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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Por que 661 contêineres que caíram no mar no ano passado é uma boa notícia

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Imagem: HO/REUTERS

Colunista do UOL

10/06/2023 04h00

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Recentemente, o Conselho Mundial de Navegação (World Shipping Council), principal entidade do transporte marítimo internacional, divulgou que 661 contêineres (aquelas enormes caixas de aço que os navios transportam, com mercadorias diversas) caíram e se perderam nos mares do mundo, no ano passado. E o dado foi saudado como sendo positivo pela entidade.

A razão da comemoração, no entanto, foi um tanto patética: a simples diminuição na quantidade de incidentes desse tipo, em relação aos anos anteriores.

Embora chocante, a quantidade de contêineres que foram parar no mar em 2022 foi cerca de 65 % menor do que no ano anterior, quando mais de 2 000 objetos do gênero desabaram nos oceanos, e bem abaixo da média anual, de 1 566 contêineres perdidos por ano, nos últimos 15 anos. E o menor índice desde 2008.

"Se considerarmos que cerca de 250 milhões de contêineres são transportados em navios a cada ano, os 661 que caíram no mar no ano passado representam apenas 0,00048% do total, o que é uma gota d´água no oceano", interpretou, à sua maneira, o presidente da entidade, John Butler.

No entanto, ele mesmo completou que, "embora a redução desse tipo de acidente seja uma notícia positiva, não há lugar para complacência, é que preciso se empenhar ainda mais para reduzir este número" — este, sim, um comentário sensato.

Quando um contêiner cai no mar, não há como ele ser resgatado pelo próprio navio que o derrubou, e o seu destino passa a ser, inexoravelmente, o fundo do mar, contaminando o ambiente marinho em maior ou menor intensidade, dependendo do tipo de mercadoria que ele continha, mas sempre de maneira daninha — sem falar no risco que uma caixa de aço do tamanho de um vagão de trem, boiando na superfície até que afunde por completo, representa para as demais embarcações.

Histórias do Mar - ORG XMIT: AUK102 The 47,230 tonne Liberian-flagged Rena lists in heavy swells, about 12 nautical miles (22 km) from Tauranga, on the east coast of New Zealand's North Island October 19, 2011. Rough weather on Tuesday forced salvage  - HO/REUTERS - HO/REUTERS
Imagem: HO/REUTERS

Portanto, comemorar a queda no mar de mais de seis centenas de contêineres em apenas um ano - apenas entre os incidentes desse tipo que foram notificados, porque nem todos o são - é algo, no mínimo, questionável.

Bem melhor seria que nenhum contêiner tivesse sido perdido por navio algum.

Mas isso parece que ainda está longe de acontecer.

Nenhum grande naufrágio

O próprio Conselho Mundial de Navegação admite que a diminuição no número de acidentes desse tipo no ano passado não foi apenas consequência de melhoramentos na área da segurança do transporte marítimo, mas sim fruto de uma mera eventualidade: não houve nenhum naufrágio envolvendo grandes navios porta-contêineres em 2022, como ocorreu em anos anteriores - o que, obviamente, não deixa de ser uma boa notícia.

Isso, aliado ao aumento brutal no transporte de contêineres com mercadorias oriundas do comércio eletrônico, setor que explodiu em todo o mundo durante a pandemia (só em 2020, mais de 3 000 contêineres se perderam no mar, carregados de compras feitas pela internet, já que ninguém podia sair de casa), fez com que o número apresentado pela entidade tenha conseguido a mágica de ser saudado com entusiasmo.

Não há como negar que 661 contêineres perdidos no mar no ano passado são bem menos comprometedores à segurança da navegação e ao meio ambiente marinho do que os 3 113 que desabaram dos navios três anos atrás.

Mas, ainda assim, é uma quantidade assustadora.

Histórias do Mar -  Navio tombado no mar da Nova Zelândia que, com vazamento, despeja óleo. *** The tanker Awanuia (R) carries out operations to pump oil from the stricken container ship Rena, about 14 nautical miles (22 km) from Tauranga, on the east coast of New Zealand's North Island October 17, 2011, 13 days after it struck the Astrolabe Reef. Rough weather on Tuesday forced salvage teams to  - Reuters - Reuters
Imagem: Reuters

"Efeito dominó"

Parte do problema reside em dois fatores: os tamanhos cada vez maiores dos navios porta-contêineres (o que resulta em números expressivos a cada novo incidente), e a pressão dos donos das cargas para que elas cheguem o mais rápido possível ao seu destino - o que, muitas vezes, leva os comandantes dos navios a navegar sob situações não favoráveis, em busca de agilidade.

Para não atrasar as viagens, nem sempre os navios seguem a rota mais segura, ou desviam do rumo, a fim de evitar as tempestades - e as tormentas ainda são a causa número 1 da queda de contêineres no mar.

"Em vez de desviar das tempestades, os navios a atravessam, para não atrasar a viagem", diz um especialista no assunto. "E como os contêineres viajam encaixados uns aos outros, quando um se solta, caem vários, como um efeito dominó", compara.

24.000 contêineres em um só navio

Esta situação é agravada pelo porte, cada vez mais gigantesco, dos navios porta-contêineres.

O atual maior navio do gênero no mundo, o HMM Algeciras, tem 400 metros de comprimento e capacidade para transportar 24 000 contêineres (TEUs, em linguagem marítima). E um estaleiro chinês já anunciou que está construindo um navio ainda maior, o MSC Tessa, capaz de transportar 24 116 TEUs.

Quando um destes super navios enfrenta algum problema realmente sério de mau tempo no mar, as consequências tendem a ser tão superlativas quanto eles próprios.

1.800 contêineres perdidos no mar

Dois bons exemplos disso aconteceram recentemente.

Em janeiro de 2021, o super cargueiro Maersk Essen derramou, de uma só vez, 689 contêineres no Oceano Pacífico, ao enfrentar uma tempestade, quando vinha da China para a Califórnia.

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Imagem: W K Webster and Co

Pouco antes disso, em novembro de 2020, o também gigantesco One Apus, de 364 metros de comprimento, fez pior ainda e perdeu 1.800 contêineres na mesma rota, pelo mesmo motivo: necessidade de manter o ritmo, apesar do mau tempo.

"O clima no mundo está se tornando um tanto imprevisível, enquanto os navios estão ficando cada vez maiores, o que permite que mais contêineres sejam empilhados, facilitando grandes acidentes desse tipo", explica outro especialista em transporte marítimo.

O pior caso

O pior caso do gênero aconteceu dez anos atrás, em 17 de junho de 2013, quando o porta-contêineres MOL Comfort, que vinha de Singapura com destino ao porto de Jeddah, na Arábia Saudita, partiu-se ao meio, durante uma tempestade, por conta de uma rachadura no casco.

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Imagem: Reprodução

Na ocasião, nada menos que 4 382 contêineres foram parar no mar, e nenhum deles foi resgatado.

O acidente gerou mudanças nos projetos de outros navios da mesma classe, com reforços na estrutura do casco.

Mas, de acordo com a seguradora Allianz Global Corporate, a falha humana ainda é responsável por cerca de três quartos dos acidentes no transporte marítimo.

"Como bater em uma pedra no mar"

Um dos problemas da queda de contêineres no mar é que nem todos afundam no mesmo instante - e outros sequer afundam, transformando-se em perigosos obstáculos à navegação.

Histórias do Mar - Shipping cargo container lost in the sea or ocean. Cargo isurance concept. 3d illustration - Bet_Noire/Getty Images/iStockphoto - Bet_Noire/Getty Images/iStockphoto
Imagem: Bet_Noire/Getty Images/iStockphoto

Diversos barcos menores já naufragaram ao colidir com contêineres boiando na superfície.

Em maio de 2004, o casal brasileiro de velejadores Valéria e Geraldo Ormerod sentiu isso na própria pele, ao atropelar, com seu veleiro Vadyo, uma dessas caixas de aço errantes e flutuantes, quando navegavam na costa da Florida, nos Estados Unidos. Por sorte, o veleiro deles não afundou — só rachou. Mas o susto ficou para sempre.

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Imagem: Arquivo pessoal

"Foi como bater numa pedra no meio do mar", relatou Geraldo, em um blog da época.

Patinhos soltos no oceano

Ao cair de um navio, a grande maioria dos contêineres afunda, após flutuar por um tempo, até que seu interior seja inundado. Outros, porém, rompem-se com o impacto, liberando o seu conteúdo na superfície.
Nos dois casos, o mar é vítima de elementos que podem afetar a vida marinha.

Mas, em pelo menos um caso, isso foi positivo.

Em janeiro de 1992, um navio que transportava contêineres da China para os Estados Unidos (como se vê, uma das rotas mais sujeitas a esse tipo de incidente), perdeu alguns dele no mar, após enfrentar mau tempo.

Um dos contêineres, porém, continha uma carga curiosa: 30.000 patinhos de borracha, desses usados para divertir crianças em banheiras. E rompeu-se, ao cair no mar.

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Imagem: YouTube/Reprodução

Como tinham sido feitos justamente para flutuar, os patinhos de borracha saíram boiando pelo Pacífico, e, tempos depois, começaram a chegar a regiões distantes do local do acidente, como o Alasca e a China - onde passaram a ser coletados por banhistas curiosos.

Nascia assim a "caça aos patinhos navegantes", brincadeira que, durante muitos anos, arregimentou pessoas no mundo inteiro, e levou até os cientistas a perseguirem os achados, porque a saga daqueles brinquedos no mar mostrou ser uma maneira 100% eficaz de estudar, na prática, as correntes marítimas — clique aqui para conhecer esta história, que continua até hoje.

Mas, apesar do benefício indireto daquele incidente, melhor seria que nada despencasse dos navios no mar. Muito menos 661 contêineres, como aconteceu só no ano passado.