Histórias do Mar

Histórias do Mar

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

Há 30 anos, o famoso golfinho Flipper foi solto no mar. Mas viveu pouco

No final dos anos de 1960, o município de São Vicente, no litoral de São Paulo, ganhou uma atração turística que logo se tornaria a principal da cidade: o Oceanarium, uma espécie de circo marinho, no qual aconteciam apresentações de animais marinhos amestrados.

Um dos animais logo virou a principal estrela dos espetáculos: Flipper, um golfinho que chegara ali ainda filhote, após ter sido capturado e arrancado do grupo ao qual pertencia, em Laguna, no litoral de Santa Catarina.

Mesmo nome do golfinho da TV

Submetido a uma exaustiva rotina de treinamentos e apresentações, Flipper - propositalmente batizado com o mesmo nome do então famoso golfinho do seriado de televisão, para iludir as crianças que iam aos milhares nos espetáculos - logo começou a demonstrar sinais de fadiga, apatia e sofrimento.

Imagem
Imagem: Reprodução Instituto Histórico e Geográfico de Santos

Como, na época, o uso de animais em circos e atividades congêneres ainda era permitido, nada foi feito contra o permanente estresse a que Flipper - então, o único da sua espécie mantido em cativeiro no país - era diariamente submetido.

Salvo por um ambientalista

Até que, um dia, indignado com a forma como aquele golfinho-escravo vinha sendo tratado, o ambientalista Márcio Augelli, então diretor de uma entidade de proteção de botos amazônicos, decidiu entrar na justiça, pedindo a devolução de Flipper ao seu habitat natural: o mar.

Na ocasião, o juiz que julgou o caso não acatou os argumentos do ambientalista, e manteve o golfinho sob a guarda do Oceanarium. Mas, com base em evidências de maus tratos, proibiu os espetáculos. Foi ainda pior para o animal.

Continua após a publicidade

Pouca comida e fezes no tanque

Imagem
Imagem: Reprodução Projeto Flipper Brasil

Com o aquário fechado, e sem o lucro dos ingressos vendidos à plateia, a vida de Flipper se tornou ainda mais sombria.

O animal foi praticamente abandonado e passou a viver em um tanque cada vez mais insalubre, com pouca comida e uma espessa camada de fezes acumulada no fundo.

Isso levou o ambientalista Augelli a agir novamente - desta vez, por meio da então maior entidade protetora de animais do mundo, a WSPA - World Society for the Protection of Animals.

Os advogados da entidade recorreram uma vez mais à justiça brasileira, pleiteando a soltura do animal, e após alguns meses, o pedido foi, finalmente, acatado: Flipper teria que ser devolvido ao mar.

Continua após a publicidade

Chamaram um especialista

Imagem
Imagem: Reprodução Memória Santista

Além de conseguir a devolução do animal ao seu habitat, a WSPA também contratou os serviços de um especialista na reabilitação de seres marinhos, para fazer a reintrodução de Flipper na natureza: o americano Richard Barry O´Feldman, mais conhecido como Ric O´Barry, um ex-treinador de golfinhos para espetáculos, mas que, arrependido, mudara de lado.

O´Barry chegou ao Brasil com o glamour de um astro de Hollywood. Era janeiro de 1993 - pouco mais de 30 anos atrás.

O´Barry passou alguns dias planejando a remoção de Flipper para o mesmo local onde ele havia sido capturado, nove anos antes, e logo tratou de colocar a operação em prática.

Continua após a publicidade

O show da remoção

No dia da partida de Flipper, perto de 5.000 pessoas se aglomeraram diante do Oceanarium de São Vicente para dar adeus ao golfinho que tanto os divertira naqueles patéticos espetáculos.

A remoção do animal, na época transformada em um espetáculo midiático, foi bem-sucedida. Mas o seu processo de reintrodução à natureza, nem tanto.

O que parecia ser a salvação de Flipper - e o fim do sofrimento do último golfinho mantido em cativeiro no Brasil -, acabaria se transformando em uma operação apressada e mal conduzida pelo americano.

Pressa em devolver o animal ao mar

Imagem
Imagem: Reprodução ArcaBrasil.org

Continua após a publicidade

Levado, de helicóptero, para o mesmo local da cidade de Laguna onde fora capturado, Flipper foi, inicialmente, colocado em um cercado, onde reaprendeu a capturar o seu próprio alimento, e passou a ser readaptado à vida selvagem por O´Barry - um processo lento, mas fundamental para garantir sua sobrevivência na natureza.

Mas a pressa do americano em devolver o animal ao mar - e voltar para casa, nos Estados Unidos -, acabou sendo determinante para o que aconteceria com Flipper mais tarde.

Visivelmente incomodado com sua longa permanência em Laguna (e, principalmente, com os atrasos nos pagamentos feitos pela WSPA), O´Barry passou a acelerar o processo de reintrodução do golfinho ao mar.

Até que, por fim, anunciou que já o considerava pronto para ser solto - uma decisão precipitada, uma vez que apenas 43 dias haviam se passado desde que Flipper saíra do cativeiro.

Soltura prematura

Imagem
Imagem: Ric OBarry
Continua após a publicidade

No dia escolhido para a soltura, em março de 1993, diante de outra grande plateia, O´Barry entrou na água cercado pelos holofotes da mídia, nadou até o cercado, removeu cinematograficamente parte da cerca e permitiu que o golfinho "ganhasse a liberdade" - antes que ele estivesse totalmente pronto para isso. Em seguida, o americano fez as malas e foi embora.

Já Flipper, que era facilmente identificável graças a uma marcação que ganhara na nadadeira dorsal com o formato da bandeira do Brasil, passou dias tentando interagir com os demais golfinhos do canal de Laguna, lá chamados de "botos".

Arranhões pelo corpo

Até que Flipper partiu dali e passou a aparecer, esporadicamente - e com arranhões pelo corpo, sinal de que andara tendo encontros não muito amistosos com outros da sua espécie -, em diferentes pontos do litoral entre São Paulo e Santa Catarina.

Nessas aparições, Flipper mantinha o hábito, adquirido no aquário, de se aproximar das pessoas nas praias, o que lhe custou alguns incidentes. Acabou sendo hostilizado tanto por alguns banhistas, que confundiam sua nadadeira dorsal com a barbatana de um tubarão, quanto pelos demais golfinhos da sua espécie, já que era visto sempre nadando sozinho.

Continua após a publicidade

Última vez que foi visto

No final de 1995 - e ainda sem nenhuma companhia -, Flipper foi avistado nadando no interior da baía de Paranaguá. Depois disso, nunca mais.

Foi a última vez que se teve notícias do golfinho mais famoso do Brasil, pouco mais de dois anos após ele ter sido devolvido apressadamente à natureza - e a maneira como isso foi feito contribuiu decisivamente para o naufrágio da operação comandada pelo americano Ric O´Barry.

Tivesse Flipper passado por um processo mais lento e paciente de readaptação, talvez estivesse nadando até hoje no mar, o que, pelo menos matematicamente, ainda seria possível, já que, na época, ele ainda era um animal jovem.

Mas Flipper nunca mais foi visto, nem seu corpo foi jamais encontrado.

A história do último golfinho-escravo do país (depois dele, os espetáculos do gênero foram proibidos em todo o Brasil), terminou antes da hora e deixou um amargo sabor de fracasso, como pode ser conferida por inteira clicando aqui.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes