Imagem: Arquivo pessoal

"Eu conversava comigo mesmo, pela câmera do celular, e compensava a ausência de novas amizades nas paradas, quando saia conversando com todo mundo. Falta mesmo, eu só senti de ter uma mulher por perto, mas isso eu já estou acostumado, porque quase sempre navego sozinho no barco", brinca Bruno, que não tem filhos nem nunca foi casado.

Viaja e leva a casa junto

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Imagem: Arquivo pessoal

Seu veleiro, batizado de "Arribasaia" ("nome de uma pimenta muito forte na Bahia, que faz as mulheres levantarem as saias para se abanar", explica Bruno, rindo) é uma pequena casa, com três quartos, sala, cozinha e banheiro, que ele mantém com o dinheiro que recebe do aluguel do apartamento onde morava, em Salvador.

"A diferença é que, com o barco, eu levo minha casa junto nas viagens, o que é ótimo, porque nunca gostei de ficar preso num só lugar", analisa Bruno, que, após vencer o desafio que impôs a si mesmo, agora planeja viagens bem mais prazerosas e tranquilas.

"Quero passar uns quatro ou cinco anos nas ilhas do Pacífico", diz. "O mar virou o meu lar", e, com o barco, posso ir para onde quiser, porque sempre estarei 'em casa'".

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Imagem: Arquivo pessoal

"Fiz a escolha certa, cinco anos atrás. Completar a volta ao mundo me deu ainda mais certeza disso".

Três outros brasileiros já fizeram

Apesar do tamanho do desafio, Bruno não foi o primeiro velejador brasileiro a dar a volta ao mundo pela parte mais baixa do planeta, onde a distância é bem menor, mas o mar, muito pior.

Antes dele, três outros navegadores brasileiros fizeram o mesmo percurso, também navegando em solitário, ainda que com diferenças no roteiro: Amyr Klink, André Homem de Melo e Isabel Pimentel - esta, a única mulher.

Jornal para aquecer o corpo

Nenhum, porém, ficou tão famoso ao vencer os temidos "ventos rugidores" quanto o próprio criador desta expressão, o velejador argentino Vito Dumas, considerado um dos mais improváveis navegadores que o mundo já teve, a começar pelo fato de que não planejava nada ao partir para suas viagens.

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Imagem: Reprodução

Quando ele decidiu dar a volta ao mundo pela mesma rota que o brasileiro acabou de fazer, não tinha sequer roupas adequadas para as temperaturas abaixo de zero que enfrentaria no caminho.

Mas o argentino resolveu isso forrando o corpo com folhas de jornal e foi em frente, até terminar a viagem — clique aqui para conhecer esta fabulosa história da volta ao mundo pela rota dos ventos rugidores, que, agora, tem mais um vitorioso: o baiano Bruno Baqueiro.