No Japão, provei o peixe mais mortal do mundo - e sobrevivi para contar
As fatias finamente cortadas de peixe branco e translúcido no prato à minha frente não são apenas o convite a provar uma rara e cara iguaria que pode facilmente chegar aos 100 dólares o quilo.
É algo que faz o meu corpo se encher de uma inesperada adrenalina por colocar na boca e mastigar devagar e com cuidado a possibilidade da morte (ainda que cada vez mais remota).
Estou no Guenpin, um restaurante escondido e aconchegante no terceiro andar de um prédio na pequena cidade de Kichijoji, a 35 minutos de trem do centro de Tóquio.
É apenas uma da dezena de unidades da rede espalhadas por todo o Japão, todas elas especializadas no mesmo item especial e mortal no menu: o fugu — ou baiacu, como o conhecemos no Brasil.
Trata-se de um peixe com pontas achatadas, em vez de escamas, cuja fama ficou conhecida pela capacidade de ingerir água suficiente e inchar até que suas pontas fiquem eriçadas, se tornando um balão blindado para os predadores.
Para nós, humanos, o que assusta não é sua inesperada forma redonda e cravejada de espinhos: o que nos faz temer (e ao mesmo tempo ter um fascínio) por ele está nas suas entranhas
O fugu é capaz de metabolizar no seu fígado e em outras partes do seu pequeno corpo (como ovários e intestino) uma neurotoxina chamada tetrodotoxina (TTX).
Mais potente "que o arsênico, o cianeto ou mesmo o antraz", segundo o escritor científico americano Christie Wilcox, quando em contato com nosso organismo, essa toxina causa náuseas, paralisações musculares totais e súbita parada cardíaca.
Isso faz do fugu o mais letal animal dos oceanos, mas que, mesmo assim, se tornou — e continua sendo — um dos mais cobiçados ingredientes nas mesas dos japoneses (e também dos chineses, por lá é chamado de hetun e também é muito apreciado).
Talvez seja esse exatamente o seu encanto: a ideia de comer algo capaz de acabar com a nossa vida, ficamos mesmo vidrados com o potencial de morte.
Se nos anos 1960, as mortes registradas no Japão beiravam uma centena, hoje não chegam a uma dezena —e na maioria das vezes por conta de aventureiros sem as habilidades próprias para cortá-lo e prepará-lo como se deve.
Sim, no Japão é preciso formação específica e dedicada para manusear o peixe mortal. Um cozinheiro que queira trabalhar com o fugu precisa ter uma licença especial e para tirá-la são necessários dois anos de dedicação.
A prova consiste em exame teórico e prático, para identificar todas as espécies e técnicas precisas de corte: mais da metade dos que prestam não passam.
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Quero receberIsso porque o cozinheiro do fugu tem muitas vidas nas mãos — e também a sua, já que qualquer contato com a toxina também pode fazer com que ele sucumba ali mesmo, na cozinha, sem tempo sequer de gritar por ajuda.
Na roleta-russa que é comer fugu, portanto, existem várias formas de saboreá-lo. A mais comum talvez seja a de um prato de inverno, conhecido como shabu-shabu, em que o peixe é escaldado e serve de base para uma espécie de sopa.
Eu provei primeiro como sashimi: as fatias retangulares dispostas como se fossem pétalas de uma enorme flor sobre um prato branco, acompanhadas de um gomo de limão, cebolinha bem picada e wasabi temperado com rabo.
O peixe quase não tem sabor. Alguns cozinheiros, por isso, preferem maturá-lo por alguns dias para que o gosto fique mais prenunciado.
O que chama atenção — e é o diferencial do fugu, defendem especialistas — é a textura, entre mastigável e borrachuda, mais macia que uma lula.
O desafio, antes de provar as barbatanas do peixe empanadas e fritas como uma isca de frango de boteco, veio em um copo branco de porcelana encaixado em um daqueles copos quadrados de saquê.
Tratava-se do hirezake (ou "saquê de barbatana" em japonês), uma bebida milenar rica em umami e feita de rabo de baiacu mergulhado em saquê quente.
Para deixar o ritual ainda mais cabuloso, o garçom pesca o tal rabo embebido no destilado com uma pinça e o incinera com aqueles acendedores de fogão.
As chamas se esvaem em poucos segundos (até o álcool evaporar) e ele volta a mergulhar o pedaço de peixe no líquido morno. "É para dar mais sabor", diz.
Há mesmo um gosto pronunciado de peixe — quase de dashi, já que o fugu foi desidratado antes do processo — que não chega a ser desagradável.
As barbatanas passam pelo desidratador de um a dois dias até que fiquem totalmente secas. Depois são grelhadas levemente no fogo para ganharem uma nota fumada e mais caramelizada.
Só então são cobertas pelo saquê quente (na maioria das vezes do estilo junmai (de "arroz puro") e o recipiente é tampado para concentrar mais os aromas e sabores na bebida.
São dezenas de restaurantes como o Guenpin pelo Japão (sendo o epicentro em Osaka), alguns deles até mesmo reconhecidos por guias como o Michelin.
O que continua causando a obsessão pelo fugu (principalmente pelos ocidentais) é justamente sua possibilidade de mortalidade, ainda que estudos indiquem que o peixe tem ficado cada vez menos "perigoso".
Isso porque o fugu mais consumido na Ásia vem de fazendas, ou seja, são cultivados com alimentação controlada. Os selvagens são os que ainda têm maior potencial letal.
Em todos os casos, a experiência de provar algo que pode ser a sua última refeição neste mundo tem um quê de amedrontador e de muito corajoso ao mesmo tempo. Mas, ao final, confesso que fico mais feliz de estar aqui para poder contá-la.
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