Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
As mentiras que 'colaram' sobre pizza, feijoada e outras comidas que amamos
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A feijoada não foi criada pelos escravos, os doces portugueses feitos de gemas não eram segredos mantidos a sete chaves por freiras cozinheiras e a pizza, como a conhecemos, nasceu nos Estados Unidos, não na Itália.
Grande parte dos mitos que se mantiveram por anos sendo contados sobre as comidas que a gente aprendeu a amar não passam de... mitos.
E novos estudos querem revelar as verdades — e os dissabores — por trás de muitos dos pratos que se tornaram populares em todo o mundo.
É o caso do status alcançado pela cucina italiana em nível global — e que recentemente fez o governo do país propor a sua candidatura a patrimônio mundial da Unesco.
Acreditamos que muito do que comemos entre pastas e risotos vindo do país era "autêntico" e "cheio de história", retrato de uma cultura que soube, com ingredientes simples, elevar a comida ao seu melhor nível.
Não é bem assim: o historiador Alberto Grandi reconhece o valor da cozinha italiana, mas refuta algumas ideias estabelecidas que se propagaram sobre a gastronomia do país nas últimas décadas.
Autor do livro "Denominação de Origem Inventada — As mentiras do marketing sobre os produtos típicos italianos", ele defende que a pizza que comemos tem origem americana — não italiana. Assim como o espaguete ao sugo e o carbonara.
Um reflexo da cultura de imigrantes que se espalhou por toda a América (incluindo o Brasil). Na Itália, por exemplo, a pizza era uma receita ruim, com ingredientes baratos, consumida por pobres.
Só ganhou visibilidade à mesa a partir dos EUA, com a adição do molho de tomate (que veio da América Central) e da difusão de seu consumo popular. Aliás, ele garante, a ideia de se consumir um disco de massa com ingredientes por cima sempre existiu em diversas partes do mundo, incluindo o Mediterrâneo. Não é um privilégio italiano.
Em seu livro, Grandi também esclarece algumas anedotas que, do ponto de vista histórico, não poderiam existir, como a que diz que a pizza margherita teria sido criada em homenagem à rainha Margherita di Savoia.
Na época, seria ofensivo oferecer uma pizza a uma nobre, um mito que surgiu em Nápoles décadas depois da viagem da monarca à cidade — o que o historiador defende como uma grande estratégia de marketing.
A mesma estratégia ronda diversas receitas, que acreditamos serem muito antigas, mas que, na realidade, foram criadas há apenas poucas décadas.
A origem arcaica de muitas destas receitas são mentiras, narrações publicitárias inventadas a partir dos anos da década de 1970, após a crise industrial italiana", afirmou ele à BBC.
Nem precisa dizer que as afirmações de Grandi caíram como uma bomba na Itália tradicional, que tanto propaga sua gastronomia como um valor cultural do país — e que se beneficia tanto com ela, em turismo e em uma indústria de alimentos já presente em todos os cantos do mundo.
Com menos repercussão, outro historiador também causou polêmica em seu país natal ao "ousar" questionar a origem de doces que se tornaram um dos símbolos da culinária local.
O investigador português João Pedro Gomes afirma que a ideia da "doçaria conventual" de Portugal é um mito criado.
Algumas dezenas de doces, segundo o que se convencionou acreditar, teriam sido criados por freiras e monges em seus conventos e monastérios.
Para engomar seus hábitos, dizia-se que os religiosos usavam claras de ovos e, assim, tinham enormes quantidades remanescentes de gema, que depois levaram para a cozinha para criar doces cujas receitas foram mantidas guardadas por séculos.
Gomes, que defendeu sua tese de doutorado na prestigiosa Universidade de Coimbra, afirma que não é bem assim: dentro e fora dos conventos, os doces eram muito semelhantes.
Ele defende que a imagem de freiras de mão cheia e monges com talento superior para a cozinha foi uma romantização dos fatos — uma lenda que se convencionou para dar mais valor a doces que, em sua origem, sempre foram populares, e não tinham nada de sacrossantos.
É um fato histórico que os doces feitos nos conventos circulavam fora dali e com alguma valorização social por serem feitos naqueles lugares. Agora, que eles eram completamente diferentes do que existia? Não" João Pedro Gomes
Tampouco eram secretos, já que as receitas eram trocadas e se influenciaram.
Como as origens das receitas historicamente foram poucos documentadas, a não ser através da oralidade ou, no máximo, de cadernos familiares, as histórias que se contam sobre elas estão repletas de mitos.
Algo que ganha mais e mais camadas com o passar dos anos, em uma ideia de conexão com as tradições centenárias — e que não existem.
O que os novos estudos indicam, entretanto, é que, por trás desses mitos, a culinária no mundo foi desenvolvida muito mais por necessidade e por casualidade do que por relatos românticos.
Na mesa, adoramos contar histórias — mesmo quando elas não são reais. O chef Andoni Luis Aduriz, do restaurante Mugaritz, no País Basco, defende que as narrativas são o nosso "sexto sabor".
Ouvir uma exposição bonita sobre um ingrediente ou uma técnica aguça o nosso apetite porque mexe justamente com nossa curiosidade, nos permite nos envolver com aquilo que comemos de outra maneira" Andoni Luis Aduriz
"Historicamente, sempre gostamos de contos, de fábulas, de mitos. A civilização foi construída em cima deles", conclui. Ao que tudo indica, a gastronomia também.
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