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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Réplica de barco do século 18 salva dois velejadores: 'Que época estamos?'

David Moeneclaey
Imagem: David Moeneclaey

Colunista do UOL

13/05/2023 04h00

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Duas semanas atrás, quando faziam uma travessia com um pequeno veleiro entre as cidades costeiras de Cherbourg e Camaret, na França, os velejadores franceses David Moeneclaey e seu amigo Simon viveram uma experiência pra lá de curiosa - e que os fez imaginar que haviam voltado no tempo.

Quando o leme do barco quebrou e os dois ficaram à deriva, David pegou o rádio e pediu ajuda, a algum outro barco que estivesse nas proximidades.

A resposta veio rápida: "Estamos indo socorrê-los".

Logo, surgiu um pontinho na linha do horizonte, vindo na direção do barco dos franceses.

Mas, na medida em que aquele pontinho foi se aproximando e revelando seu formato, David e Simon se entreolharam, com perplexidade.

Porque o barco que se aproximava para resgatá-los parecia saído dos livros de História do passado: tinha casco de madeira, grandes mastros, muitas velas e cordas por todos os lados - uma típica embarcação do século 18.

"Em que época estamos?", perguntaram-se os franceses, entre aliviados e confusos.

O passado se aproxima

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Imagem: David Moeneclaey

No meio da tarde do último dia 25 de abril, David e Simon estavam navegando com um pequeno veleiro de fibra de vidro bem longe da costa, a cerca de 90 quilômetros do litoral francês, quando o leme do barco quebrou. David, então, pediu ajuda pelo rádio, e logo teve uma resposta positiva. "Somos um veleiro bem maior que o seu, e vamos rebocá-lo", ouviram os franceses. Mas o alívio logo deu lugar à perplexidade, quando eles viram surgir no horizonte o que parecia ser um barco de madeira de séculos atrás, com grandes mastros e muitas velas. E era isso mesmo. Ou quase...

Não acreditaram no que viram

O barco que veio socorrer os franceses era o Götheborg, uma réplica fiel de um dos principais navios mercantes do século 18: a original Götheborg, construída pouco antes da metade dos anos de 1700, que atuou fortemente na época da Companhia Sueca das Índias Orientais - recorda dos tempos de escola? Os franceses custaram a acreditar no que viram chegar.

Como uma volta no tempo

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Imagem: David Moeneclaey

"Foi um momento muito estranho. Nos perguntávamos se não estávamos sonhando e em que época, afinal, estávamos, porque aquele barco era puro passado. Foi como voltar no tempo. Quando pedimos ajuda, esperávamos recebê-la de outro veleiro; não de uma nau do século 18!", contou David, visivelmente impressionado.

Reboque à distância

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Imagem: David Moeneclaey

No resgate, uma das maiores preocupações, tanto dos velejadores franceses quanto da tripulação do Götheborg, foi quanto a brutal diferença de tamanho entre os dois barcos - sem falar do estilo e da época... Enquanto o veleiro dos franceses não passava dos 9 metros de comprimento, a réplica sueca, feita em escala 1:1 com o Götheborg original, media quase 50 metros. Por isso, um longo cabo foi lançado na água e amarrado ao veleiro, que passou a ser rebocado a certa distância.

O velho puxa o novo

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Imagem: Linus Hjelm

Foi como uma inversão histórica de papéis: uma embarcação primitiva do século 18 rebocando um moderno veleiro do século 21 - e não o contrário, como seria mais plausível de ocorrer. Durante todo o tempo, os tripulantes da Götheborg se revezaram no monitoramento do pequeno veleiro a reboque, que sacudiu um bocado, mas chegou são e salvo.

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Imagem: Linus Hjelm

Saiu totalmente do rumo

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Imagem: Linus Hjelm
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Imagem: Reprodução

O reboque durou até o dia seguinte, e implicou em uma mudança radical de rumo da Götheborg, que originalmente estava cruzando o Canal da Mancha, na direção da Inglaterra, para mais uma escala na longa expedição que vem fazendo entre portos europeus, a fim de divulgar o jubileu dos 400 anos da cidade de Gotemburgo, que acontecerá no próximo dia 2 de junho. Lá, a Götheborg terminará sua viagem, com uma salva de tiros de canhões (que ela também possui a bordo, como a Götheborg original), e será a principal atração da celebração.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Mensagem de agradecimento

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Imagem: Linus Hjelm

Com o veleiro a reboque, a Götheborg retornou à costa da França, a fim de entregá-lo em algum porto. No dia seguinte, um barco do serviço marítimo francês veio resgatar o veleiro e seus ocupantes, que se despediram dos tripulantes do vetusto barco com uma mensagem de agradecimento: "Não é só este incrível barco que preserva as melhores tradições marítimas", disse David, na despedida. "Sua tripulação também encarna os mais nobres valores dos verdadeiros homens do mar". Com o resgate, a Götheborg ganhou dois novos admiradores eternos: aqueles dois surpresos velejadores franceses.

