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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Inquérito conclui que piloto de navio ao celular causou desastre ambiental

Greenpeace
Imagem: Greenpeace

Colunista do UOL

01/08/2023 04h00

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Já foi o tempo em que o uso de telefones celulares se tornou perigoso apenas no trânsito.

Dias atrás, foi divulgada a conclusão oficial do inquérito da polícia das Ilhas Maurício que investigou o encalhe, seguido de naufrágio e intenso vazamento de óleo, do navio japonês Wakashio, em julho de 2020, que se tornou o pior desastre ambiental da história daquele país.

Três anos depois do acidente — e após interrogatórios com todos os 20 tripulantes do navio, que nada sofreram no episódio —, os investigadores concluíram que a principal causa do acidente foi o uso indevido do telefone celular pelo encarregado de conduzir o navio naquela ocasião, o segundo oficial Hitihanillage Tilakaratna, de 45 anos.

Festinha a bordo

Tilakaratna, que fora incumbido pelo comandante do navio, o indiano Sunil Nandeshwar, de 58 anos, de cuidar da navegação, enquanto o restante da tripulação — inclusive o próprio capitão — participava de uma festinha de aniversário de um dos marinheiros, admitiu, durante os interrogatórios, que se distraiu falando ao celular com sua família, enquanto o cargueiro, de 300 metros de comprimento, se aproximava perigosamente da barreira de corais que rodeia a principal ilha de Maurício, onde fica a capital do país, Port Louis.

Buscavam sinal de celular

Histórias do Mar -  Wakashio  desastre - STRINGER/AFP - STRINGER/AFP
Imagem: STRINGER/AFP

A própria temerária aproximação do navio da ilha teria ocorrido para que os tripulantes conseguissem captar sinais de celular que lhes permitissem ligar para amigos e familiares, concluiu também o inquérito, que culpou tanto o segundo oficial quanto, sobretudo, o próprio comandante — este, por uma série de motivos.

Um deles, foi o fato de que o comandante Nandeshwar, além de não ter percebido que o navio saíra completamente do rumo que ele havia determinado ("passar a cinco milhas da costa"), nem ter checado a posição da embarcação nas cartas eletrônicas de navegação, estava ainda "ligeiramente embriagado" quando retornou à Ponte de Comando, após sair por um instante da comemoração de aniversário - e o consumo de álcool teria sido o motivo pelo qual ele não notou o quanto o navio já estava próximo da ilha.

Outra razão foi que o comandante, além de permitir que o encarregado ficasse falando ao telefone enquanto o navio se movimentava, havia liberado de suas funções o "vigia" — outro tripulante, que, pelas regras, deveria ficar permanentemente na Ponte de Comando —, para que ele também participasse da festinha que acontecia a bordo.

"Já que eu tinha bebido um pouco, decidi não intervir no rumo que o segundo oficial havia traçado, e também não percebi que estávamos navegando tão perto da terra firme", reconheceu o capitão, no seu depoimento aos investigadores.

Condenados a 16 meses de prisão

Histórias do Mar - Wakashio - desastre - Greenpeace - Greenpeace
Imagem: Greenpeace

Já o segundo oficial, que conduzia o navio no momento do acidente, admitiu não ter consultado o ecobatímetro (equipamento que mede a profundidade, durante a navegação), nem se oposto à não presença do vigia na Ponte de Comando, como determinam os protocolos de segurança.

Por fim, o inquérito concluiu que "houve falta de vigilância do segundo oficial" e "negligência e excesso de confiança do capitão no seu subordinado".

Por essas e outras, em dezembro de 2021, um ano e meio após o acidente, os dois foram condenados a 16 meses de prisão nas Ilhas Maurício, o que acabam de cumprir.

Desastre ambiental inédito no país

O que determinou a dupla condenação não foi o acidente em si, já que ele não teve vítimas, mas sim o que causou: o mais severo desastre ambiental da história das Ilhas Maurício, um paradisíaco arquipélago no Oceano Índico, com extensas bancadas de corais, belas praias e forte apelo turístico.

Para piorar ainda mais o quadro, o acidente ocorreu bem próximo ao Parque Marinho Blue Ray, um santuário ecológico repleto de peixes, corais e aves marinhas, o que levou o governo mauriciano a decretar "estado de emergência", quando, dias depois do acidente, o casco do navio se partiu em dois e deixou vazar quase todo o combustível que havia dentro dele - cerca de 1 000 toneladas de óleo diesel.

Uma tragédia anunciada

Histórias do Mar - Wakashio - desastre - Laura Morosoli/Getty Images/iStockphoto - Laura Morosoli/Getty Images/iStockphoto
Imagem: Laura Morosoli/Getty Images/iStockphoto

O vazamento, porém, não ocorreu imediatamente após o acidente. Ao contrário, durante mais de duas semanas, o cargueiro permaneceu intacto, apenas espetado no recife de corais, sem que nenhuma ação de remoção do seu conteúdo tóxico tivesse sido posta em prática, uma vez que ele navegava vazio, de Cingapura para o Brasil, onde deveria atracar no porto catarinense de Tubarão 20 dias depois, a fim de receber um carregamento de grãos.

