'Conchinha é dinheiro': a curiosa profissão de catador de conchas preciosas
Quase 40 anos atrás, o mineiro, radicado no Espírito Santo, Domingos Afonso Jório, um ex-pescador profissional e mergulhador de grandes profundidades, foi procurado por dois empresários de São Paulo com uma proposta que, para ele, soou esquisita demais para ser levada a sério: catar conchinhas no fundo do mar, durante os mergulhos que fazia.
"Mas isso é coisa de criança", caçoou Afonso, antes de ouvir o quanto aqueles homens pagariam por certas conchas que ele capturasse. Topou na hora.
Para Afonso, era o início de uma nova profissão, que está entre as mais curiosas do país: a de conquiliologista, ou estudioso e caçador de conchas preciosas para colecionadores - atividade na qual se tornou a maior autoridade do assunto no Brasil, e dono, em sociedade com o também mineiro Luiz Couto, da única empresa brasileira especializada do setor: a Mar*a*Mar, sediada em Guarapari, no Espírito Santo, onde ele vive.
"Além de ser um negócio rentável, as conchas também se tornaram um hobby para mim", diz Afonso, hoje um apaixonado pelas formas delicadas, variadas e graciosas dessas carapaças de carbonato de cálcio, que, na natureza, servem de abrigo e esqueleto para moluscos.
"De tão bonitas, algumas conchas parecem ter sido criadas por artistas. Eu até as vendo dentro de caixinhas, feito joias", diz Afonso, que já chegou a vender uma conchinha de pouco mais de quatro centímetros para um colecionador norueguês por quase R$ 15 mil.
"Mas o valor de uma concha depende de ela estar na mão de alguém com acesso ao mercado mundial de colecionadores. E são poucos", explica Afonso.
Na minha mão, uma concha vale dinheiro. Na das demais pessoas, é apenas um enfeite"
Uma rotina no fundo do mar
O curioso dia a dia de Afonso - e dos pescadores que colaboram com sua empresa na captura de conchas na região de Guarapari (onde ocorre o encontro de duas correntes marítimas, gerando uma zona de ressurgência que traz muitas conchas das profundezas) - é mergulhar e ficar vasculhando a areia no fundo do mar, checando também tocas de polvos, seres que adoram comer moluscos, em busca de conchinhas que possam valor algum dinheiro para os colecionadores. Às vezes, um bom dinheiro (veja vídeo).
Afonso também instrui os pescadores da região para que, sempre que capturarem um peixe-sapo, examinarem a barriga do animal para ver se há conchinhas dentro dela.
"Tal qual os polvos, os peixes-sapo também adoram moluscos, e, às vezes, engolem as conchas inteiras", explica Afonso.
"Foi na barriga de um deles, que achei a concha mais valiosa que já encontrei".
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Embora só conhecido pelos especialistas, o mercado da conquiliologia é bem maior do que se possa imaginar. Existem feiras mundiais e publicações especializadas, que servem para balizar o valor de mercado de cada tipo de concha — e existem mais de 100 000 espécies delas. Só a empresa de Afonso atende regularmente perto de 1 000 colecionadores, quase todos estrangeiros.
Os colecionadores chegam a encomendar conchas específicas que querem comprar. Daí, vou para o mar tentar encontrá-las"
Quanto vale uma concha?
Depende do tipo de concha, grau de perfeição, raridade e lei de oferta e procura no mercado. Quanto menos conchas de determinado tipo houver à venda, mais elas valerão. Os preços variam de um a alguns milhares de dólares, sem nenhum exagero.
O curioso é que conchas da mesma espécie podem valer muito ou praticamente nada — depende de quantas delas estão à venda no mercado. Mas só um especialista é capaz de avaliar isso.
Quem encontra uma nova espécie — algo que Afonso já fez algumas vezes — põe o preço que quiser. E quase sempre acha um comprador, rapidamente.
"É uma atividade fascinante", diz Afonso. "De repente, você pode encontrar uma concha que nunca ninguém viu. Daí, automaticamente, ela passa a valer um bom dinheiro".
Todas as conchas ter valor?
"Não", diz Afonso. "É preciso ter contato com o mercado internacional de colecionadores. Se não houver pessoas interessadas em comprá-la, nenhuma concha vale nada".
Antigamente, porém, chegou a ser bem diferente. No passado, em certas ilhas da Oceania, um tipo específico de conchinha era usado como dinheiro. Tanto que, depois, foi batizada como Monetaria moneta. Mas hoje, de tão abundantes nas praias, não valem mais nada.
Outro caso curioso aconteceu no século passado, nas Filipinas, onde certa conchinha, muito bonita, era tida como rara e, portanto, valiosa. Por isso, um artesão espertalhão local começou a produzir réplicas feitas com massa de arroz, e vendê-las dentro de caixinhas de vidro, de forma que elas não pudessem ser tocadas nem examinadas com afinco. Durante um tempo, o golpe deu certo. Até que foi descoberto.
