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A inesperada história por trás do navio negreiro afundado em Angra dos Reis
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Na manhã de 21 de fevereiro de 1862, um pequeno grupo de membros do departamento judiciário americano se reuniu no pátio interno da penitenciária conhecida como "A Tumba", no coração de Manhattan, em Nova York, para assistir à execução do ex-capitão de embarcações Nathaniel Gordon, condenado a morte pelo então presidente americano recém-eleito Abraham Lincoln, por traficar trabalhadores escravizados quando isso já havia sido proibido no mundo inteiro.
No dia anterior, desesperado frente a execução cada vez mais próxima, Gordon havia tentado o suicídio, ingerindo veneno para ratos. Mas os médicos da penitenciária agiram rápido e o mantiveram vivo até o dia seguinte, quando, então, a pena capital foi aplicada.
Com isso, Nathaniel Gordon se tornou tristemente famoso: o único americano a ser condenado à morte por atuar no tráfico de trabalhadores escravizados — um crime, até então, convenientemente ignorado pela sociedade da época, que lucrava bastante com o comércio de seres humanos.
Enforcamento surpreendente
Para os americanos, a execução, por enforcamento, do capitão Gordon — e sobretudo o seu relacionamento com grandes empresários de Nova York, que financiavam as expedições em busca de negros africanos para serem vendidos no Caribe e na América do Sul — não deixou de ser uma surpresa, já que, até então, este tipo de crime não costumava render sequer a prisão.
Mas Lincoln havia decidido usar o caso de Gordon, responsável pelo tráfico de milhares de africanos, como exemplo aos que insistissem em manter vivo o lucrativo negócio do tráfico humano para outros países, sendo que o principal deles era o Brasil — país com o qual Nathaniel Gordon manteve estreita relação, e onde protagonizara sua mais ousada empreitada, dez anos antes de ser executado.
Contratado por um brasileiro
Em 1851, então no comando do brigue Camargo, um tipo de barco à vela utilizado no transporte de cargas em geral, Gordon atracou no porto do Rio de Janeiro, vindo de São Francisco, com um carregamento de peles que deveriam seguir para Nova York.
Mas ali ele ficou sabendo do interesse do latifundiário brasileiro Joaquim José de Souza Breves, um dos maiores compradores de trabalhadores escravizados do Brasil, que queria contratar um barco para trazer mais africanos, a fim de abastecer suas fazendas — entre elas, uma que ocupava toda a orla da região onde está a cidade de Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro.
Gordon, então, abandonou a viagem, se apossou do barco que apenas comandava (ou seja, roubou-o de seus devidos donos), e desviou para Moçambique, na África, para buscar os trabalhadores escravizadosencomendados pelo fazendeiro brasileiro — uma operação bem mais rentável do que transportar simples peles de animais.
Leis para inglês ver
Meses depois, o capitão americano atracou novamente no Brasil, trazendo mais de 500 africanos escravizados para as fazendas de Breves.
O desembarque ocorreu em 11 de dezembro de 1852, em um porto clandestino na enseada de Bracuí, em Angra dos Reis, uma vez que, por pressão da Inglaterra, o comércio humano também já havia sido proibido no Brasil — e em duas ocasiões.
Ambas em vão.
A primeira foi em 1831, através da chamada "Lei Feijó", e a outra, a "Lei Eusébio de Queiroz", aprovada apenas dois anos antes da empreitada de Gordon em Angra dos Reis. Ambas proibiam o tráfico de trabalhadores escravizados (mas não a escravidão), e jamais foram praticadas, o que as levou a serem apelidadas de "leis para inglês ver".
Tacou fogo no navio
Naquele dia de 1852, após desembarcar os trabalhadores escravizados na fazenda de Breves, Nathaniel Gordon afastou o brigue Camargo da orla e tomou duas decisões inesperadas: ateou fogo ao próprio barco, fazendo com que o afundamento destruísse provas do seu ato criminoso (já que o litoral brasileiro era frequentemente patrulhado por barcos ingleses, em busca de navio negreiros), e fugiu, vestido de mulher, para o distante porto de Paranaguá, de onde retornou, incólume, aos Estados Unidos — enquanto alguns dos marinheiros do Camargo eram presos no Rio de Janeiro, mas logo liberados, por força da corrupção então reinante.
Nos Estados Unidos, Gordon seguiu traficando trabalhadores escravizados por mais dez anos, sempre sob encomenda dos poderosos empresários de Nova York, então o maior entreposto escravagista do mundo, embora poucos soubessem disso.