Como não havia carga alguma a bordo, não houve nenhuma preocupação em esvaziar rapidamente o navio, a fim de evitar maiores consequências à região — e isso, mais tarde, geraria acalorados protestos de moradores contra o Primeiro Ministro das Ilhas Maurício, que quase foi tirado do cargo, por conta da sua inépcia no caso, já que o vazamento de óleo do navio era uma tragédia anunciada.

"Como nunca tivemos um desastre ambiental, não estávamos suficientemente preparados para lidar com um problema dessa ordem", defendeu-se o Ministro do Meio Ambiente da ilha, diante dos protestos. O governo mauriciano também foi acusado de reprimir a mídia local, para que os fatos não fossem divulgados, quando o pior aconteceu.

Navio partiu em dois

Em 15 de agosto de 2020 - 20 dias após o encalhe e algumas tentativas frustradas de remover o navio da bancada de corais na qual jazia espetado, à mercê das ondas - uma tempestade fez o mar subir e partiu ao meio o casco inerte do Wakashio.

Dividido em dois, boa parte do combustível que havia nos seus tanques vazou para o mar, cobrindo de óleo uma área de cerca de 30 quilômetros quadrados — que só não foi maior, porque moradores voluntários trataram de instalar, eles próprios, barreiras improvisadas nos recifes de corais, usando fardos de palha revestidos com tecidos.

Quando a tempestade passou, a proa do navio, que se soltara com a tormenta, foi rebocada para alto-mar e ali afundou, uma semana depois.

Já a parte posterior do cargueiro, a popa, seguiu cravada no recife, vazando paulatinamente óleo, o que gerou outra tragédia - esta, ainda pior que o vazamento tóxico.

Mortos na operação

Histórias do Mar - Wakashio desastre - FABIEN DUBESSAY/AFP - FABIEN DUBESSAY/AFP
Imagem: FABIEN DUBESSAY/AFP

No dia 31 de agosto, durante uma tentativa de remoção do que restara do navio, um dos rebocadores que participava da operação colidiu com uma barcaça, causando a morte de três tripulantes e o desaparecimento de um quarto.
A rigor, foram as únicas vítimas do Wakashio, além, obviamente, de milhares de peixes, aves e seres marinhos, como tartarugas, golfinhos e até baleias, que, nos dias subsequentes ao vazamento, começaram a chegar, mortos, às praias da ilha.

Novos protestos

Os moradores, então, voltaram a protestar nas ruas. Mas o governo das Ilhas Maurício se limitou a pedir uma indenização de 34 milhões de dólares ao Japão, já que o navio pertencia a uma empresa japonesa — ou seja, do limão, os políticos mauricianos ainda resolveram fazer uma limonada, e lucrar com o caso.

Mas isso não foi analisado no inquérito divulgado dias atrás - só o absurdo motivo do desastre: o oficial que conversava ao celular enquanto o navio que ele pilotava avançava na direção da ilha, e o capitão bêbado que não percebeu isso.

Outro caso ainda pior

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Imagem: Reprodução

Pior, só o que fez o comandante do petroleiro liberiano Torrey Canyon, em março de 1967, quando causou o derramamento de 120 mil toneladas de petróleo no mar da Inglaterra, ao entregar a função de pilotar o navio a um tripulante não preparado, que era, também, o cozinheiro de bordo — clique aqui para ler esta inacreditável história.

Um escândalo ambiental no mar do Brasil

No Brasil, um dos mais famosos casos de descaso das autoridades com a questão ambiental no mar aconteceu também nesta mesma época, final da década de 1970, quando toneladas de peixes e animais marinhos apareceram mortos na Praia do Hermenegildo, no litoral sul do Rio Grande do Sul, por conta do naufrágio, tempos antes, de um navio brasileiro carregado de produtos químicos no vizinho litoral do Uruguai.

Na época, em plena ditadura militar, o governo brasileiro tentou esconder o problema, e imputar a culpa a um simples fenômeno da natureza, chamado Maré Vermelha - uma proliferação descontrolada de algas, que torna a água do mar tóxica para muitos seres marinhos.

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Imagem: Reprodução

Contudo, anos depois, ficou provado que a origem daquela mortandade havia sido consequência do naufrágio daquele navio, anos antes, a quilômetros de distância, que o governo brasileiro tentou esconder, porque sua carga envolvia, indiretamente, um poderoso ministro da época — clique aqui para conhecer também este escandaloso crime ambiental, que ficou conhecido como o "Caso do Hermenegildo".