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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Operação secreta revela naufrágio de 129 anos: 'Tesouro congelado no tempo'

NOAA
Imagem: NOAA

Colunista do UOL

11/05/2023 04h00

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Quatro anos atrás, durante um trabalho de varredura do fundo da Baía Thunder, no Lago Huron, uma das cinco gigantescas porções de água doce que formam os Grandes Lagos Americanos, na divisa dos Estados Unidos com o Canadá, pesquisadores do Departamento Oceânico dos EUA — NOAA — encontraram o que, para eles, era uma espécie de tesouro: o casco naufragado, mas em perfeito estado, de uma escuna que ali afundara 125 anos antes, em 26 de setembro de 1894.

Apesar de estar debaixo d'água há mais de um século, a velha escuna, um tipo de barco a vela com casco de madeira muito utilizado no transporte de carga entre os portos americanos no passado, estava em tão bom estado de conservação (graças às águas doces e congelantes dos Grandes Lagos) que nem foi preciso recorrer a complexas pesquisas arqueológicas para determinar sua identidade.

Uma simples comparação entre as imagens captadas pelo robô submarino que fez a descoberta com os registros de naufrágios naquela baía no passado, deram a certeza de que o barco em questão era a Ironton, uma escuna cargueira cujo afundamento aconteceu sob circunstâncias raras, causando a morte de cinco dos seus sete ocupantes por um motivo ainda menos provável.

É uma descoberta quase histórica, especialmente pelo incomum grau de preservação da embarcação, e pela história que havia por trás daquele trágico naufrágio.

Mesmo assim, os pesquisadores contiveram a ansiedade em divulgar o achado, o que só fizeram agora, quatro anos depois.

Mas a demora na divulgação teve um bom motivo: evitar que curiosos passassem a visitar o barco afundado antes que ele fosse totalmente analisado pelos técnicos, embora o destino que será dado ao naufrágio seja justamente a visitação pública de mergulhadores, o que deve começar em breve.

Em posição de navegação

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Imagem: NOAA

Durante quatro anos, sob sigilo e longe dos olhos dos frequentadores habituais da baía, que fica no estado de Michigan, os pesquisadores filmaram, fotografaram e escanearam em três dimensões o barco afundado, que além de estar em magnífico estado de conservação, encontra-se em "posição de navegação", ou seja caprichosamente assentado no fundo do lago, com seus três mastros ainda em pé, sustentados por cordames, como se ainda estivesse navegando - um verdadeiro troféu para mergulhadores recreativos.

"Tínhamos que fazer todo o levantamento histórico do naufrágio antes que a descoberta se tornasse pública, porque, pelo seu magnífico estado, a Ironton é como uma cápsula congelada no tempo, uma rara oportunidade de voltar ao passado", disse a co-responsável pelo Thunder Bay National Marine Sanctuary — e diretora do Michigan History Center, maior museu de naufrágios dos Grandes Lagos —, Sandra Clark, ao explicar o por que da demora de quatro anos para tornar público o achado — veja abaixo um vídeo sobre a expedição.

Morreram por causa de um detalhe

Além de representar um achado arqueológico significativo, a descoberta da Ironton também ajudou a responder algumas perguntas perturbadoras sobre os momentos finais daquele barco, além de confirmar o que os dois únicos sobreviventes do naufrágio haviam informado ao jornais, na época — que todos os sete tripulantes poderiam ter sido salvos, não fosse um detalhe perverso: o bote salva-vidas, para o qual todos já haviam passado quando ficou claro que a Ironton afundaria, não foi desamarrado a tempo do casco, e acabou sendo sugado para o fundo do lago, junto com a escuna.

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Imagem: Reprodução

"Quando o bote foi puxado para dentro d'água, eu e outro marinheiro conseguimos subir para a superfície, mas nossos outros colegas, não", disse na ocasião William W. Parry, um dos sobreviventes do naufrágio, que foi causado pelo abalroamento da Ironton com outra embarcação, após a escuna ter sido deixada à deriva, no meio da baía, pelo comboio no qual seguia.

Fazia parte de um comboio

A Ironton, com casco de madeira de 57 metros de comprimento, era uma escuna-barcaça, um tipo de embarcação que na época era usada como simples compartimento extra de carga para os navios a vapores, então recém-implantados nos Grandes Lagos.

Embora tivesse mastros, velas e capacidade de navegar de forma independente, a escuna seguia a reboque nos vapores, feito uma espécie de "vagão" em um trem aquático.

No dia do seu naufrágio, era puxada pelo vapor Charles J. Kershaw, juntamente com outra escuna, a Moonlight.

Mas, na noite daquele 26 de setembro, em meio a um forte vendaval em um trecho particularmente perigoso da baía, conhecido como Shipwreck Alley (algo como "Beco do Naufrágio"), as caldeiras do vapor subitamente pararam de funcionar, deixando o comboio à deriva.

Deixada à própria sorte

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Imagem: NOAA

Temendo uma colisão entre as duas escunas que vinham sendo rebocadas, por causa da ventania, o capitão da Moonlight soltou o cabo que o atava à Ironton, deixando-a totalmente à deriva.
O vento, então, passou a empurrar a escuna para longe do comboio, e na direção de outro vapor que vinha no sentido oposto, o Ohio, com 16 tripulantes a bordo.

