Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Críticos gastronômicos de Instagram rendem likes, mas não credibilidade
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Com um celular na mão e alguma opinião na cabeça, as redes sociais foram inundadas por "críticos gastronômicos" cheios de opiniões sobre os restaurantes que frequentam.
Usando escalas de avaliação próprias (de 1 a 5 garfos, por exemplo) e com comentários mordazes sobre a comida ou o serviço, muitos são os perfis no TikTok ou Instagram que arrebatam milhares de seguidores fazendo avaliações negativas sobre os espaços que visitam.
Fato é que as redes sociais democratizaram ainda mais as vozes na gastronomia: algo que começou antes com os blogs e agora ganha novo fôlego com a onda de newsletters.
Todo mundo come...
Naturalmente engajadora, a comida alimenta-se desta procura crescente de informação e conteúdos relacionados a gastronomia que tomou as redes. Qualquer pessoa pode postar fotos de pratos, ir a uma hamburgueria e dizer algo sobre a "experiência" que teve ali.
Assim, os novos usuários retroalimentam o interesse que a comida desperta, num processo que leva a uma amplificação cada vez maior de vozes e de conteúdos.
Também ajudou o fato de que, se antes ir a restaurantes costumava ser algo relativo a uma elite, agora tornou-se uma realidade natural para muitas pessoas — os restaurantes são o "luxo acessível", já dizia o chef catalão Ferran Adrià.
Não importa se você come em uma lanchonete minúscula, mas incrível, ou no Noma (por 4 vezes o melhor restaurante do mundo): ambos servem para enviar aos seus seguidores sinais sobre sua consciência cultural e do quão "trendy" você é.
Saber hoje onde conseguir o melhor ramen em Tóquio ou Nova York é tão importante quanto conhecer bons restaurantes, porque ajuda esse ciclo a se perpetuar.
Quanto mais pessoas compartilham suas experiências com a comida, mais pessoas ficam expostas à ideia de que precisam fazer o mesmo.
... muitos avaliam
Mas a diferenciação vem, em grande parte das vezes, com a opinião: não basta ir e comer. É preciso avaliar — essa pandemia que tomou o mundo de que todo mundo precisa ter uma opinião sobre tudo. Haters gonna rate.
Ao menos quando o tema é comida — uma espécie de "como, logo opino" que é a cara da cultura de descartes que vivemos.
Mas todos podemos mesmo ter opinião?
Em 2021, uma crítica publicada em um blog acendeu essa discussão nos Estados Unidos: em uma viagem ao sul da Itália, Geraldine DeRuiter teve aquela que foi a "pior experiência Michelin" de sempre em um restaurante em Lecce.
DeRuiter não é crítica gastronômica, nem sequer se dedica à comida. Mas isso não a impediu de escrever que "a decoração tinha o requinte de um bunker subterrâneo onde se esperaria ser interrogado pelo desaparecimento do filho de um embaixador".
Ou que "tudo tinha gosto de peixe, até os pratos que não eram de peixe. E quase tudo, inclusive o macarrão, que era de longe o prato mais substancial, era servido frio".
Jornalistas gastronômicos criticaram o texto. Outros, inclusive alguns críticos famosos no país, o republicaram pelo seu tom de humor, defendendo que é elitista achar que só quem se dedica à gastronomia como profissão é capaz de ter uma opinião balizada sobre uma refeição.
Likes, boicote e boca-livre
Tendo a pender mais para o segundo grupo por acreditar que toda opinião é válida e bem-vinda. Em um mundo democrático, é assim que tinha de ser.
Mas engulo seco quando me deparo com algumas opiniões que são demolidoras sem nenhuma razão sensata — algo que se multiplica como praga nas redes sociais.
Na maioria das vezes, o objetivo é o like, o compartilhamento: ascender numericamente ao topo dos algoritmos e gozar da glória do imediatismo digital.
Em outras, há intenções mais escusas: profissionais que querem prejudicar concorrentes, pessoas que aproveitam os holofotes da tela acesa para atacar de quem não se gosta.
Isso sem contar os que trocam elogios por dinheiro ou comida nos almoços grátis. Do outro lado está o "usuário" dando likes, sem entender todas essas razões muitas vezes cinzas que pairam sobre os egos das redes sociais.
Crítica x palpite
Mas há muito por trás: críticas podem ser avassaladoras para restaurantes e bares. Comentários maledicentes podem cancelar cozinheiros ou equipes inteiras, levando negócios a ruínas.
Parece inocente, mas cada "para mim, não vale mais que um garfo" tem uma consequência por trás que é preciso considerar. Acredito que todo mundo possa ter opinião, mas também defendo que nem toda opinião é uma crítica.
Crítica necessita embasamento, sensatez, responsabilidade. Apontar problemas em uma refeição é um ótimo alerta para equipes e cozinhas verem que podem melhorar, gerir problemas, resolver casos.
Agora, ser um mero "palpiteiro" tem consequências terríveis para o mercado, principalmente nos tempos do tribunal da internet, em que tudo é amplificado.
Avaliar o trabalho de alguém envolve técnica, conhecimento, algo a que muitos profissionais se dedicam por anos. Especialistas comem muito, viajam o mundo, fazem perguntas: não "acham".
Vivemos em uma época em que as categorias ou definições tradicionais já não são mais válidas. É tudo tão superficial que é difícil entender de fato onde está a opinião que realmente importa — e, mais, de onde ela vem.
As pessoas não entendem a diferença de um jornalista e um influenciador, imagina conseguir distinguir o joio do trigo nesse mar de dados e segundas intenções.
Experts anônimos
Pesa o fato de que as redes foram criadas com essa lógica do caos: tudo é organizado e ranqueado de acordo com os algoritmos, não com a credibilidade.
(Até mesmo os profissionais que podiam se diferenciar com um tique azul ao lado de seus nomes já nem sempre podem contar com ele).
O maior risco ou consequência é não saber em quem confiar. E espirais são geradas onde não há confiança e transparência. Não é possível assegurar os interesses que levam as pessoas a publicarem críticas duras ou elogios rasgados nas suas redes.
É a natureza do digital, que faz de todos nós também somos cúmplices dessa realidade que transforma pessoas anônimas em grandes experts a serem validados.
Inclusive (e principalmente, neste caso) os próprios chefs, quando o que mais importa para eles é a atenção que recebem — e os compartilhamentos que somam depois.
No fim, cada like conta: nesse mundo, trata-se de uma validação que se constrói com polegares levantados ou com corações ocos que logo ficam cheios e vermelhos a um simples toque de tela.
E a cada um deles, alimentamos aquilo que queremos ver ganhar mais destaque.
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