Finalmente preso
Logo após sua audaciosa operação no Brasil, Gordon fez o mesmo na ilha de Cuba (onde, seguindo a mesma prática, também ateou fogo ao barco que comandava, o Ottawa, para não ser incriminado), e continuou traficando seres humanos, entre a África e as Américas.
Até que, finalmente, foi preso, em 1861, na costa da África, quando comandava outro navio negreiro, o Eire, com 970 africanos escravizados a bordo, e condenado à pena máxima, algo até então inédito na história americana.
Novo capítulo da história
Mas, agora, a história de Nathaniel Gordon está ganhando um novo capítulo, com a busca e resgate do que restou do seu navio negreiro Camargo, no fundo do mar de Angra dos Reis, por pesquisadores e arqueólogos subaquáticos brasileiros.
Além disso, também deverá gerar um filme, que está sendo produzido por uma empresa brasileira, a Aventuras, e negociado com estúdios de Hollywood, sobre o único americano condenado à morte por atuar no tráfico de trabalhadores escravizados — uma história também intimamente ligada ao Brasil.
Deve virar filme
O trabalho de garimpagem no fundo da Enseada de Bracuí, em busca dos restos do barco Carmargo, está sendo executado por arqueólogos subaquáticos e pesquisadores do Instituto AfrOrigens, da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Sergipe, com apoio de instituições de pesquisa americanas como a George Washington University e o Smithsonian Institution National Museum of African American History and Culture.
Os técnicos trabalham em três naufrágios diferentes, já encontrados na área — um deles é o do Camargo.
Mas eles ainda não sabem qual, porque a comprovação precisa ser cientifica, através da comparação de resíduos retirados dos escombros com materiais utilizados nos barcos da época.
"Passo a passo, estamos avançando, e logo teremos a comprovação da descoberta do mais famoso navio negreiro que atuou no Brasil, e um dos poucos do mundo a ser encontrado", diz um dos fundadores do Instituto AfrOrigens, Yuri Sanada, que também coordena o projeto do filme sobre o capitão Nathaniel Gordon, a ser rodado, segundo ele, no Brasil e nos Estados Unidos - e cuja amostra do roteiro pode ser vista clicando aqui.
Fugiu vestido de mulher
"A comprovação do achado do Camargo será especialmente importante e simbólica para a comunidade quilombola que existe até hoje no Bracuí, no mesmo local onde ficava a Fazenda Santa Rita, do Breves, um dos maiores contrabandistas de escravizados da História do Brasil", diz Sanada.
"O descobrimento do barco será uma espécie de 'atestado de origem' para aqueles quilombolas, que até hoje não possuem o direito de posse da terra onde vivem, e que cresceram ouvindo histórias de seus antepassados sobre o desembarque de escravizados do Camargo, sem saber se ele existiu de fato", explica Sanada.
"Cresci ouvindo isso, e que o capitão do barco tinha fugido vestido de mulher, mas achei que alguém tivesse inventado essa história. Mas não é que era verdade?", surpreende-se a líder do quilombo de Santa Rita, Marilda de Souza Francisco, que, agora, espera que os quilombolas tenham o seu direito de posse da terra reconhecido.
"Nossa história começou naquele navio. E a história dele rende mesmo um filme", garante a líder quilombola.
Outro caso muito parecido
Quando isso acontecer, não será a primeira vez que a chegada de um navio negreiro no passado acabou por fomentar o surgimento de uma comunidade inteira de afrodescendentes, até hoje.
No próprio Estados Unidos — e na mesma época do caso mais famoso do abominável capitão Nathaniel Gordon —, outro navio do mesmo tipo, o Clotilda, entrou para a história americana tanto por ter sido o último a desembarcar ilegalmente africanos escravizados no país, quanto por, mais tarde, seus descendentes terem dado origem a uma cidade, não por acaso batizada de Africatown ("Cidade África"), ainda existente em Mobile, no estado do Alabama.
Mas houve outro detalhe que tornou aquela viagem do Clotilda (cujos restos também foram descobertos recentemente, quatro anos atrás, após um intenso trabalho de buscas arqueológicas na baia que banha a cidade) ainda mais execrável: o fútil motivo que a levou a ser realizada, como poder ser conferido clicando aqui.
"Os navios negreiros fazem parte da História da humanidade", diz o pesquisador Sanada. "E a história do Camargo e do abjeto capitão Gordon precisa ser contada, porque mostra que o centro do poder escravagista nas Américas não estava no sul dos Estados Unidos, como sempre se imaginou, mas sim na principal cidade do país, Nova York.
"E isso nem mesmo todos os americanos sabiam".
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