Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Você tem nojo de quê? Sopa de cobra de Hong Kong expõe preconceitos à mesa
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Em gastronomia não existe nojo ou preconceito. Ou, ao menos, não deveria existir. Há sempre alguém que tem como hábito comer aquilo que a gente repudia, detesta, abomina.
De animais que não têm qualquer presença em nossas mesas a ingredientes "exóticos" (e o que essa palavra significa, afinal, senão só uma forma de preconceito?), muitas populações pelo mundo comem de maneira distinta à nossa.
E isso não é nojento: é uma questão cultural, um valor constituído por hábitos (muitas vezes milenares) de ingestão de algum alimento por condições geográficas, históricas e religiosas — ou de acesso, na maioria das vezes.
Os mexicanos se deliciam com um fungo levemente doce que contamina as plantações de milho nas épocas de chuva. É uma iguaria por lá. Os indígenas amazônicos comem os viscosos e pequenos mojojoys, como são conhecidas as larvas escondidas por besouros nos caules de palmeiras da floresta.
Os muçulmanos não comem carne de porco e os hindus consideram uma vaca tão sagrada que ela não pode ir parar no prato em nenhuma condição (embora sejam consumidores vorazes do leite que elas dão).
Em Hong Kong, a sopa de cobra é uma receita consumida largamente até hoje.
A receita teve origem no sul da China, em uma região hoje conhecida como Guangdong, ainda no século 3 a.C.
Quando foi criado, era um prato de luxo apreciado pelas elites econômicas pelo seu poder medicinal, sobretudo, mas também por ser um alimento capaz de espantar o frio dos invernos rigorosos.
Seu consumo só se tornou popular em toda a China no século 18 como um dos pratos tradicionais de Hong Kong, onde ainda hoje há dezenas de restaurantes especializados em seu preparo.
Conhecida em cantonês como se gang, normalmente a receita leva até cinco tipos diferentes de carne de cobra — nunca um só, como manda a tradição, já que a combinação delas é que cria o poder curativo do prato.
Depois de ter a pele retirada e ser limpada para remover as entranhas, a carne é geralmente cozida com ossos de porco, cabeças de peixe, cortes de frango e especiarias, criando uma sopa bem espessa.
Muitas vezes também leva cogumelos, comuns nos meses mais frios, e algum crocante para adicionar certa textura: de wontons fritos a biscoitos de arroz.
Em alguns restaurantes que servem a receita, a apresentação é feita com pétalas de crisântemo e capim-limão, e a sopa pode ser servida com arroz e legumes.
No Shia Wong Hip, outros répteis fazem parte do menu, como lagartixa, crocodilo e tartaruga. No Sor Wong Fun, a receita inclui ingredientes caros, como abalone (um molusco).
Já o She Wong Lam é um desses restaurantes do centro de Hong Kong que, mesmo 130 anos depois, ainda atrai interessados em sua versão da sopa quase pegajosa e bem rica em umami.
O sabor é de caldo de canja, com mais especiarias (muito sabor pimenta-do-reino) e notas terrosas do cogumelo.
A carne desfiada em lascas finas tem aparência e sabor semelhantes ao frango, embora seja um pouco mais dura. A textura da sopa na boca fica entre uma sopa de batatas grossas e um mingau mais aguado.
Além dos animais que utiliza em suas receitas, o principal negócio do centenário estabelecimento é vender carne de cobra para outros restaurantes da cidade, alimentando uma tradição que se recusa a se esvair com o tempo.
São feitos litros de sopa para render cerca de 100 tigelas por dia — não mais que isso. A maioria dos consumidores, entretanto, são cada vez mais os turistas; talvez não pelas razões de sabor ou de tradição.
Muitos querem mesmo é ter a experiência de comer um animal "silvestre", fazer vídeos e fotos para alimentar suas redes sociais com a curiosa e inesperada iguaria e mostrar que são comensais corajosos. Até aí, tudo bem, é parte do jogo que transformou a gastronomia cada vez mais globalizada.
A questão mais importante, no entanto, são os comentários preconceituosos e xenofóbicos que invadem as redes toda vez que alguém posta alguma foto da receita no She Wong Lam.
Em uma visita recente à cidade, fui conhecer o restaurante com um famoso chef local e minhas fotos no Instagram renderam uma enxurrada de emojis de carinhas enojadas ou de vômito. Com colegas que estiveram comigo, as reações foram semelhantes.
Entendo a consternação de alguns com o prato — principalmente dos que sofrem de ofidiofobia. Mas não consigo assimilar o julgamento preconceituoso aos chineses por seguirem uma tradição em risco.
Isso porque os se gang estão se tornando mais raros com as exigências para se ter um estabelecimento assim: não só no preparo da sopa, mas também no manejo de serpentes, inclusive as peçonhentas.
Talvez haja razões ambientais ou de saúde (no caso de animais sem controle sanitário) que podem ser levantadas por profissionais sobre o consumo de répteis na alimentação, como aliás já acontece em alguns grupos na China.
Mas não posso crer que haja qualquer razão para que um leigo se sinta capaz de julgar uma população somente pelo fato de aquilo que ela consome ser radicalmente diferente daquilo que se convencionou comer em sua própria casa.
A gastronomia, na sua essência, deveria ser uma porta de entrada para se conhecer outras culturas, um atalho rápido para se aprofundar em realidades ou lugares diferentes daqueles em que vivemos.
O preconceito elevado à xenofobia à mesa é o pior veneno para o papel que a comida poderia ter na nossa sociedade. E, para a ignorância, infelizmente ainda não existem antídotos.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.