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'Vai pra Venezuela!': boom de restaurantes dá nova imagem e fôlego ao país
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No quinto piso do Tolón Fashion Mall, um shopping repleto de lojas de grife no bairro de Las Mercedes, em Caracas, um constante fluxo de homens de blazer e mulheres de vestido chama a atenção.
Cruzam uma porta de vidro que mais parece a entrada de um elevador e só saem dali duas horas depois, com os estômagos satisfeitos com o melhor cordeiro que é produzido na Venezuela e uma conta que passa fácil os US$ 100 por pessoa (cerca de R$ 490).
O restaurante, que abriu há pouco mais de um ano, tem cardápio assinado pelo chef Issam Koteich (que, depois de 7 anos fora, decidiu regressar a seu país natal) e fila de espera aos finais de semana.
Não é o único: uma volta em um sábado à noite pelas ruas do bairro de Chacao pode causar alguma ideia de que se está em Buenos Aires, Santiago, São Paulo ou qualquer outra cidade da América Latina.
Mas não se enganem, é na Venezuela que isso acontece hoje, o país que voltou a ganhar os noticiários recentemente com a visita do presidente Nicolás Maduro ao Brasil.
Ascensão surpreendente
É uma estatística inesperada: no ano passado, mais de 200 novos restaurantes abriram as portas no país — sendo a maior parte deles (mais de 50%) na capital, Caracas.
Os dados compilados pela Câmara Nacional de Restaurantes abrangem só aqueles com mais de 50 lugares (de médios a grandes, portanto). Para 2023, ainda não há nada oficial, mas já se fala que as inaugurações de novos espaços gastronômicos devem superar as de 2022.
Em um país onde os números têm sido tão importantes para traduzir uma difícil realidade, é uma informação que pode chocar os brasileiros, mais acostumados a ler notícias sobre pobreza, fome e restrição de alimentos no país vizinho.
Mas entre carros importados nas vitrines de concessionárias, lojas vendendo bolsas da Chanel e muitos novos restaurantes, a Venezuela também é um país em que sair para comer bem é uma realidade, tanto quanto a ideia de viver com um salário mínimo de menos de US$ 10 ao mês (cerca de R$ 49).
A nova e crescente cena gastronômica da Venezuela é reflexo de muitos fatores que têm alterado a forma de viver dos mais ricos no país: um forte processo de dolarização, a diminuição das sanções americanas ao petróleo nacional, uma relativa diminuição na taxa de pobreza geral (hoje, 50% da nação vive na pobreza, contra 65% em 2021).
E um ar de otimismo que toma as ruas do país com uma surpreendente (e possivelmente efêmera, como acreditam especialistas) retomada econômica. Mesmo em um dos países mais desiguais do mundo, em que os mais ricos ganham 70 vezes mais que os mais pobres.
Orgulho venezuelano
Nessa microbolha que se formou no país, há aberturas de restaurantes pelo menos todos os meses. No final de maio, por exemplo, foi a vez da chef Mónica Sahmkow abrir o Sereno, restaurante de ingredientes locais em um recém-inaugurado hotel de luxo de 5 estrelas de Caracas, o Cayena (onde as diárias podem custar US$ 400, cerca de R$ 1.963).
Ali, ela serve produtos nacionais, como no caso do robalo com leite de coco fresco e azeitonas-do-mar — uma espécie de alga cultivada na Isla Margarita. Também tortillas de mandioca comuns na Venezuela e lagostas do mar caribenho.
Em seu cardápio, quase nada vem de fora: do vinho (há espumantes de qualidade a serem produzidos no país), milho, legumes, ervas e peixes são 100% locais. Nos coquetéis, o famoso rum local é o grande protagonista.
Ela diz que nos últimos anos o país melhorou muito em qualidade de ingredientes: reflexo de um processo de sanção econômica que obrigou a Venezuela olhar ainda mais para dentro — o que ajudou a evoluir a cadeia de produção e sua própria noção de gastronomia.
Chocolate, queijos nacionais (uma obsessão), frutas amazônicas e outras comidas locais nunca tiveram tanta qualidade. Também é o caso do café, que nunca teve grande representatividade se comparado a países vizinhos como Brasil e Colômbia.
Hoje, cafeterias e torrefadoras fazem parceria com cafeicultores locais para servir grãos de especialidade no mercado interno — já que as exportações ainda encontram muitas barreiras.
De volta para casa
Outro fator que tem ajudado a cena gastronômica a prosperar é a questão dos "regressados", ou seja, venezuelanos que foram para fora (cerca de 6,8 milhões de desde 2015, segundo as Nações Unidas) e que agora se sentem mais seguros para retornar.
Também pelo endurecimento das restrições à imigração de venezuelanos, claro, que regressam a país mais desigual e caro, onde a dolarização e o trabalho informal se tornou a tônica vigente.
Muitos deles são cozinheiros ou pessoas ligadas ao universo da gastronomia, que ao voltar decidem empreender: não apenas abrindo restaurantes, mas outros negócios ligados à alimentação.
Também trazem alguma valorização que conquistaram para a cozinha venezuelana lá fora, em países como os Estados Unidos e Espanha, em que a mistura de sabores doces, salgados e ácidos que caracterizam a mesa dos venezuelanos ganha cada vez mais respeito fora das fronteiras do país em crise.
Nada mais justo para uma cultura alimentar e culinária que tem sido tão prejudicada pela corrupção e má gestão que destruíram a economia do país, levando-o a uma profunda crise humanitária.
A gastronomia, como um valor arraigado de um povo, tenta sobreviver às turbulências e gradativamente trazer todo mundo de volta para a mesa.
Hoje, ela ainda é restrita a muito poucos. A esperar que possam se tornar mais democráticas — e muito mais cheias.
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