Maior veleiro de madeira do mundo

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Imagem: Ake Fredriksson

A Götheborg não é apenas uma réplica mais que fiel de um navio mercante do século 18. É, também, o atual maior barco à vela de madeira do mundo, com 47 metros de comprimento por 11 de largura. Assim como Götheborg original, tem cinco deques, três mastros e mais de 2 000 m2 de tecido rústico que dá forma a 18 grandes velas, que exigem quilômetros de cordas para serem manuseadas. São tantas cordas à mostra, que, vista de dentro ou de fora, a Götheborg mais parece uma teia de aranha.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Construído da mesma forma

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

A Götheborg foi construída ao longo de oito anos, sem a ajuda do projeto original (que se perdeu no tempo), mas utilizando os mesmos materiais e os mesmos métodos construtivos da época, o que implicou em recriar ferramentas de 300 anos atrás. Seu leme, por exemplo (interno, como era hábito na época, com o piloto sendo "guiado" pelas informações que lhe eram passadas pelos oficiais, no convés), usa o mesmo tipo de corda feita de pele de alce, usada na Götheborg original.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Barco orgulho da Suécia

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

A réplica da Götheborg ficou pronta em 2005, e teve como madrinha de batismo a Rainha Silvia, da Suécia, filha de mãe brasileira e que viveu no Brasil, na infância. Na ocasião, a inauguração do barco virou acontecimento na Suécia, levando multidões ao porto de Gotemburgo, local ao qual o passado da Götheborg original está intimamente ligado - porque foi ali que ela afundou, 278 anos atrás.

Não se sabe por que afundou

Em 12 de setembro de 1745, quando retornava de sua terceira viagem à China, trazendo, sobretudo, peças de porcelana, a Götheborg encalhou em um conhecido banco de areia e pedras submersas existentes a míseros metros do porto da cidade que a batizou, e por ali ficou. Para sempre. Não houve vítimas e praticamente toda a carga foi resgatada. Mas o orgulho do povo sueco ficou maculado com o episódio.
A teoria hoje mais aceita é que a poderosa embarcação tenha sido vítima de um fenômeno natural da região, chamado "águas mortas", que altera a densidade da água do mar, dificultando a manobrabilidade dos barcos. Mas nunca ficou claro o motivo do acidente.

Decidiram construir uma réplica

A Götheborg original resistiu mais de 100 anos encalhada bem diante da cidade, até que virou escombros - que, com o tempo, foram soterrados debaixo d´água. Mas seus restos foram encontrados em 1984, e permitiram analisar as formas (até então limitadas a antigos quadros), dimensões (através do que restou do casco encravado na areia) e técnicas construtivas da época, o que estimulou os suecos a criarem uma réplica do famoso barco, exatamente como ele fora construído.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Esteve no Brasil

Ao ser lançada ao mar, a réplica da Götheborg recriou as viagens da nau original e navegou até a China, em uma expedição que durou quase dois anos, visitou cinco continentes e passou até pelo Brasil, onde o gigantesco barco ficou dez dias em exposição, no porto de Recife. Na ocasião, como de hábito, os tripulantes chegaram à capital pernambucana à caráter, vestidos com trajes marinheiros do século 18.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Pagam para trabalhar

Desde então, a tripulação da mais original embarcação da Suécia - e uma atração de primeira grandeza por onde passa - é composta por duas dezenas de profissionais especialmente preparados para conduzir um barco como seus antepassados, mas auxiliados por cerca de 50 voluntários, que se candidatam a trabalhar (duro!) durante as viagens — e pagam por isso. Foram eles, os tripulantes-voluntários, que ajudaram a resgatar os velejadores franceses no mar, duas semanas atrás.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Antigo, mas com tecnologia

As únicas exceções ao projeto original aplicadas na réplica da Götheborg dizem respeito à segurança da navegação, como instrumentos e equipamentos - como o rádio comunicador que permitiu ao capitão do barco sueco receber o pedido de socorro dos velejadores franceses. O objetivo - óbvio - é evitar acidentes, como o que aconteceu com a própria Götheborg original, e dar segurança aos tripulantes-pagantes nas navegações, já que muitos deles nem marinheiros são.

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Imagem: Svenska Ostindiska Companiet

Outra réplica famosa

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Imagem: Reprodução

Os recursos tecnológicos também são uma forma de tentar evitar tragédias, como a que acometeu outra réplica de outra famosa nau do passado, a fragata inglesa HMS Bounty, que foi construída para seu usada no famoso filme homônimo, estrelado por Anthony Hopkins e Mel Gibson, sobre o motim mais famoso da história,

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Imagem: Reprodução

Acabou em tragédia

Após as filmagens, a réplica da HMS Bounty foi vendida e passou a fazer passeios e travessias, com jovens tripulantes e turistas. E foi em uma destas viagens, em 2012, que o barco afundou, durante uma violenta tempestade na costa leste dos Estados Unidos, causando a morte de duas pessoas e deflagrando uma das mais difíceis operações de resgata da história da Guarda Costeira Americana - embora, neste caso, a culpa tenha sido toda do capitão do barco, que ignorou um furacão que se aproximava (clique aqui para rever este triste caso).

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Imagem: USCG

Enquanto o comandante da réplica da HMS Bounty acabou entrando para a história pela sua imprudência, o capitão da Götheborg preferiu trilhar o caminho oposto e salvar a vida daqueles dois (abismados) franceses.