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Prêmio é suficiente? O que falta para elas conquistarem o topo nas cozinhas
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Basta olhar os livros que contam a história da gastronomia no mundo: não há nome de mulheres cozinheiras ou registros de suas passagens pelas cozinhas profissionais.
Elas não estavam cozinhando para os monarcas, nem tampouco faziam parte das equipes dos primeiros restaurantes quando eles foram criados na Paris do século 18, em plena turbulência cultural.
Aliás, foram os restaurantes, ou Casas de Saúde, ainda em sua formação, que representaram um grande avanço da conquista feminina na sociedade: sob a alegação de saúde, as mulheres podiam, pela primeira vez, ir sozinhas a esses espaços para integrar uma ocasião social pública.
"O preço de cada item é especificado e fixo, e uma pessoa pode ser servida a qualquer hora. Mulheres são admitidas e podem ter seu jantar preparado por um preço estabelecido e moderado", escreveu Roze de Chantoiseau, conhecido como inventor do restaurante, sobre as regras do seu recém-criado estabelecimento.
Também não consta que houvesse nenhuma chef mulher em algum grande hotel ou restaurante gastronômico na França (o país mais importante da culinária mundial) do século 19.
Disparidade na cozinha
Passadas duas centenas de anos, as coisas pouco mudaram: uma pesquisa de 2022 realizada pela australiana Chef's Pencil sobre mostrou que ainda é ínfima a presença global de mulheres nas cozinhas de restaurantes estrelados.
Eles analisaram 2.286 restaurantes em 16 países e apenas um quarto eram chefs mulheres. Dessas, apenas 6% atingem o topo da profissão.
No Brasil, a porcentagem é um pouco acima da média: 7%. À Espanha é o país com mais representação feminina nos restaurantes mais gastronômicos (11%) e em alguns nos países nórdicos, referências em equidade, a porcentagem é de 0 — não há mulheres à frente dos mais premiados restaurantes.
A boa notícia é que os números estão aumentando gradativamente desde 2014. No Reino Unido, o número de chefs mulheres aumentou em um terço desde 2016 e agora elas representam cerca de um quarto da força de trabalho do país.
Os Estados Unidos também tiveram um aumento na participação de chefs femininas nos últimos sete anos. Em 2014, 22% das chefs eram mulheres, enquanto em 2019 o número aumentou para 23,9%.
Problema evidente
Ainda assim, é um crescimento ínfimo, que poderia ser maior. Algo que até os maiores nomes do mercado global de restaurantes já reconhecem.
O diretor internacional do Guia Michelin, o mais influente do mundo da Gwendal Poullennec, admite que há poucas mulheres em cargos de chefia.
Mas, para ele, é mais uma questão estrutural do que do sistema de avaliação feita pelo estabelecido guia. O setor precisa "se conscientizar e tentar incentivar as mulheres a chegar a cargos de responsabilidade", ele diz.
Nas palavras de Poullennec, se o guia encontra mulheres que fazem um bom trabalho nos restaurantes, é um objetivo legítimo dos inspetores darem atenção a elas.
A questão seria, então: o que é preciso para que as mulheres estejam, enfim, à frente dos restaurantes fazendo um bom trabalho? E como a indústria pode ajudar nesse sentido.
Prêmio questionado
Em 2019, o 50 Best, a lista mais importante do mundo da gastronomia, que enumera os 50 melhores restaurantes do mundo, assumiu uma postura de exigir que 50% dos seus mais de mil votantes pelo mundo sejam mulheres.
Muito bem. Na lista do ano passado (a deste ano será revelada em junho, na Espanha), apenas 3 mulheres estavam à frente dos 50 dos restaurantes ranqueados.
Em 2018, no entanto, antes da política de paridade de gêneros entre os votantes, o número de mulheres estava em 5 — dois a mais que o ano anterior. Ou seja, aumentar a presença de mulheres no júri não teve necessariamente um reflexo na presença feminina no prêmio.
Em 2016, vale lembrar, o 50 Best criou o polêmico reconhecimento de Melhor Chef Mulher, dado na ocasião para a franco-americana Dominique Crenn, visto por muitos veículos de imprensa como algo ofensivo.
Naquele ano, seu restaurante, o Atelier Crenn, nem apareceu entre os top 100 — ela só estreou na lista um ano depois. A chef, na ocasião, criticou o prêmio dizendo que ele era "estúpido" e acusou a organização de tratar as mulheres como "esporte".
No seu Instagram, ela postou uma frase atribuída à advogada e ativista Nina Shaw: "Não preciso que você me inclua do que você me excluiu. Não somos diversidade, somos normais", dizia a publicação.
Divisão histórica
Mas a pergunta que fica é: como é possível fazer mudanças que incluam sistematicamente as mulheres no topo da gastronomia? As respostas são vastas e pouco exploradas.
É preciso, primeiro, mais informação. Olhar para trás e reconhecer que trabalho em cozinhas já estava, no nascimento do restaurante, intimamente relacionado à divisão sexual do trabalho.
Que historicamente, como defende o livro "Cozinha é Lugar de Mulher?" (Lutas Anticapital, 2022), resultado de uma tese da pesquisadora Bianca Briguglio, o trabalho culinário realizado por mulheres sempre foi alvo de difamação e inferiorização.
"Ainda que se reconhecesse que as mulheres poderiam ser boas cozinheiras, seu trabalho sempre foi limitado às cozinhas domésticas, seja da própria casa, seja das casas burguesas, onde também se realizavam jantares luxuosos, mas em que a cozinheira nunca obtinha reconhecimento", ela escreve.
Quando ser cozinheiro se transformou em uma categoria profissional capaz de se organizar para reivindicar direitos, Briguglio afirma, a exclusão das mulheres foi uma estratégia para afastar a categoria do trabalho doméstico e, portanto, valorizar a profissão.
Não tem a ver com força, com disposição física, nem nada do que costuma ser usado como justificativa dada (muitas vezes por homens, claro) para explicar o abismo que existe entre homens e mulheres na gastronomia — e o assédio e as condições de humilhação que muitas delas passam nas cozinhas profissionais.
Um pouco de pesquisa histórica é capaz de mostrar as razões pelas quais "as mulheres são maioria nos cargos de auxiliar e cozinheira, e os homens predominam entre os chefs".
Sem entender como chegamos até aqui fica impossível trilhar um caminho que possa levar a gastronomia a um novo destino, em que o papel de gênero não seja determinante para apontar quem pode, enfim, chegar ao topo.
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