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Velejadora que salvou a vida de adversário no mar vence a volta ao mundo
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Era madrugada de 18 de novembro do ano passado, quando o finlandês Tapio Lehtinen acordou com um estrondo no seu barco.
Quase instintivamente, ele pulou da cama. Mas, ao tocar o assoalho, já pisou em água. Muita água, que jorrava da frente destruída do seu veleiro.
Experiente, Tapio, de 65 anos, nem perdeu tempo analisando o problema, ou tentando estancar a inundação. Seria em vão. O mar venceria de qualquer forma.
800 km mar adentro
O máximo que ele fez foi juntar rapidamente alguns itens de emergência (água, víveres, telefone via satélite, etc.) e passar para a balsa salva-vidas.
E ficou observando seu barco afundar, no meio do desértico oceano austral.
Tapio estava a mais de 800 quilômetros da terra firme mais próxima, e bem distante dos demais velejadores, que, assim como ele, participavam da regata de volta ao mundo Golden Globe, que começou em setembro do ano passado e ainda não terminou totalmente — embora já tenha um vencedor.
Salvo pelo telefone via satélite
A bordo da balsa, uma espécie de jangada inflável, o finlandês fez a única coisa que poderia fazer naquela situação: pegou o telefone via satélite, rezando para ele funcionar naquele fim de mundo cercado de água por todos os lados, e chamou a Central de Operações da competição, relatando o naufrágio — que ele nunca soube o motivo.
Deu certo.
Pedido de ajuda
Em questão de minutos, o telefone satelital do barco da velejadora sul-africana Kirsten Neuschafer tocou, a quase 200 quilômetros de onde Tapio estava, tentando se equilibrar na balsa, em meio a ondas entre dois e três metros de altura.
Era a Central da regata, informando a velejadora sobre o dramático naufrágio do barco de um de seus adversários, e pedindo que ela fosse socorrê-lo, já que era a competidora que estava mais próxima do local - ainda que a duas centenas de quilômetros de distância, no mar aberto.
35 horas em busca do colega
Kirsten não pensou duas vezes: imediatamente, quebrou o lacre do GPS do seu barco (equipamento que visava impedir que os competidores burlassem o roteiro), ligou o motor (algo impensável em uma competição de barcos à vela) e navegou sem parar por 35 horas, até chegar ao ponto indicado do náufrago.
E não achou nada...
Um abraço emocionado
Durante um bom tempo, a sul-africana, angustiada, ainda que já conversando com seu colega através do telefone via satélite, vasculhou o mar, em busca da balsa salva-vidas do finlandês. E não a encontrou.
Só quando Tapio viu uma pequena vela na linha do horizonte e passou a orientar, pelo aparelho, o rumo que Kirsten deveria tomar, é que os dois se encontraram. E se abraçaram, emocionados.
"Nunca imaginei q ue fosse tão difícil achar uma pessoa no mar, mesmo sabendo exatamente onde ela está", disse, aliviada, a sul-africana ao competidor recém-resgatado, enquanto compartilhavam uma dose de rum e aguardavam a chegada de um navio, que também desviara seu rumo a fim de socorrer o velejador, quando ficou sabendo do naufrágio.
Só então (e após responder enxurradas de elogios dos demais participantes da regata com uma dose cavalar de humildade — "Não fiz nada que todos vocês também não fariam..."), Kirsten retomou seu rumo na competição — na qual, mais tarde, colheria algo igualmente extraordinário.
Surpresa na chegada
Cinco meses após aquele episódio, no início da noite do último dia 27 de abril, após passar duas semanas boiando feito uma rolha no meio do Atlântico, por conta da absoluta falta de ventos na região da Linha do Equador — situação que a fez perder todas as esperanças de terminar a competição bem classificada —, Kirsten, finalmente, chegou ao porto francês de Les Sables-d'Olonne, onde teve uma notícia inesperada: havia vencido a prova!
"Vocês estão falando sério?", disse, ao ouvir dos organizadores a surpreendente notícia.
E era verdade.
Ela venceu com folga
Mesmo tendo interrompido sua marcha e desviado a rota a fim de resgatar aquele adversário no mar (fato que levou os organizadores da regata a descontar isso do seu tempo acumulado), Kirsten vencera, com folga, a Golden Globe 2022/2023.
Ainda perplexa com a notícia, a sul-africana pegou uma vuvuzela (uma espécie de corneta comprida de plástico, muito usada no seu país nas comemorações esportivas — lembram-se da Copa do Mundo na África do Sul?), e entrou no porto assoprando a plenos pulmões o barulhento instrumento, debaixo de uma chuva de aplausos e fogos de artifício.
Primeira mulher a vencer a Golden Race
Kirsten Neuschafer tinha motivos de sobra para comemorar: com a vitória, tornara-se a primeira mulher a vencer uma regata de volta ao mundo em solitário (ou seja, sozinha a bordo de um barco), por uma rota que contornava os três principais cabos geográficos do planeta — um percurso duro e dificílimo, como bem comprovara o naufrágio do barco do finlandês Tapio Lehtinen, que só não terminou em desgraça porque ela apareceu a tempo para ajudar.
