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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Como um naufrágio de 282 anos atrás se tornou o livro mais vendido nos EUA

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

25/05/2023 04h00

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Em 28 de janeiro de 1742, um grupo de esquálidos homens à beira da morte foi dar na remota vila de Rio Grande, no litoral do Rio Grande do Sul, a bordo de um precário barco de madeira, com uma extraordinária história para contar: a de como eles haviam vencido mais de 5.000 quilômetros de mar, com um barco improvisado, a fim de escapar de uma ilha deserta na qual passaram meses confinados, em uma desesperada tentativa de regressar à sua terra natal, a Inglaterra.

Eram náufragos do HMS ("His Majesty's Ship" - "Navio de Sua Majestade") Wager, uma das oito embarcações que haviam sido enviadas pela corte inglesa para a América do Sul com uma missão secreta: capturar um certo galeão espanhol abarrotado de ouro, que a Inglaterra, então em guerra contra a Espanha, queria se apoderar, a fim de enfraquecer o inimigo — e, claro, enriquecer ainda mais.

Mas, ao tentar dobrar o temível Cabo Horn, no extremo sul da América do Sul, durante uma tempestade, o HMS Wager desgarrou do restante da flotilha, enveredou pelos canais da Patagônia, bateu em uma pedra submersa e afundou próximo a uma ilha deserta, que, não por acaso acabaria sendo batizada de Ilha Wager.

Ali, os tripulantes desembarcaram para uma longa e sofrida temporada de fome, frio, penúrias, discórdias e intensos conflitos, o que levou parte do grupo a se rebelar contra o tirânico capitão da expedição, David Cheap, e decidir partir, deixando o comandante e seus aliados para trás, como uma espécie de motim.

Só 29 sobreviveram

Dos 81 homens que iniciaram aquela desesperada jornada, amontoados em um barco de pouco mais de 15 metros de comprimento, construído com pedaços de madeira retirados da embarcação naufragada, apenas 30 chegaram vivos à praia gaúcha — e um deles ainda morreu, de fraqueza e esgotamento, ao tocar a areia. Os demais, de tão fracos, ao cabo de três meses e meio no mar, comendo apenas o que conseguissem capturar, mal conseguiam caminhar.

Recebidos com compaixão pelos poucos habitantes da vila de Rio Grande, aquele grupo de sobreviventes do naufrágio do HMS Wager, liderado pelo ex-artilheiro da embarcação, John Bulkeley, que se rebelara contra o capitão da embarcação pela conduta rígida e punitiva dele na ilha (sobretudo após ele ter matado um dos marinheiros, por desobediência), receberam abrigo nas casas dos moradores, logo se recuperaram e foram transferidos para a Inglaterra, onde foram recebidos como heróis, uma vez que já eram dados como mortos.

Mas, quando isso aconteceu, seis meses depois, outro grupo de náufragos do HMS Wager, incluindo o capitão Cheap, chegou à costa do Chile, após terem sido resgatados da ilha por indígenas.

E a história que eles contaram era outra: aqueles 30 marinheiros que haviam desembarcado no Brasil não eram heróis — eram amotinados, e, de acordo com as regras da época, teriam que ser condenados.

Começava ali uma pendenga jurídica e moral, que é a base do novo livro do premiado autor americano David Grann, The Wager, número 1 na lista de best-sellers dos Estados Unidos, desde que foi lançado, no mês passado.

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Imagem: Divulgação

Pena de morte

Na obra, ainda sem data de lançamento no Brasil, Grann dedica uma parte da narrativa às dificuldades da navegação no século 18, e ao período que os sobreviventes do HMS Wager passaram na ilha, em plena convulsão. Já a outra parte conta o que aconteceu nos tribunais ingleses depois disso, com o embate entre o capitão Cheap e o líder dos amotinados, John Bulkeley, pela posse da verdade — uma história real, que mistura aventura, dramas, conflitos, superações e questões morais.

Enquanto, na ilha, os sobreviventes do HMS Wager lutaram (muitas vezes de maneira condenável, cometendo até canibalismos) contra a fome, o frio e os desmandos autoritários do comandante da expedição, na corte marcial inglesa a luta também foi de vida ou morte, já que nos dois casos (motim promovido pelo artilheiro Bulkeley, ou assassinato perpetrado pelo capitão Cheap), a pena também seria a forca.

Duelo de palavras

Na Corte, Bulkeley e Cheap passaram a duelar com palavras, já que a vida de ambos dependeria da história que cada um contassem — e da capacidade de convencer os jurados sobre a sua veracidade.

No entanto, um desfecho surpreendente (que convém não adiantar, para não estragar o prazer da leitura — embora o livro de Grann narre um fato histórico e conhecido) pôs fim ao caso da maneira mais embaraçosa possível.

E deu forma ao motim que nunca existiu.

Vai virar filme

Para escrever The Wager, Grann — que no passado já havia escrito o livro "A Cidade Perdida de Z", sobre o misterioso desaparecimento do explorador inglês Percy Fawcett, em 1925, quando buscava uma civilização perdida na Amazônia brasileira —, viajou até a remota Ilha Wager, na Patagônia chilena (onde chegou a encontrar restos de madeira da antiga embarcação inglesa), e levou dois anos pesquisando, debruçado sobre diários de bordo históricos, redigidos por sobreviventes dos dois grupos de náufragos.

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Imagem: Divulgação

"O que mais me fisgou nessa história não foi apenas o que ocorreu na ilha, com os dois grupos se digladiando pelo poder e sobrevivência, mas o que aconteceu quando eles voltaram para a Inglaterra e contaram suas diferentes versões na Corte Marcial", disse Grann, ao lançar o livro — que, a exemplo da sua obra anterior, Killers Of The Flower Moon, recém-transformado em filme, com lançamento previsto no Brasil em outubro, também irá para as telas, com a mesma dupla de sucesso: Martin Scorsese como diretor, e Leonardo Di Caprio no papel principal.

"Depois de travar uma guerra contra os elementos da natureza, os líderes dos dois grupos de náufragos tiveram que travar uma batalha contra a verdade, como uma espécie de embate de fakes news do século 18", resume o autor do livro.

Ilha de Robinson Crusoé

Quando naufragou naquela ilha chilena, após meses de provações no mar (que incluíram surtos de tifo e escorbuto, que dizimaram seus marinheiros — entre eles, até meninos de 6 anos de idade, como o futuro avô do famoso poeta inglês Lord Byron, John Byron, que, no entanto, sobreviveu a viagem ao naufrágio e ao polêmico resgate), o HMS Wager seguia na direção do arquipélago Juan Fernandes, na costa do Chile, de onde a frota partiria em busca do tal galeão abarrotado de ouro.

Mas o HMS Wager nunca chegou à esta ilha chilena, onde, ironicamente, 38 anos antes, um certo marinheiro inglês, de nome Alexander Selkirk, havia passado quatro anos sozinho, à espera de um resgate, fato que, mais tarde, inspirou o escritor Daniel Defoe a escrever sua obra-prima, sobre o fictício náufrago Robinson Crusoé — clique aqui para conhecer a história real que há por trás deste clássico da literatura mundial.

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Imagem: Editora Laemmert/Reprodução

Com a intrincada e instigante história do naufrágio do HMS Wager, Grann, um dos mais elogiados autores da atualidade, continua a anos-luz do nível de excelência do lendário escritor inglês.

Mas, talvez, também tenha produzido seu melhor livro.

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