Rafael Tonon

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Reportagem

Famílias plantam comida em terrenos que eram da máfia e do narcotráfico

Em Montes de Maria, uma região a 150 km de Cartagena, na Colômbia, 30 famílias se dedicam hoje a algo que seria impensável naquele lugar há pouco mais de 10 anos: elas plantam alimentos.

Tudo o que cultivam — entre uma dezena de espécies de mangas, além de milhos crioulos, ervas e muitas outras frutas — vai parar nos menus de alguns dos melhores restaurantes do país.

A retomada da agricultura permitiu, sobretudo, um surpreendente resgate econômico e social da região. Por anos, ninguém nem sequer ousaria estar ali.

O simples fato de querer cruzar as estradas para chegar às cidades e vender os produtos cultivados poderia custar a vida de um agricultor. Sequestros e até incêndios de veículos também eram muito comuns.

Dominados pelas Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), os Montes de Maria eram pedaços de terra destinados principalmente ao cultivo da coca.

Os agricultores que insistiam em plantar cana-de-açúcar ou cacau na região, além de temer pelas suas vidas, eram coagidos a pagar um suborno aos guerrilheiros que comandavam as diferentes zonas de plantio da droga.

Muitos, claro, optaram por abandonar suas terras. Há menos de uma década, quando as Farc e o governo assinaram um acordo de paz, o caminho voltou a se abrir para uma nova perspectiva de desenvolvimento para os colombianos e a gastronomia local.

A região de Montes de María, próximo a Cartagena, na Colômbia
A região de Montes de María, próximo a Cartagena, na Colômbia Imagem: Commons

Onde caíam bombas, brotam alimentos

Por toda a Colômbia, o cenário é parecido. Onde antes reinava o terror de bombardeamentos e assassinatos (mais de 30 mil pessoas foram mortas nos últimos 10 anos na sangrenta guerra civil da Colômbia), hoje brotam alimentos capazes de alimentar e transformar realidades.

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Em Medellín, os verdes montes que circundam a cidade também voltam a ver outras cores nas plantações, como é o caso do café, que por décadas deixou de ser cultivado ali, mesmo que a Colômbia sempre tenha sido uma potência na produção.

Em La Sierra, um bairro periférico no alto do Vale do Aburrá, a mil metros de altitude, 45 famílias se dedicam aos cafezais, tirando o sustento do que conseguem colher.

A região era governada por exércitos paramilitares e devastada por constantes conflitos territoriais, que a transformaram em uma das mais violentas de Medellín.

Dali hoje saem grãos de café especiais que vão parar nas xícaras de muitas cidades do mundo, da Europa aos EUA.

O cultivo de alimentos tem sido uma saída de muitas regiões de conflitos para tentar oferecer algum tipo de pacificação de territórios através da comida.

Pizzas do chef Franco Pepe são feitas de tomates plantados em áreas que eram da máfia
Pizzas do chef Franco Pepe são feitas de tomates plantados em áreas que eram da máfia Imagem: Reprodução
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A paz pelo prato

É difícil, no mundo atual, pensar na produção de alimentos sem puxar um fio de problemáticas relacionadas a confrontos: por trás do que comemos há sempre desapropriações, interesses, embates, guerras, sangue.

Do Oriente Médio à África, passando pela América Latina e até países da União Europeia, instituições e entidades públicas têm defendido a paz pelo prato.

No interior da Campania, na Itália, os tomates e outros ingredientes que cobrem as pizzas feitas pelo famoso chef pizzaiolo Franco Pepe são a coroação de uma batalha vencida como a máfia local. Ou a "ecomáfia", como é melhor conhecida.

Ali na Terra dos Fogos, área que compreende mais de mil hectares, eram derramados dia e noite resíduos industriais tóxicos, causando envenenamento do ar, dos aquíferos, das águas de irrigação e dos campos.

Terrenos da máfia italiana

Um combate aos mafiosos locais — que usavam os terrenos para acobertar atividades ilícitas — tem proporcionado um regresso à agricultura.

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Hoje, as estradas de terra enlameadas levam a terrenos plantados com brócolis, morangos, repolho, erva-doce, entre outros produtos que chegam à pizzaria Pepe in Grani, em Caiazzo — eleita muitas vezes como uma das melhores do mundo.

Pizza do restaurante do chef Franco Pepe
Pizza do restaurante do chef Franco Pepe Imagem: Reprodução

É ali que o chef Pepe faz suas pizzas que "são um puro reflexo do entorno", como explica o chef pizzaiolo sobre o uso de produtos locais.

Parcerias com agricultores da Terra dos Fogos têm permitido que eles invistam em métodos de cultivo orgânicos e recuperem os solos.

Da parte dos chefs, os agricultores se tornam fornecedores parceiros, em que grande parte da produção está garantida e reservada, dando maior chance de investimento na produção alimentar.

Uma maneira de mostrar que a comida pode ser uma saborosa maneira de combater conflitos e transformar realidades, um tomate por vez.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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