O choque foi inevitável. Até porque o capitão da Ironton, Peter Girard, não tinha velas nem motor para tentar desviar — e, na escuridão da noite, os tripulantes do Ohio só notaram a presença da escuna quando já estavam praticamente em cima dela.

A colisão abriu um rombo de mais de três metros de diâmetro no casco do vapor, que afundou quase de imediato — só deu tempo de seus ocupantes passarem para o bote salva-vidas, que, depois, foi resgatado pela própria escuna Moonlight, que, a despeito do mau tempo, seguiu atada ao vapor que a rebocava.

Já a Ironton, danificada apenas na parte onde houve a colisão, mas enchendo de água aos poucos, continuou sendo empurrada pelo vento por mais de uma hora, até que, inundada, acabaria afundando em outra parte da baía — mas não sem antes permitir que seus sete tripulantes passassem para a segurança do bote salva-vidas, que, como de hábito, foi colocado na água ainda amarrado ao casco da escuna moribunda.

Foi quando o pior aconteceu.

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Imagem: NOAA

Quando tudo indicava que aqueles sete homens escapariam sem nenhum contratempo do naufrágio, veio a face cruel do destino: numa fração de minuto, a Ironton mergulhou feito uma pedra no lago, levando junto o bote salva-vidas, ainda atado à sua popa — e com toda a tripulação dentro dele.

Não deu tempo de soltar a corda.

Depoimentos sob suspeita

Só Parry e outro marinheiro sobreviveram, e veio deles os únicos testemunhos do que aconteceu com os outros cinco tripulantes da Ironton, embora, a princípio, nem todos tenham acreditado nos seus depoimentos — teriam eles se recusado a salvar os companheiros, em nome da própria sobrevivência?

Detalhe revelador

A dúvida pairou sobre os Grandes Lagos por 125 anos, até que, em 2019, dois anos após terem sido encontrados os restos do vapor Ohio, a equipe de pesquisadores da NOAA localizou, também, o casco submerso da Ironton, e — detalhe mais que revelador —, ainda preso a ele estava o bote salva-vidas.

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Imagem: NOAA

Os dois sobreviventes não haviam mentido sobre o infortúnio que vitimou a maior parte da tripulação da Ironton, quando todos pareciam já ter escapado do naufrágio.

Mais de um século depois, a descoberta do melancólico bote ainda amarado ao casco da escuna submersa inocentou suas almas.

O Titanic dos Grandes Lagos

Pesquisadores estimam os Grandes Lagos Americanos, maior volume de água doce represada do planeta, escondam mais de 200 naufrágios ainda não descobertos.

Muito já foram encontrados, mas, por conta das grandes profundidades, quase sempre as descobertas se limitam a um comunicado e uma celebração entre a equipe responsável pelo achado.

Foi assim, por exemplo, com o mais famoso naufrágio da história dos Grandes Lagos, o do navio cargueiro Edmund Fitzgerald, que se partiu ao meio durante uma tempestade, em novembro de 1975, matando todos os seus 29 tripulantes, cujos corpos jamais foram encontrados — clique aqui para conhecer a história do "Titanic dos Grandes Lagos", como ele passou a ser chamado.

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Imagem: Wikipedia

Nada será retirado

"Nosso interesse não é retirar nada dos naufrágios, mas apenas documentá-los, como fizemos com a Ironton", explica Jeff Gray, superintendente do Santuário Marinho Nacional de Thunder Bay, que, agora, se prepara para liberar a visitação de mergulhadores à escuna naufragada, mediante uma série de regras — entre elas, também a de não retirar nada do local.

A medida faz parte de uma lição aprendida com os muitos erros do passado, quando diversos naufrágios encontrados nos Grandes Lagos foram saqueados com outros propósitos bem menos nobres do que o estudo da História.

O caso mais emblemático foi o da também escuna Alvin Clark, encontrada por um mergulhador falido, chamado Frank Hoffmann, em 1967, que vislumbrou no achado uma maneira de ficar rico.

Barco histórico virou escombros

Como o barco também estava em ótimo estado de preservação, Hoffmann decidiu resgatar a escuna do fundo do lago, colocou-a na margem e passou a cobrar ingresso dos visitantes, como uma espécie de museu vivo.

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Imagem: Wikipedia

Mas o que ele não sabia é que, após tanto tempo debaixo d´água, o casco da escuna não poderia mais ter contato direto com o ar da superfície, o que fez acelerar sobremaneira o seu apodrecimento — e, com ele, o desinteresse dos visitantes.

Em pouco tempo, a centenária escuna Alvin Clark virou uma pilha de escombros, que, depois, ainda foram soterrados para a construção de um empreendimento imobiliário — clique aqui para conhecer esta história, que mudou radicalmente a maneira como hoje os pesquisadores americanos lidam com velhos barcos afundados.

"Por isso, jamais cogitamos retirar a Ironton de onde ela está", diz o responsável pelo achado.

"Mas, quem quiser, poderá mergulhar e ver um pedaço da História dos Grandes Lagos, no exato local onde tudo aconteceu".