O curioso é que, hoje, aquelas conchas não interessam mais aos colecionadores, mas as poucas falsificações que restaram valem milhares de dólares.
O que torna uma concha mais valiosa
"O formato e a beleza das caparaças contam muito, bem como a raridade", explica Afonso. "Mas ainda é o tamanho o que mais influencia nos preços. Existe até o Livro dos Recordes da conquiliologia".
Nele, consta que a maior concha já capturada que se tem notícia foi encontrada na Oceania, e media 1,20 m de diâmetro e mais de 100 quilos de peso - o que demonstra que também era bem antiga. Isso porque o tamanho das conchas está diretamente relacionado à sua longevidade. Quanto maior a concha, mais antiga ela é.
Mas o ritmo de crescimento depende de cada espécie.
O mar do Brasil é rico em conchas?
"Não tanto quanto o das Filipinas, que é uma espécie de paraíso para os caçadores de conchas", diz Afonso. "Isso porque o Atlântico é um oceano relativamente jovem, e as conchas são seres pré-históricos, que estão entre as mais antigas de todas as espécies".
De acordo com a ciência, já foram encontradas conchas junto à fósseis de dinossauros de mais de 260 milhões de anos.
E estas mesmas conchas existem até hoje no mar!", vibra o mergulhador-caçador
Capturar conchas é predatório?
"Pelo volume que representa, nem um pouco", garante o especialista. "Além disso, capturamos apenas as conchas que interessam aos colecionadores, uma a uma. Depois, ainda fazemos uma triagem. Aquelas com pequenos defeitos são devolvidas ao mar, com os moluscos ainda vivos, para seguir repovoando a área".
De acordo com o especialista, catar conchinhas nas praias não causa nenhum dano ao meio ambiente, "porque a imensa maioria delas já estão vazias, sem os moluscos que as habitavam".
Conchas venenosas
Afonso não vê riscos na atividade que desempenha, vasculhando tocas e tateando o fundo do mar, em busca de conchas.
Mas nutre profundo respeito por certas conchas da espécie Conus, cujo molusco é extremamente venenoso e pode matar uma pessoa em questão de minutos.
Dizem que é a terceira toxina mais poderosa da natureza, e paralisa a vítima instantaneamente, embora sejam conchas minúsculas", garante.
Quando ouço que alguém teve morte fulminante na beira da praia, sempre fico imaginando se aquela pessoa não teve a infelicidade de pisar em uma dessas conchas"
Tirando dinheiro do lixo
Em busca de conchas raras, Afonso também costuma ir à Venezuela, onde há legiões de pescadores que vivem de coletar moluscos, que são vendidos para indústrias e restaurantes. E ali sempre encontra peças valiosas.
"Certa vez, vi uma pirâmide de conchas vazias, na beira de uma praia venezuelana. Elas estavam à espera de um caminhão, que as levaria para serem moídas e usadas no asfaltamento de ruas. Fiquei maluco e comecei a garimpar a pilha, feito um catador de lixo. Saí de lá com um bom punhado de dólares no bolso. Aqueles pescadores não tinham ideia do que estavam jogando fora. Mas nem adiantava ensiná-los a selecionar as conchas mais valiosas, porque uma concha só vale alguma coisa quando está na mão de alguém com acesso ao mercado mundial de colecionadores", diz Afonso Jorio, que completa:
Na minha mão, uma concha vale dinheiro. Na das demais pessoas, é apenas um enfeite"
Além de relevância no mundo dos conquiliologistas , a permanente busca de conchas no fundo do mar também rendeu a Afonso outra satisfação pessoal: a de ter ajudado a desvendar um dos mais significativos naufrágios da costa brasileira: o do navio militar Vital de Oliveira, única embarcação da Marinha do Brasil afundada por alemães na Segunda Guerra Mundial.
Doze anos atrás, Afonso foi procurado pelo amigo e pescador Everaldo Meriguete, que havia encontrado um navio afundado na região do Cabo São Tomé, na divisa entre o Espírito Santo e o Rio de Janeiro - mas não sabia que navio era aquele.
Afonso, então, começou a pesquisar, mergulhou no local e concluiu que aquele navio era o Vital de Oliveira, que havia sido afundado pelo submarino alemão U-816 quase 70 anos antes, em 19 julho de 1944, e que nunca havia sido encontrado.
A descoberta dos restos do navio, cujo naufrágio resultou na morte de 150 marinheiros brasileiros, trouxe novamente à tona a vergonhosa história do Vital de Oliveira, um transportador de tropas, que, naquele dia, foi abandonado no mar pelo navio escolta da Marinha do Brasil que deveria justamente protegê-lo, gerando um escândalo que, apesar das mortes, não gerou punições a ninguém — clique aqui para conhecer essa triste história.
De vez em quando, os mergulhos em busca de conchas permitem também descobrir outras coisas interessantes no fundo do mar", resume Afonso
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