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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Chineses são acusados de saquear navio da 2ª Guerra para vender como sucata

Museu Imperial da Guerra
Imagem: Museu Imperial da Guerra

Colunista do UOL

31/05/2023 11h15

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Uma intensa pendenga, envolvendo uma draga chinesa, o governo do Reino Unido e as autoridades marítimas da Malásia está em andamento, neste instante, na parte sul do Mar da China.

E o motivo são as fortes suspeitas de que a tal draga vem paulatinamente saqueando os restos de dois navios ingleses de combate afundados na Segunda Guerra Mundial, em busca não de elementos históricos, mas sim de pura sucata — o que equivale dizer que os restos dos navios estão sendo destruídos por guindastes, para a simples remoção do metal dos seus cascos.

Túmulos de guerra

Não seria um crime assim tão grave, não fossem dois detalhes: os naufrágios em questão estão dentro dos limites da zona marítima de exploração econômica exclusiva da Malásia (que não autorizou nenhuma exploração chinesa no local), e — bem mais relevante —, neles morreram mais de 840 marinheiros ingleses, cujos corpos jamais foram removidos dos navios naufragados.

"Tratam-se de túmulos de guerra, que deveriam ser respeitados e jamais saqueados", disse, recentemente, o diretor-geral do Museu da Marinha Real do Reino Unido, que definiu o ato como sendo o de "demolir sepulturas em um cemitério".

Três dias após Pearl Harbour

A draga em questão é a Chuan Hong 68, que, tempos atrás, também foi acusada de saquear os destroços de cinco outros navios da Segunda Guerra Mundial no mar da Indonésia. Já os navios ingleses que agora estariam sendo saqueados pelos chineses são o couraçado HMS Prince of Wales e o cruzador HMS Repulse, ambos vítimas de aviões japoneses em 10 de dezembro de 1941, apenas três dias após o ataque de Pearl Harbour.

Histórias do Mar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Uma draga no meio do mar

A acusação inicial sobre a ação ilegal chinesa foi feita pelo mergulhador malaio Hazz Zain, que, a partir de informações vindas de pescadores, foi ao local dos naufrágios e fotografou a draga chinesa em ação.

Os saques ilegais estariam sendo feitos desde o início deste ano, e já teriam removido diversas partes dos dois navios, como Zain comprovou com fotos feitas em um depósito em terra firme, para onde as peças estariam sendo levadas.

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Imagem: Hazz Zain/New Straits Times/Reprodução

Mas, por que os chineses estariam interessados em sucatas de velhos navios afundados há mais de 80 anos, já devidamente corroídos pelo tempo?

Qual o interesse dos chineses?

A resposta parece estar no material dos cascos daqueles navios: um tipo de aço que, por ter sido fabricado antes das explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, que marcaram o fim da Guerra contra os japoneses, em 1945, e dos testes nucleares que ocorreram na década de 1960, estaria 100% livre de radiação — e que, por isso, vale muito para certos setores da indústria, como fabricantes de equipamentos médicos e espaciais.

1 milhão de dólares ou muito mais

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Imagem: Reprodução

"Mesmo como simples aço, a sucata do HMS Prince of Wales pode valer um bom dinheiro, algo em torno de 1 milhão de dólares, sem falar em outros metais, como o cobre das tubulações e hélices, embora tudo isso não cubra o custo de uma operação como aquela. Já o aço sem contaminação, rende uma boa margem de lucro", avalia um especialista no assunto, ouvido pelo jornal malaio New Straits Times, que vem acompanhando de perto o imbróglio internacional no qual se transformou aquele suposto saque de dois navios ingleses por uma draga chinesa, em uma operação ilegal no mar da Malásia.

Munição encontrada no porto

A questão ficou ainda mais tensa no último domingo, quando as autoridades portuárias da Malásia detiveram uma embarcação chinesa, que não tinha autorização para atracar no porto de Johor, e nela encontraram restos de naufrágios e projéteis de canhões da época da Segunda Guerra Mundial, que, ao que tudo indica, saíram dos dois navios ingleses que estariam sendo saqueados pela draga Chuan Hong 68.

Com isso, os ingleses voltaram a carga nas reclamações e condenaram, uma vez mais, a "profanação" de sepulturas de seus ex-marinheiros.

"Maior profanação de túmulos do mundo"

"Este caso ilustra bem como os patrimônios históricos contidos no fundo do mares estão vulneráveis aos saqueadores de naufrágios", disse, no dia seguinte, o diretor do Museu da Marinha Real britânica, dando coro aquilo que os ingleses consideram como sendo a "maior profanação de túmulos do mundo" — e que, nos últimos tempos, estaria acontecendo em larga escala nos mares asiáticos, por conta de ações de empresas chinesas de resgates marítimos.

Outro caso também polêmico

Operações de resgate em antigos navios naufragados sempre costumam gerar polêmicas, sobretudo quando não autorizadas pelos governos dos países envolvidos.

Mas acontecem em larga escala, em todo o mundo.

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Imagem: S.S.Tilawa Foundation

Neste momento, outro navio afundado durante a Segunda Guerra Mundial — o cargueiro inglês SS Tilawa, achado recentemente por uma empresa inglesa no fundo do mar da costa leste africana — vem causando conflitos jurídicos entre o governo da África do Sul e a própria Inglaterra, mas por algo bem mais valioso do que apenas sucata: as 60 toneladas de prata que ele transportava, quando foi atingido por torpedos disparados por um submarino japonês, em novembro de 1942.

Mais de 2.000 lingotes de prata foram retirados dos escombros do navio pelo mergulhador inglês Ross Hyett, um caçador profissional de tesouros em naufrágios, dono da empresa responsável pela descoberta, que, no entanto, não comunicou o achado ao governo sul-africano, para quem a prata seguia, a fim de ser transformada em moedas.

Assim sendo, o governo da África do Sul se julgou no direito de exigir a devolução da prata ao país, o que, no entanto, um juiz da corte inglesa negou, alegando que aquela questão era meramente comercial, e não de soberania de Estado — clique aqui para conhecer este caso, que, até hoje, combina a audácia de um aventureiro de perfil suspeito com profundos embates jurídicos.

Por enquanto, a pendenga envolvendo os sul-africanos e os ingleses continua. A exemplo do que está acontecendo, também, no Mar da China.