Regata retrô
A Golden Globe Race 2022/2023 — regata de Volta ao Mundo em solitário, sem escalas e que não permite nenhum tipo de ajuda externa aos velejadores —, desta vez, foi diferente.
Em vez de os competidores utilizarem barcos modernos e tecnológicos, como costuma acontecer em qualquer competição de alto nível, o caminho trilhado foi justamente o oposto disso: o da volta ao passado.
Como uma espécie de versão retrô da primeira circum-navegação do planeta com barcos à vela, tripulados por velejadores solitários e amadores, ocorrida em 1968, todos os competidores usaram veleiros antigos, e navegaram como se fazia 55 anos atrás, com bússolas e compassos.
Não foi permitido o uso de nenhum equipamento eletrônico de navegação, nem mesmo GPS. Mas, em nome da segurança, cada barco era monitorado à distância pelos organizadores, e levava um telefone via satélite, principal responsável por salvar a vida do finlandês que virou náufrago — além do gesto heroico de Kirsten Neuschafer, claro.
"Só queria completar o percurso"
O veleiro de Kristen, por exemplo, o Minnehaha, de pouco mais de dez metros de comprimento, foi construído nos anos de 1980, e passou dois sendo reformado, pela própria sul-africana, a fim de poder participar da regata. Mas Kirsten não acalentava esperanças de terminar a prova bem classificada, até porque jamais havia ido tão longe, pilotando um barco.
"Eu só queria completar o percurso e dizer que dei a volta ao mundo", disse a sul-africana, ao desembarcar no porto francês, de onde zarpara, junto com os demais competidores - todos homens -, 235 dias antes.
Até agora, só três barcos chegaram
Kirsten, de fato, não estava entre os favoritos da prova. Mas, em uma competição que está mais para um desafio mental do que uma simples corrida de barcos (meses sozinhos no mar, sem receber ajuda, nem podendo parar em lugar algum), seu histórico de aventureira nata falou mais alto.
Enquanto, um a um, seus adversários foram desistindo ou ficando para trás (até agora, só três barcos completaram a longa jornada, dos 16 que a iniciaram), Kirsten manteve a mesma perseverança que se habituou a ter nas ousadas empreitadas que fazem parte do seu currículo.
Um histórico de aventuras
Entre outras façanhas, Kirsten, hoje com 41 anos, já atravessou de ponta a ponta o continente africano com uma bicicleta, guiou equipes pelo gelo da Antártica, treinou cães para puxar trenós no frio congelante do Ártico, e, por várias vezes, se ofereceu para trabalhar de graça em navios, a fim de poder viajar pelo mar.
Com tamanha vocação para a aventura, passar sete meses sozinha em um veleiro, navegando dia e noite sem parar, até que não foi sofrido demais para a única mulher velejadora da competição.
E que acabou chegando na frente de todos os homens.
100 livros a bordo
"Li muito durante a viagem", contou, com simplicidade, na chegada, exibindo os mais de 100 livros que havia nas estantes do seu barco.
Entre eles, um que o próprio Tapio Lehtinen havia escrito, narrando sua participação na Golden Race anterior. E outro, considerado um dos maiores clássicos da literatura náutica: "The Long Way" ("O Longo Caminho"), do velejador francês Bernard Moitessier, autor, no passado, de um feito improvável.
Desistiu na linha de chegada
Na primeira edição da primeira regata de volta ao mundo da história — aquela, de 1968, agora reeditada pelos barcos da Golden Globe Race — Moitessier liderava com larga margem, e já estava na reta final de chegada, quando tomou uma decisão inédita: deu meia volta, abandonou a prova — e a família —, e foi viver em uma ilha da Polinésia Francesa, de onde nunca mais saiu.
Farsa para vencer a prova
Com a desistência do francês, a vitória naquela competição — que, além da fama, renderia um bom prêmio em dinheiro — caiu no colo de outro competidor, o inglês Donald Crowhurst, um velejador endividado e de poucos escrúpulos, que havia tramado uma farsa para "vencer" a prova, sem sair de onde estava.
Como, na época, os recursos tecnológicos eram precários, cabia aos próprios competidores informar aos organizadores da prova sobre os seus avanços no mar.
Crowhurst resolveu, então, mentir ao registrar sua posição, dizendo que estava onde jamais havia passado.
Terminou em tragédia
Mas, com o passar do tempo, suas informações começaram a ser recebidas com desconfiança pelos organizadores da regata, e Crowhurst, temendo ser desmascarado, optou por um final igualmente inesperado. Mas trágico... — clique aqui para conhecer esta história, que chegou a virar filme, com o ator Colin Firth no papel do velejador trapaceiro, e marcou para sempre a primeira edição da regata de volta do mundo em solitário.
O azar de Crowhurst foi que, ao contrário do que aconteceu com o finlandês Tapio Lehtinen, Kirsten Neuschafer não estava no mar, para ajudar.
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