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Carnaval LGBTQIA+ no interior: fervo e cultura fora dos grandes centros
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Todo Carnaval tem seu fim, é verdade. Mas a viagem que fiz para a festa deste ano — que ficou parada por 2 anos — foi, na verdade, um recomeço. E por vários motivos.
Sabe aquelas viagens que a gente faz e que são muito legais e deixam uma marca importante na gente? Pois minha "pulada" de Carnaval em Monteiro Lobato, cidade do interior de São Paulo, foi assim. Eu tinha visitado a região no fim de 2020, quando a pandemia deu uma ligeira diminuída para me isolar numa pousada gay-friendly incrível para a qual quero voltar.
Quando um amigo que mora lá me chamou para escolher a Serra da Mantiqueira como destino para a folia, minhas expectativas eram outras. Adeptos a experiências ao ar livre, a ideia inicial era que nós dois, junto com um casal de amigos, fizéssemos duas trilhas na região, intercaladas com shows locais no palco montado no centro da cidadezinha, próximo à rodoviária.
Os planos começaram a mudar quando o casal de amigos teve que ir embora mais cedo por um problema pessoal e cancelamos as trilhas por conta da chuva. Perrengue de viagem vem um atrás do outro né? Sem TV e buscando ficar mais desconectados, estávamos alheios ao fato de que essa mesma chuva estava destruindo o litoral norte paulista, especialmente São Sebastião. Só soubemos da gravidade de tudo depois. Estávamos fechados num mundinho presente, sem tanta interferência externa.
Para minha surpresa (e a do meu amigo pois até ele achou que ia "flopar"), foi tudo muito mais legal do que eu esperava. Durante o dia, a Banda Filhos da Terra animou as tardes no palco central. À noite, a sensacional Banda Palace, popular na região e de muita qualidade, conseguiu animar o povo com vocalistas excelentes e corpo de dança alto astral todos os dias, seguida por um grupo de "bagunça musical" que é formado só por homens carecas e que conduzia a transição para o DJ Diego Benatti.
Apesar das mesmas atrações diariamente, a Banda Palace alterou o repertório para tocar estilos musicais predominantes em cada um dos dias. No primeiro dia, o do axé, me acabei nas coreôs dos anos 1990 embaixo de muita, muita, muita, muita chuva. Ela não parou um minuto, mas a gente também não. O joelho que lute no pós-Carnaval. Nos dias seguintes, a dança continuou intensa e divertida.
Além dos shows, Monteiro Lobato ainda ofereceu, durante as tardes, o tradicional batuque com os Pereirões, aqueles bonecos gigantes bem altos e de braços soltos, que uma pessoa carrega de dentro de uma fantasia. E um grupo deles circulou pelo centro da cidade todos os dias, atraindo atenção por onde passava.
Nos shows — e no restante da cidade — vi casais homoafetivos e pessoas LGBTQIA+ circulando de mãos dadas ou dando pinta, sem grande preocupação com o restante dos cinco mil habitantes e turistas. Claro que é ainda uma cidade interiorana, pequena, mas é um bom sinal para o conservador interior do Estado de São Paulo.
Uma gay maravilhosa bem afeminada foi quase professor de dança, subindo no palco, ganhando competição e arrancando aplausos da grande quantidade de pessoas reunidas ali. Meu amigo, que tem formiga na bunda, remexeu ela para todos os lados, se jogou no chão no melhor estilo "anitter" — o que rendeu um joelho roxo — e virou atração. No dia seguinte, todo mundo que encontrávamos nos dizia que tínhamos sido as estrelas da noite. Eu, infelizmente, de modo bem mais tímido e duro, vale dizer.
Na última noite que aguentamos — mas só a terceira de Carnaval — estávamos com uma amiga (hétero), que trouxe um outro amigo (com síndrome de Down) e, depois de passar uma tarde na cachoeira, nos juntamos com um grupo de várias meninas lésbicas e dançamos até o chão. Foi um arraso.
Meu ponto aqui é que uma cidadezinha de cinco mil habitantes acabou oferecendo a um paulistano acostumado com bloquinhos um Carnaval cheio de festa, diversidade e inclusão, diversão e, diferentemente da capital, segurança. Foi uma experiência memorável!
Outra coisa legal de passar o Carnaval no interior com festa e um amigo local é o ambiente em que todo mundo se conhece ou se cumprimenta, se olha. Para um cara criado em um cenário urbano de megalópole, isso é mais do estou acostumado. Em São Paulo, somos invisíveis aos outros.
E esse é um dos pontos dos papos-cabeça que tive com meu amigo ao longo destes dias. Iniciei o feriadão elogiando o fato de que quando morei em Londres, em 2009, as pessoas não se chocariam se alguém estivesse no supermercado de galocha, saia escocesa, cartola e jaquetão néon, enquanto no Brasil, na época, as pessoas "cuidavam muito da vida dos outros". Isso ainda é verdade e ainda acho que pode limitar a experiência de vida de um LGBTQIA+ quando ambiente não é favorável.
Mas, depois de horas de conversa e um feriado tão acolhedor e cheio de afeto, eu percebi que era o meu lado sisudo de São Paulo falando por anos. Não quero ninguém cuidando da minha vida, claro, mas essa experiência em Monteiro Lobato fez eu me reabrir ao afeto e ao carinho no olhar, no falar, nas relações em geral.
Lucas, o meu amigo, tem um podcast relativamente novo que aborda a vida da bicha camponesa, como ele brinca que é, chamado "Interiormanas" e gravou um episódio contando também sobre este Carnaval, o primeiro com experiência total depois do início da pandemia.
A trilha, de fato, não rolou. Mas eu já tenho uma ótima desculpa para voltar e exercitar um pouco mais minha distribuição de amor às pessoas do melhor modo interiorano.
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