Por que a China não quer que Filipinas recuperem navio encalhado há 24 anos
Nesta terça-feira (22), o governo das Filipinas comemorou o sucesso de uma "operação de reabastecimento de suprimentos" a um velho navio enferrujado, ainda da Segunda Guerra Mundial, o BRP Sierra Madre, que mantém encalhado há 24 anos em um remoto recife de corais no Mar da China, com uma pequena mas permanente tripulação militar a bordo.
"A operação foi bem-sucedida, e mantemos nossos direitos de reabastecer o navio", festejou Romeo Brawner, chefe das Forças Armadas das Filipinas.
A celebração tinha um motivo. Há tempos, o governo das Filipinas vinha tentando enviar suprimentos para os ocupantes do decrépito navio, mas suas ações eram inibidas por navios da Guarda Costeira da China, que interceptavam os barcos com disparos de canhões de água, gerando uma série de protestos de ambos os lados.
Mas, na terça-feira, os filipinos conseguiram furar o bloqueio chinês e entregar suprimentos aos militares que ocupam o navio encalhando, que há quase três décadas não tem mais condições de navegar — justamente para impedir que seja removido.
Foi quando começou a segunda polêmica desta pendenga política e militar entre a China e as Filipinas que já dura décadas — e que pode se transformar em um problema bem mais sério se países aliados, como os Estados Unidos, parceiro dos filipinos, decidirem atuar no conflito.
Evitar que navio afunde
"As Filipinas não entregaram apenas água e comida aos tripulantes do BRP Sierra Madre, mas também recursos para eles repararem o navio", acusou o governo chinês, que não só considera ilegal a presença daquele casco corroído com a bandeira das Filipinas em águas que considera suas, como torce para que ele afunde de vez - porque isso eliminaria a possibilidade de as Filipinas manterem uma guarnição militar no local.
Já o governo das Filipinas respondeu de maneira dúbia: negou que tivesse desembarcado também materiais e equipamentos para consertar o casco do navio, já repleto de furos e rachaduras, mas disse que tem o direito de fazer isso, porque considera o BRP Sierra Madre parte da frota da sua Marinha — e, segundo os filipinos, está encalhado em um recife que pertence ao seu país.
O xis da questão
Este é o xis da questão: os dois países se consideram donos daquele remoto recife de corais (que os filipinos chamam de Ayungin, e os chineses de Ren'ai — mas que, nos mapas, aparece grafado com o nome ocidental pelo qual é mais conhecido: Second Thomas), onde não vive ninguém, mas cuja localização é estratégica para as duas nações.
E nenhum dos dois admite ceder em seus argumentos
"Nunca abandonaremos nosso posto militar em Ayungin", vive repetindo o chefe da chefe das Forças Armadas das Filipinas, Romeo Brawner.
Já os chineses respondem na mesma moeda:
"A China continuará a tomar as medidas necessárias para salvaguardar sua soberania em Ren'ai", garante o Ministério da Defesa chinês, Li Shangfu.
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História conturbada
Com base em registos de quase 4 000 anos atrás, a China sempre reivindicou soberania sobre quase todo o chamado Mar da China, onde fica o recife em disputa - embora ele fique a mais de 1 000 quilômetros da terra firme chinesa mais próxima.
Até que, em 1995, os chineses decidiram, unilateralmente, assumir o controle da área, embora tecnicamente ela fique dentro dos limites da Zona Econômica Exclusiva filipina, faixa de mar cujos recursos naturais só podem ser explorados pelo país mais próximo dela - no caso, as Filipinas, já que a ilha de Palawan fica a menos de 200 quilômetros do recife.
As Filipinas, então, recorreram ao Tribunal Internacional de Haia, que decidiu que a China não tinha direitos sobre a região. Mas os chineses ignoraram a decisão.
Com base nisso, o governo das Filipinas tomou uma decisão inédita: pegou um velho navio, o ex-transportador de carros de combate BRP Sierra Madre, que fora usado pelos americanos na Guerra do Vietnã e na longínqua Segunda Guerra Mundial, colocou alguns militares a bordo, e propositalmente o encalhou no recife em questão, onde está até hoje, como uma espécie de posto militar avançado - uma maneira original e eficiente de ocupar um território.
Interesses comerciais
Desde então, pequenas guarnições militares filipinas se revezam a cada cinco meses a bordo do navio imobilizado (atualmente, são nove militares, que passam os dias pescando, mergulhando ou assistindo filmes em DVDs, já que não há muito o que fazer a bordo de um navio condenado há quase um quarto de século), apenas para garantir a presença filipina na área.
Mas, por que tanto interesse em um esquecido recife de coral que passa metade do tempo debaixo d´água?
A resposta — como sempre — está nos interesses comerciais. Tanto da China quanto das Filipinas.
Pendenga jurídica
A região onde o navio foi encalhado é estratégica, porque fica no acesso a uma área comprovadamente rica em gás e petróleo, cobiçada pelos dois países - e também pelo Vietnã, Taiwan, Malásia e Sultanato de Brunei, que igualmente alegam ter direitos sobre a região, o que torna o imbróglio ainda mais difícil de resolver.
Além disso, aquele trecho do Mar da China responde por cerca de 20% do comércio marítimo mundial, e concentra um impressionante movimento de navios - quem o dominar, passa a ter controle sobre uma parte representativa do fluxo internacional de mercadorias, o que interessa sobretudo à China.
Já as Filipinas tiveram a sua Zona Econômica Exclusiva definida no início dos anos 2010, após defender que aquela área de mar fazia parte da sua plataforma continental.
Mas, em 2016, pressionando pela China, o Tribunal Permanente de Arbitragem decidiu que Zona Econômica Exclusiva não transformaria aquela região em mar territorial filipino.
E este conflito de interpretações gera confusões até hoje.
Raio laser para cegar pilotos
Até a bem-sucedida operação de entrega de suprimentos desta terça-feira, os barcos filipinos vinham sofrendo seguidos ataques com jatos de canhões de água disparados de embarcações da Guarda Costeira Chinesa, que patrulham a região com o intuito de impedir que qualquer tipo de ajuda chegue até o decrépito navio - uma tentativa de sufocar os militares que ali se encontram, e assim forçar o governo filipino a abrir mão da região.
Em fevereiro deste ano, o governo das Filipinas chegou a acusar os chineses de usarem raio laser para "cegar temporariamente" os pilotos dos barcos de entrega de suprimentos.
Navegando no raso
Nesta terça-feira, a saída encontrada foi usar barcos menores, que exigem menos profundidade, e navegar a maior parte do tempo dentro das rasas lagoas dos recifes da região, onde os navios chineses não conseguem penetrar.
A manobra deu certo, já que o estado do navio, de tão precário, não permite mais o pouso de helicópteros para entrega de suprimentos, como chegou a ser feito no passado.
Mas, entre os chineses, levantou a suspeita de que o abastecimento do navio já não estaria sendo feito apenas com víveres, mas também com materiais e equipamentos, a fim de tentar impedir que o BRP Sierra Madre afunde de vez, o que acabaria com aquele incômodo e sui-generis posto avançado filipino - mas, certamente, não com o problema, que tende a se estender por bem mais tempo que o carcomido navio ainda possa durar.
Um caso ainda mais curioso
Usar dispositivos no mar para pleitear direitos de posse já foram usados diversas vezes no passado, com os mais diferentes intuitos.
Mas todos encarados como excentricidades.
Um dos casos mais peculiares — e extraordinários, sob o ponto de vista da viabilidade prática — foi empreendido por um obstinado engenheiro italiano, chamado Giorgio Rosa, que, nos anos de 1960, decidiu construir uma ilha, com cimento e tijolos assentados sobre colunas de concreto fincadas em pleno Mar Adriático, e a proclamou "um país independente", livres das leis das demais nações.
Rosa levou dez anos para dar forma à sua "micro-nação" no meio do mar, mas conseguiu transformar seu sonho em realidade. Só que ele durou pouco.
Irritado com a ousadia daquele genial engenheiro, o governo italiano decidiu por um "fim no problema" da maneira mais radical possível, como pode ser conferido clicando aqui.
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